A questão a respeito do aumento do índice de composição nas audiências conciliatórias, instaladas inclusive nos mais diversos órgãos e instâncias do Poder Judiciário, para patamares mais elevados do que os correntes, 1 requer uma abordagem mais abrangente (aprofundada) – por pontual (casuística) –, como a que desta feita se procede, no sentido de avaliar a forma como o C. Superior Tribunal de Justiça (STJ), em especial, tem confundido os danos punitivos (i) (que devem reverter para a sociedade, pois são danos coletivos) com a compensação da vítima (ii) (do evento danoso causado pelo agente), eis que, segundo o entendimento iterativo desse Sodalício, os parâmetros para condenações a título de dano moral, tanto em um (i) como em outro caso (ii), se restringem a considerar: (a) as capacidades econômicas da vítima (para evitar o enriquecimento sem causa desta) e do agente (para averiguar a sua possibilidade); (b) a extensão do dano; e (c) as funções compensatória e punitiva, como balizas para o arbitramento do quantum condenatório. 2
Logo, o STJ confere caráter punitivo ao dano moral, criando o dano moral punitivo, cujo fulcro é o desestímulo (teoria do desestímulo) à reiteração de condutas similares pelo agente. Não obstante, o problema é que a pena, no Direito Civil (que é um sistema aberto, à diferença do Direito Penal, que é fechado – pautado em tipos legais), se relaciona à violação de um dever de conduta (social – valores sociais, boa-fé objetiva ou moral/ético – valores morais/éticos, etc.), conduz a uma sanção dúplice: (a) a punição do agente (em danos punitivos, punitive damages da doutrina anglo-saxã, reversíveis para a sociedade); e (b) a compensação dos danos (reversível para a indenização da vítima).
Assim, tem-se que a responsabilidade civil, de acordo com a ótica da dogmática moderna, está relacionada à violação de um dever geral de conduta – o qual se refere a uma norma jurídica (em sentido estrito), norma ética/moral (valor social) ou à boa-fé objetiva, etc., como salientado –, não a dano (CC 187), como quer a doutrina clássica.
Nessa perspectiva, a responsabilidade civil clássica não entende o dano como conseqüência de um dever geral de conduta violado, como a responsabilidade civil moderna o faz, adotando, inclusive, funções da responsabilidade civil que independem do dano (como a função sócio-preventiva/inibitória, por exemplo, que encontra esteio no princípio da prevenção do Direito Ambiental, do qual emana um dever de segurança no tráfego jurídico que impõe um dever de conduta mais elevado a todos os agentes sociais, e não apenas aos que desenvolvem atividade de risco; assim, quem cria situação ou fonte de perigo deve tomar todas as providências necessárias para que tal não se concretize, eis que, do contrário – com a violação de dito dever –, configura-se o abuso, porquanto esse dever gera a todos a obrigação de atuar de molde a não causar danos a outrem e a todos onera com o dever de solidariedade).
No vetor do que se argumenta, portanto, a teoria da função punitiva da responsabilidade civil preconiza que, à vista dos danos punitivos (punitive damages), reparar é um aspecto, punir é outro diferente! Donde, defende a existência de três categorias de dano: danos materiais/patrimoniais, danos morais/extrapatrimoniais e danos punitivos; sendo que os primeiros são revertidos para a vítima, com o fim de ressarcir/reparar ou compensar o dano sofrido (conforme se trate de danos materiais ou morais), e os últimos são reversíveis para a sociedade.
Essa função punitiva possui duas teorias que lhe dão sustentação: (a) a teoria da pena privada (Escola Italiana – Boris Starck e Paolo Gallo), que nasce pela insuficiência das respostas ofertadas pelas funções ressarcitória e compensatória à hipótese fática, em virtude da limitação da indenização ao dano efetivamente suportado, alegando que há uma pena – a ser arbitrada pelo magistrado – que a sociedade pode impor ao agente devido à sua violação de deveres de conduta no caso concreto; e (b) a teoria do desestímulo (Escola Francesa – adotada majoritariamente pela doutrina e jurisprudência pátrias), que entende que a sanção (quantum indenizatório arbitrado pela autoridade judicial) deve fixar uma quantia considerável o suficiente para inibir a reiteração de condutas semelhantes pelo agente.
Vertida função foi aparentemente contemplada no PL n. 6.960/2002, através de uma genérica autorização ao juiz para acréscimo de parcela punitiva (ao dano moral), prevendo-se que a reparação do dano moral deve consistir igualmente em "adequado desestímulo ao lesante". No entanto, o CC em nenhuma de suas numerosas disposições sobre a responsabilidade civil alberga essa função. Já do CDC, por sua vez, ela fora excluída por intermédio de veto presidencial (art. 16).
Malgrado o aduzido, a função punitiva, aos poucos, recebe adeptos tanto na doutrina quanto na jurisprudência, e a tendência hodierna permanece sendo no rumo de se aumentar o valor das indenizações a esse título. A função punitiva é um mecanismo acessório e, assim, deve ser esposada em casos peculiares. No Brasil, por enquanto, deve ser aplicada aos agentes que praticam condutas danosas iterativas.
A reiteração caracterizar-se-á quando uma mesma conduta for executada em desfavor de mais de uma vítima massificadamente. Conquanto o aduzido, um dos principais óbices para a adoção da função punitiva no País é a que pertine à determinação do beneficiário dos valores fixados. Alguns autores sustentam que os importes arbitrados são devidos à própria vítima. Contudo, tal orientação recebe severas críticas, eis que o resultado pecuniário arbitrado a título punitivo encerra uma forma de enriquecimento indevido da vítima, nos termos do CC 884.
A direção jurisprudencial predominante tem indicado que os valores a título punitivo devem ser destinados ao próprio Estado e não à vítima, a exemplo do Fundo de Defesa de Direitos Difusos, consignado no caput (em especial) do art. 13, da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, 3 in verbis:
Art. 13. Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados. Parágrafo único. Enquanto o fundo não for regulamentado, o dinheiro ficará depositado em estabelecimento oficial de crédito, em conta com correção monetária. 4
Entretanto, essa exegese, de igual sorte, não é isenta de análises. Muitos indagam a maneira de controle e gestão dessas quantias, as quais poderiam ser desviadas para outros fins. A dogmática civilista ainda apresenta outra saída para a remessa dos numerários oriundos da aplicação da função punitiva. Cuida-se de uma interpretação extensiva do parágrafo único do art. 883. do CC, que permite a reversão de verbas para um estabelecimento de beneficência, a critério do juiz. Com isso, exclui-se a probabilidade de ocorrência futura de ganho injusto da vítima. Na prática, obviamente, essa alternativa dependeria de expressa determinação judicial na sentença (em capítulo próprio, na fundamentação e no dispostivo) dos montantes a essa rubrica e a indicação da instituição favorecida.
Com isso, por via de conseqüência, os danos punitivos realmente encampariam a sua verdadeira natureza sancionatória, eis que destinar-se-iam, em capítulo próprio na sentença (fundamentação e dispositivo), a favorecer à sociedade como um todo, e não à vítima individual do evento danoso verificado no caso concreto.
Vale dizer, no arbitramento indenizatório sob tal rubrica (cuja soma, repita-se, é reversível à sociedade) não entraria aquele a título de dano moral (eis que este, a exemplo do dano material, é de ordem individual, casuística). Nessa toada, em suma, já que o dano punitivo (oriundo da doutrina anglo-saxã) busca coibir a repercussão social de atos ilícitos, desestimulando a reiteração de condutas lesivas, a quem reverteria o quantum indenizatório a essa categoria?
Como visto, os autores rechaçam as idéias de destinação do dinheiro à própria vítima – sob o argumento do enriquecimento sem causa desta –, ou a fundos estatais – via essa defendida pela orientação jurisprudencial predominante, mas, que, todavia, também é alvo de críticas, porquanto muitos questionam a forma de fiscalização e gestão do valor do dano punitivo nessa hipótese, o qual poderia ser desviado para outras finalidades.
Logo, a doutrina pátria indica outra solução para dito impasse – o destino das quantias oriundas da aplicação da função punitiva da responsabilidade civil –, qual seja, a reversão do importe referente ao dano punitivo a um terceiro, a saber: instituição beneficente sugerida pela vítima ou pelo Estado-Juiz, que já possui rol de entidades desse jaez para envio de cestas básicas etc., diga-se, de passagem. Essa construção é resultado de uma exegese extensiva do parágrafo único do art. 883. do CC vigente, que, saliente-se, faculta a remessa de valores para um estabelecimento de beneficência, a critério do juiz.
Dessarte, afasta-se o risco de vir a ocorrer o locupletamento indevido da vítima. Na prática, essa alternativa dependeria de uma explícita determinação na sentença dos valores a essa ordem e a indicação judicial da entidade favorecida.
Não obstante, há que se ressaltar, por relevante, que, ex vi do princípio da inércia da jurisdição/princípio dispositivo (CPC, art. 2º c/c o art. 128), o juiz não pode julgar nada ex officio – isto é, o juiz decidirá a controvérsia nos (estritos) lindes em que proposta, lhe sendo vedado conhecer de questões, não-suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa/requerimento da parte interessada –; logo, cabe aos advogados a formulação expressa, na exordial, do pedido de condenação do(a)(s) autor(es)(as) a título de dano punitivo, não somente em dinheiro, mas, se for o caso, em penas alternativas também (cestas básicas etc.).
Basta, portanto, aos advogados pedirem explicitamente que o juiz destaque na sentença a condenação do(s) agente(s) por dano punitivo e que proceda à reversão do respectivo importe à entidade local de beneficência que melhor lhe aprouver, vale dizer, que escolher – escolhida a seu critério.
Finalmente, como pano de fundo do ora aduzido, há que se desenvolver, de igual forma – e com a mesma ênfase –, a prevenção em responsabilidade civil; ou seja, não somente a punição, mas, sobretudo, a prevenção (função sócio-preventiva da responsabilidade civil, a que se fez referência supra).
O nível de acordos em audiências judiciais conciliatórias aumentaria significativamente, em relação ao hodierna e ordinariamente verificado, caso fosse sufragada e aplicada de modo escorreito pelos magistrados a ora aduzida tese da função punitiva da responsabilidade civil (não do dano moral, como sói pensar, equivocadamente – à luz do suscitado entendimento esposado pela dogmática moderna da responsabilidade civil –, data maxima venia, o E. STJ). Isso porque, se as condenações a título de dano punitivo vierem a se verificar – de maneira sucessiva e majoritária – na Justiça, resulta ululante que os agentes praticantes de condutas danosas reiteradas 05 tomarão maiores cuidados (vale dizer, serão mais precavidos) nas relações consumeristas/comerciais que venham a travar com os particulares, oferecendo, assim, maior segurança no tráfego jurídico.
Em outros termos, o efeito dessas condenações à ventilada rubrica, do dano punitivo, será o de estimular/orientar os lesantes massivos a cumprirem com o seu dever de segurança no tráfego jurídico, forte no princípio (ambiental) da precaução, cuja ideologia irradiante garante a sua aplicação a todo sistema jurídico, conforme realçado.
Nessa tocada, pois, resta asseverar, em linha de conclusão, que tal dever de segurança de tráfego é a projeção substancial mais sensível da dimensão preventiva da responsabilidade civil – cujo sustentáculo é o aludido princípio (ambiental) da precaução –, que impõe esse dever de conduta (mais exaltado a todos os atores sociais, e não apenas aos que exercem atividade de risco), vale dizer, um dever de segurança no tráfego jurídico, a que desta feita se alude, que é perfeitamente alinhado à função sócio-preventiva de dita espécie de responsabilidade, como visto.
Donde, se infere, consoante invocado alhures, que quem cria situação ou fonte de risco deve tomar todas as cautelas necessárias para que o dano não se concretize. do contrário, com a violação de citado dever, tem-se configurado o abuso de direito, vez que esse dever impõe a todos a obrigação de agir de molde a não causar danos a outrem, e a todos onera com o dever de solidariedade. em sede processual, a dimensão preventiva da responsabilidade civil se apresenta através das tutelas inibitórias (positiva e negativa – CPC, arts. 461/461-a) e da remoção de ilícito.
Do brevemente exposto neste ensaio, exsurge de clareza solar a necessidade do sufrágio e aplicação incontinenti e escorreita pela doutrina e jurisprudência – do STJ, em particular –, pátrias (em caráter predominante, por ambas, diga-se, de passagem) da função punitiva da responsabilidade civil, em atenção aos postulados vindicados pela tese da moderna responsabilidade civil, ora trazida à baila, 06 como meio de contribuir para o sensível (espera-se) incremento do índice conciliatório em todos os órgãos e instâncias do Poder Judiciário nacional.
REFERÊNCIAS
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