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Direitos prestacionais: reserva do possível, mínimo existencial e ponderação jurisdicional

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25/10/2009 às 00:00
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6. Ponderações sobre a atuação do Poder Judiciário

Eventual inércia no processo de produção legislativa não poderia servir como óbice à concretização dos preceitos constitucionais. Quanto à discussão em torno dos direitos às prestações sociais expõe Ingo Wolfgang Sarlet:

Se há uma questão que merece ocupar lugar de destaque no âmbito da problemática da eficácia dos direitos fundamentais, esta é, sem dúvida, a indagação em torno da possibilidade de se reconhecer, diretamente com base na norma constitucional definidora de um direito fundamental social, e independentemente de qualquer interposição legislativa, um direito subjetivo individual (ou coletivo) a uma prestação concreta por parte do Estado, isto é, se há como compelir judicialmente os órgãos estatais, na qualidade de destinatários de determinado direito fundamental, à prestação que constitui seu objeto. Em suma, cuida-se de averiguar até que ponto os direitos sociais prestacionais efetivamente carecem de uma plena justicialidade, razão pela qual, segundo alguns, são merecedores do qualificativo leges imperfectae, devendo, de acordo com outros, ser considerados como direitos relativos, porquanto geram direito subjetivo apenas com base e nos termos da legislação concretizadora. [27]

Outrossim, no que tange a problemática específica da eficácia dos direitos sociais enquanto direitos subjetivos a prestações sociais indaga até que ponto e em que condições seria possível, com supedâneo em uma norma programática de direito fundamental social, exigir do Estado, através do Poder Judiciário, determinada prestação material (direito à educação, saúde, etc). [28]

Sobre a possibilidade de tal exigência, Luis Roberto Barroso faz críticas à excessiva judicialização da implementação de direitos prestacionais. [29] Inicia apontando o caráter programático da norma de direito à saúde que, conforme expresso na Constituição Federal, será oferecido através de políticas sociais e econômicas e não por decisões judiciais. Por conseguinte, é o Executivo que tem a melhor visão não só dos recursos, mas também das necessidades para otimizar os gastos com a saúde pública. Ademais, se a própria Carta Maior assegurou aos eleitos pelo voto popular (legitimidade democrática) a prerrogativa de gerir os recursos públicos seria impropriedade proceder-se de forma diversa. Suscita, ainda, a mais comum das críticas, a financeira, revestida da já referida reserva do possível. Dentre outras questões aponta também que decisões judiciais que impliquem em fornecimento de medicamento provocam a desorganização da Administração Pública e, por fim, se o Judiciário assume tal postura termina por privilegiar tão somente aqueles que têm acesso qualificado à Justiça em detrimento dos demais. [30]

Em que pese a renomada posição, discordamos, com a devida vênia. Por certo não cabe institucionalmente ao Poder Judiciário a atribuição de implementar políticas públicas, eis que tal função é própria do Legislativo e Executivo. Contudo, concretamente, de forma ponderada, deve o Judiciário refutar o descumprimento das obrigações da Administração Pública, mormente quando qualquer ação/omissão implicar na ineficácia de direitos constitucionalmente assegurados, mesmo que tais direitos sejam inerentes às normas ditas programáticas. O próprio STF já se posicionou acerca da plausibilidade de "intervenção" do Judiciário, sem que isto implique na alegada violação à separação dos poderes. Destacamos a ementa da ADPF onde restou consignada a referida possibilidade:

Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do Legislador. Considerações em torno da cláusula da ‘reserva do possível’. Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do ‘mínimo existencial’. Viabilidade instrumental da Argüição de Descumprimento no processo de concretização das liberdades positivadas (Direitos Constitucionais de Segunda Geração). [31]

Nesse diapasão, o Colendo Supremo Tribunal Federal enfrentando a problemática aqui abordada decidiu pela aplicabilidade dos direitos sociais, conforme precedente a seguir transcrito:

Ementa: Recurso Extraordinário. Criança de até seis anos de idade. Atendimento em creche e pré-escola. Educação Infantil. Direito Assegurado pelo próprio texto constitucional (CF, ART. 208, IV). Compreensão global do direito constitucional à educação. Dever jurídico cuja execução se impõe ao poder público, notadamente ao município (CF, ART. 211, § 2º). Recurso improvido.

(...) A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. (...) Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à "reserva do possível". [32]

A despeito da possibilidade de concretização de direitos prestacionais o Presidente do STF, Min. Gilmar Mendes, assegurou que "as demandas que buscam a efetivação da prestação de saúde devem ser resolvidas a partir da análise de nosso contexto constitucional e de suas peculiaridades", lembrou, ainda, que tais decisões têm significado "um forte ponto de tensão perante os elaboradores e executores das políticas públicas, que se vêem compelidos a garantir prestações de direitos sociais", mas ressaltou que o Judiciário não está criando políticas públicas, mas tão-somente determinando o seu cumprimento. [33]

Em decisão referente à efetividade dos direitos prestacionais a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento de embargos de divergência, entendeu cabível o bloqueio de verbas públicas em situações excepcionais, tais como a necessidade imediata da preservação da saúde da pessoa humana (no caso, fornecimento de remédios pelo Estado do Rio Grande do Sul), eis que na ponderação das normas constitucionais deve prevalecer aquele que privilegiar a proteção do bem maior que é a vida [34]. Por fim, cabe acrescer decisão do Tribunal de Justiça de Pernambuco que em acórdão decidiu que:

(...) é obrigação do Estado, ente político-administrativo, em todos os âmbitos zelar pela proteção da saúde dos cidadãos, fornecendo os meios necessários para o combate de patologias graves. O art. 196 da Carta Magna possui elevado alcance social, dispondo sobre direitos fundamentais dos cidadãos, devendo sempre ser prestigiado pelo Poder Judiciário. Não se faz necessário o aguardo do processo licitatório para situações de fornecimento de medicamentos, eis que a própria lei dispensa a concorrência. Enquadramento da hipótese do art. 24, IV, da Lei nº 8.666/93. [35]

A despeito da efetivação já assinalamos o juízo de ponderação dos interesses em jogo, bem como o devido critério proporcional e a adoção de parâmetros plausíveis. [36] Assim, nos reiterados exemplos de fornecimentos de medicamentos temos por cabível a preferência por medicamentos genéricos de eficácia comprovada, a preferência por tratamentos acessíveis no Brasil e, quanto a medicamentos ainda em fase de experimentação é preciso uma análise mais criteriosa. [37]

Malgrado o exposto, nossa opinião é que a atuação do Judiciário deve balizar-se pelo princípio da razoabilidade e proporcionalidade exigíveis na apreciação do caso concreto. Assim, não é por que está previsto no art. 6º da Carta Maior que o trabalho e a moradia são direitos sociais do cidadão que este poderá requerer que o Judiciário imponha ao Executivo tal incumbência.


7. Considerações Finais

A par das exposições acerca do questionamento sobre a reserva do possível e sua função limitadora à concretização dos valores constitucionais, dado que os direitos sociais não teriam eficácia imediata, mostrou-se a posição de alguns doutrinadores e manifestações dos nossos Tribunais sobre o tema abordado.

Importante manifestação acerca do presente assunto é manifestada por Andréas Joachim Krell para quem a Carta Maior confere ao legislador uma margem considerável de autonomia no modo de efetivação de um direito social, cabendo originalmente aos governos e aos parlamentos a definição das possibilidades e meios de efetivação, considerando-se os fatores econômicos de efetivação dos direitos sociais. [38] A priori, o Poder Judiciário, em sendo um poder diverso, não deve intervir na conveniência e oportunidade da Administração Pública na gestão dos recursos, a não ser quando exista uma violação evidente da incumbência constitucional. Expõe que parece cada vez mais necessária revisão do "velho" dogma da separação dos Poderes, mormente em relação ao controle dos gastos do erário com a prestação de serviços básicos no Estado Social, dado que o Legislativo e Executivo não se têm mostrado capazes no cumprimento dos direitos prestacionais. Que muitos juízes e doutrinadores não aceitam que o Estado tenha a obrigação de prover diretamente uma prestação a cada pessoa. Contudo, a negação de qualquer tipo de obrigação a ser efetivada em relação aos Direitos Fundamentais tem como conseqüência o seu não reconhecimento como verdadeiro direito. Destarte, vem crescendo o grupo dos que consideram os direitos princípios constitucionais e as normas sobre direitos sociais como fonte de direitos e obrigações, admitindo a intervenção do Judiciário quando devidamente provocado pelo jurisdicionado via de ação.

Assim, cabe ao Poder Judiciário, em um Estado democrático, atentar-se para o modelo de Estado, de sociedade e de conflitos em que está inserido, evadindo-se da ideologia liberal mais simples de que sua missão se reduziria à proteção da propriedade privada e que as reformas sociais ocorrerão por si mesmas, sem sua participação. [39]

Destarte, entendemos que a cláusula da reserva do possível, não pode servir de critério global de justificativa do Poder Público para servir de óbice à efetivação e concretização dos direitos fundamentais de segunda dimensão. Não obstante, como já exposto, eventuais manifestações do Estado-juiz, quando rompida sua inércia pelo direito de ação assegurado pela Constituição, devem pautar-se nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, eis que eventuais desvirtuamentos de tais princípios tornariam inexeqüíveis as prestações jurisdicionais.

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Sobre o autor
Otegildo Carlos Siqueira

Servidor Público; Pós graduando em Direito Processual Civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA, Otegildo Carlos. Direitos prestacionais: reserva do possível, mínimo existencial e ponderação jurisdicional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2307, 25 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13735. Acesso em: 22 dez. 2024.

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