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O foro privilegiado da mulher.

Breve análise dogmática da norma disciplinada no art. 100, inciso I, do Código de Processo Civil

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Para alguns processualistas, a regra não estaria em plena conformidade com a atual Constituição da República, porque esta contempla a igualdade entre homens e mulheres.

Sumário: 1 Considerações iniciais e delimitação do tema proposto. 2 Conceito e importância dos princípios jurídicos no atual contexto da história. 3 Conflitos entre regras e princípios: soluções a partir das idéias de proporcionalidade e razoabilidade. 4 O princípio da igualdade das partes como uma das normas fundamentais do processo civil moderno. 5 Os questionamentos acerca da (in)constitucionalidade e da incidência do foro privilegiado da mulher disciplinado no inciso n. I do art. 100 do CPC à vista do princípio da isonomia. 6 Conclusões. 7 Referências bibliográficas.


1. Considerações iniciais e delimitação do tema proposto

Desde o advento do Código de Processo Civil de 1939 (CPC/39) [01], o nosso ordenamento jurídico tem contemplado regra especial estabelecendo que, para as demandas de dissolução da sociedade conjugal, o foro competente é o da residência da mulher, como, atualmente, se encontra disciplinado no inciso n. I do art. 100 do atual Código de Processo Civil (CPC), in verbis:

Art. 100. É competente foro:

I – da residência da mulher, para a ação de separação dos cônjuges e a conversão em divórcio, e para a anulação de casamento.

...

Esse preceito normativo, todavia, a partir da promulgação da Constituição da República de 1988, vem sendo alvo de variadas discussões, tanto pela doutrina como pela jurisprudência nacionais, no que diz respeito à sua aplicabilidade e, principalmente, à sua validade no ordenamento jurídico, tendo em vista o princípio constitucional garantidor da isonomia entre homem e mulher, disciplinado no inciso n. I do art. 5º e, também, o princípio da igualdade dos cônjuges na administração da sociedade conjugal, previsto no § 5º do art. 226, ambos da Constituição da República (CR), vazados nos seguintes termos:

Art. 5º. ...

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

...

Art. 226. ...

§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

...

É que, para alguns processualistas, a regra expressa no inciso n. I do art. 100 do CPC não estaria em plena conformidade com a atual Constituição da República porque esta, nos seus dispositivos acima transcritos, contempla a igualdade entre homens e mulheres – ou, mais precisamente, para os fins deste trabalho, a já citada igualdade de direitos e deveres entre esposo e mulher durante a sociedade conjugal – e, portanto, o foro especial nela estabelecido seria manifestamente discriminatório, razão por que dita norma processual teria perdido vigência no ordenamento jurídico brasileiro.

Para outros doutrinadores, todavia, a citada regra de competência, ao revés, se encontraria agasalhada pela nossa Carta política uma vez que a mulher, ainda hoje – em que pesem as suas diversas conquistas alcançadas desde 1988 –, se acharia em situação de desigualdade social e econômica e, por isso mesmo, em posição de hipossuficiência em relação ao homem, sendo necessária, dessa forma, a preservação do foro privilegiado em comento.

Sobre ditas questões é que versa o presente trabalho, ao final do qual, levando-se em conta os limites estreitos deste artigo [02], tenciona-se apresentar ideias que melhor se ajustem às equações dos problema enfocados – isto é, a (in)constitucionalidade e a aplicação prática do inciso n. I do art. 100 do CPC às demandas para as quais ele fora editado –, mediante a análise dogmática do referido dispositivo de lei, a partir da sua interpretação pelos métodos histórico, e teleológico, sem descurar do processo hermenêutico da ponderação empregado na solução de conflitos entre princípios e normas, surgido com a doutrina da argumentação de Robert Alexy, a qual, diga-se a propósito, criou o método de interpretação conforme à Constituição, hoje bastante utilizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para fins de aplicação e controle de constitucionalidade de normas.


2. Conceito e importância dos princípios jurídicos no atual contexto da história

Levando em conta tal propósito metodológico, impende, de antemão, que seja trazido a cotejo para o desenvolvimento deste trabalho, o conceito e a importância dos princípios constitucionais, uma vez que dois deles – quais sejam: o que garante a isonomia entre homem e mulher (CR, inciso n. I do art. 5º) e o que estabelece a igualdade dos cônjuges no casamento (CR, § 5º do art. 226) – serão aqui invocados em diversas passagens com o propósito de buscar-se soluções para os supracitados questionamentos de natureza processual.

Pois bem. Como de sabença, os princípios jurídicos são, na modernidade, preceitos normativos com texturas abertas e dependentes da realidade subjacente que – sem desprezar a importância das regras e o valor da subsunção [03] – não apenas podem ser diretamente aplicados como, outrossim, embasar a elaboração de outras normas que sirvam para o magistrado julgar os casos concretos que são submetidos ao seu crivo.

Essa nova visão sobre os princípios no âmbito do Direito, aliás, teve início com a divulgação das ideias de Ronald Dworkin, cujo cerne se fundava em demonstrar a insuficiência do método subsuntivo para, por si só, servir de instrumento destinado à aplicação das normas, e, assim agindo, ele atacou frontalmente o positivismo jurídico consolidado à época, fazendo surgir, então, o que se passou a chamar de pós-positivismo.

É que, para o referido filósofo americano, o sistema jurídico – sob a ótica de dogmática moderna –, deve ser considerado como um conjunto de regras e princípios, sendo estes últimos a porta de conexão entre o direito e a moral.

Quer dizer: o fenômeno jurídico não pode nem deve, nos Estados constitucionais, ser observado, tão-somente, a partir de processos meramente formais amparados em regras estáticas, distantes da realidade e das considerações morais substantivas de cada sociedade, mas também levando em conta os princípios que afirmam as garantias e os direitos fundamentais do indivíduo. [04]

Em manifesto amparo dessa doutrina revolucionária, despontaram as ideias de Robert Alexy, confirmando, por um lado, o caráter normativo dos princípios, mas, por outro, indicando que, entre estes últimos e as regras de direito, existem diferenças não apenas de ordem conceitual, mas, principalmente, no que diz respeito ao grau de otimização, ou, por assim dizer, no tocante aos seus aspectos qualitativos ou lógicos. [05]

Com efeito, segundo o mencionado jurista alemão, os princípios, no universo do direito, são normas que estabelecem – daí as suas importâncias no ordenamento jurídico de um país – como algo deve ser realizado dentro das possibilidades jurídicas reais existentes, ou seja, da melhor forma possível; e, nesse aspecto, portanto, podem e devem ser, na máxima medida do possível, cumpridos em diferentes graus, levando em conta, para a resolução de um caso particular, não apenas as possibilidades fáticas como, também, as jurídicas. [06]

Um rumo bem diferente se toma quando, para esse mesmo propósito, se acham presentes as regras jurídicas, porquanto estas são normas que, uma vez consideradas válidas, apenas possibilitam o cumprimento dos seus comandos normativos; nada mais que isso.

Dessa forma, analisando as ideias acima expostas, chega-se à conclusão de que, para a nova hermenêutica constitucional, os princípios e as regras constituem espécies do gênero norma jurídica, existindo entre eles, apenas, diferenças peculiares que são evidenciadas a partir da maneira de como será encontrada a solução, em sendo a hipótese de desarmonia, que melhor resolva determinada situação de vida específica suscitada através de uma demanda.


3. Conflitos entre regras e princípios: soluções a partir das ideias de proporcionalidade e razoabilidade

Essa desarmonia, no entanto – que, aliás, é possível ocorrer entre um princípio e uma regra, entre princípios ou entre regras – tem encontrado solução plausível na doutrina da argumentação jurídica de Robert Alexy, que é reconhecida como uma das mais influentes no contorno do modelo pós-positivista, em que pesem as variadas críticas em seu desfavor provenientes de respeitados filósofos e juristas contemporâneos. [07]

É que, para ele – e, diga-se de passagem, grande parte dos doutrinadores modernos que tem acolhido os seus ensinamentos [08] –, as regras são normas que trazem em si mandamentos definitivos, e, por isso mesmo, os direitos que nelas encontram fundamento são também considerados definitivos; ao passo que os princípios são normas a declarar que algo deve ser realizado na medida e da melhor forma possíveis nos planos fáticos e jurídicos que se apresentam na hipótese singular, vale dizer, são mandamentos de otimização, e, portanto, os direitos que nelas encontram respaldo não são reconhecidos como definitivos, mas sim com direitos considerados em determinado aspecto e momento histórico. [09]

Logo, na sua concepção, havendo conflito entre duas ou mais regras para solução de uma determinada hipótese definida no processo, duas soluções diferentes são apresentadas: i) ou se utiliza uma cláusula de exceção que elimine a desarmonia apontada, ou, então, ii) declara-se válida apenas uma das regras, de maneira que as outras sejam totalmente afastadas para fins de resolução do objeto do processo.

Equivale dizer: o modo de aplicação de uma regra jurídica somente poderá ser levado a efeito sob o paradigma do tudo ou nada e, nesse quadrante, ou ela disciplina a matéria em sua inteireza ou então não poderá ser cumprida.

E assim deve ser entendido porque eventual colisão entre regras ocorre no âmbito da validade e, como de sabença, a validade jurídica não pode ser apreciada de forma gradativa, uma vez que se a norma existe, é válida e aplicável a um caso particular, significa que vale também sua consequência jurídica. [10]

Faz-se necessário, para tanto, a utilização de um critério que, mesmo de natureza subjetiva – mas, esclareça-se, sem cometimento de abusos –, imponha um mínimo de segurança jurídica no momento em que o juiz venha a pronunciar a sua decisão, sendo certo que a observância da forma na proporção adequada ao caso específico é também considerada fator de garantia [11].

Dito critério – segundo a doutrina e a jurisprudência –, é a proporcionalidade aliada à razoabilidade, ou seja: o bom senso, levando em consideração os valores sociais então vigentes. [12]

Bem por isso, a utilização dos princípios em um caso singular não ocorre sob o modelo empregado às regras – repita-se mais uma vez, no padrão restritivo do tudo ou nada – mas sim de forma graduada, levando-se em conta as circunstâncias disciplinadas por outras normas ou por situações de vida em determinada época.

Logo, uma vez identificado – para aquela finalidade específica – o princípio de maior peso, o outro ou os outros lhe cedem lugar, sem que esse procedimento jurisdicional provoque qualquer desarmonia entre eles nos planos de existência e de validade; surgindo, daí, o que se passou a entender por interpretação conforme a Constituição, segundo a qual uma norma não deve ser declarada inconstitucional quando, dentre várias interpretações plausíveis e alternativas, apresenta alguma que autorize compatibilizá-la com o texto constitucional como um todo, método este que será adotado neste trabalho para dirimir os questionamentos processuais trazidos a cotejo.

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4. O princípio da igualdade das partes como uma das normas fundamentais do processo civil moderno

No bojo desse conjunto de reflexões inovadoras – as quais, vale o destaque, resultaram no método de trabalho que passou a ser denominado de constitucionalização do processo civil [13] – ganham bastante relevo, notadamente para os objetivos do presente estudo – vários princípios relacionados ao processo. Uns, previstos na Constituição, e, outros, na legislação infraconstitucional.

Entre tais princípios encontra-se o denominado princípio da igualdade, cujo enunciado se acha inscrito no inciso n. I do art. 5º e, também, no § 5º do art. 226, ambos da CR, ao estabelecer, de forma bastante ampla, e como objeto de ideal ético, que homens e mulheres – em regime de sociedade conjugal ou não – são iguais perante a lei. E tal isonomia, anote-se, deve ser compreendida como a equiparação não apenas quanto ao gozo e ao exercício de direitos como, também, à sujeição a deveres e obrigações. Assim, pode-se afirmar que o objeto da referida cláusula constitucional não é, apenas, a disciplina da igualdade das partes no âmbito do direito, mas, principalmente, a prática de uma isonomia real e efetiva levando em conta as situações de vida das pessoas. [14]

Essa igualdade, contudo, não pode e nem deve ser considerada absoluta, uma vez que o princípio em tela proíbe, unicamente, as distinções arbitrárias, ou seja, aquelas que não possuem qualquer fundamento objetivo, ou, ao menos, que possa ser de alguma forma justificável. [15]

No contexto do Processo Civil, pode-se afirmar que esse enunciado – ali chamado de princípio da igualdade processual das partes – impõe ao magistrado que, nos casos concretos submetidos a seu crivo, e, mais, no terreno da sua discricionariedade funcional, assegure às partes tratamento isonômico [16], razão pela qual dita cláusula é invocada nas mais diversas controvérsias envolvendo os bens da vida.

De se concluir, portanto, que o princípio em tela se destina, em primeiro plano, à pessoa do legislador, na medida em que este deve observar o seu mandamento durante o processo de elaboração das leis; e, em segundo plano, ao magistrado, para que este, no âmbito de seu arbítrio, garanta tratamento igualitário às partes, em todas as etapas do processo – a partir da citação, inclusive –, de sorte que nenhuma delas venha a ser privada dos seus direitos.

Tem-se entendido, porém, que essa igualdade de caráter processual – a permitir que as partes, no âmbito do processo, litiguem em regime de paridade de armas – não elimina todas as suas desigualdades, em especial, as que dizem respeito às suas condições sociais e econômicas.

É por isso que também se exige do juiz a busca pela denominada igualdade substancial de tais sujeitos [17], consistente em assegurar-lhes iguais oportunidades de acesso ao Poder Judiciário, a teor do disposto no inciso n. XXXV do art. 5º da CR, sempre que algum fato ou circunstância de ordem externa ao processo venha a colocar qualquer deles em situações de superioridade ou inferioridade em face do outro; como ocorre, por exemplo, na hipótese de fixação da competência jurisdicional para as demandas de separação de cônjuges e a sua conversão em divórcio, bem como para a anulação de casamento (CPC, inciso n. I do art. 100), quando a mulher, em situação de pobreza e sem nenhuma qualificação profissional para o mercado de trabalho, é abandonada pelo marido depois de anos e anos de casamento em que ela fora subjugada à condição de sua simples empregada doméstica e escrava sexual, como sói acontecer em vários rincões desse imenso país continental (vide item n. 5, infra).


5. Os questionamentos acerca da (in)constitucionalidade e da incidência do foro privilegiado da mulher disciplinado pelo inciso n. I do art. 100 do CPC à vista do princípio da isonomia

Dito princípio de igualdade de tratamento entre homem e mulher, a seu turno, tem sido invocado pelos doutrinadores e, também, pelos tribunais brasileiros com o propósito de demonstrar tanto da constitucionalidade como da inconstitucionalidade do inciso n. I do art. 100 do CPC, bem como a possibilidade de sua incidência em hipóteses concretas submetidas ao crivo do Poder Judiciário, quando se tiver em discussão a competência de foro da residência da mulher para as demandas elencadas na regra em foco e, também, outras mais, relacionadas ao Direito de Família em que ela seja parte.

Para os que assim se posicionam, o argumento é o de que a supracitada regra instrumental – frise-se, mais uma vez – não fora recepcionada pela Constituição da República de 1988, porquanto esta, no inciso n. I do seu art. 5º estabelece a igualdade de tratamento entre homem e mulher, e, mais, no § 5º do seu art. 226, a igualdade dos cônjuges na administração da sociedade conjugal [18], repugnando-se, assim, à vista de tais princípios constitucionais, tanto a criação de norma pelo legislador como a prática de qualquer atividade jurisdicional no sentido de dispensar tratamento isonômico às pessoas dos cônjuges. [19]

Outros processualistas, contudo, em sentido diametricamente oposto, asseveram que a norma esboçada no inciso n. I do art. 100 do CPC encontraria albergue na atual Carta política brasileira, porque a mulher, nos dias de hoje – e não obstante as suas várias conquistas no campo social –, ainda se encontraria em situação de manifesta desvantagem em relação ao marido, razão por que dita norma instrumental ainda continuaria plenamente válida no ordenamento jurídico brasileiro, porquanto contemplaria regra que trata desigualmente partes desiguais, isto é, permitiria, em tese, uma discriminação justa. [20]

Em que pesem as plausibilidades de tais argumentos judiciosos, tudo indica que a solução mais adequada para o desiderato da discussão em comento parece estar com os juristas que defendem uma interpretação conforme à Constituição (vide item 3, supra) do dispositivo questionado.

É que, como sabido, nenhuma norma, quer jurídica em geral quer constitucional em particular, traz em si uma compreensão única, ou seja, um propósito válido para todas as situações sobre as quais elas podem incidir – especialmente os direitos fundamentais, cujos enunciados, em geral, são amplos, vagos, maleáveis ou casuísticos –, cabendo ao seu intérprete, à vista dos elementos colhidos da situação concreta, dos princípios que tanto devem ser reconhecidos como preservados e, também, dos fins objetivados pelo ordenamento jurídico, estabelecer os seus significados.

Bem por isso, é de se dizer que a interpretação de uma determinada norma jurídica significa, na modernidade, o ato de revelar-lhe o sentido a partir de elementos colhidos do contexto no qual ela se acha inserida em certo sistema positivo, observando-se, para tanto, a chamada lógica do razoável [21]; já a sua aplicação – que, vale destacar, se confunde com a própria atividade jurisdicional – consiste no ato de realizar e permitir que se realizem atividades processuais na conformidade com o disposto no conteúdo dessa mesma norma. [22]

Com respaldo em tais ideias – e ora lançando-se mão dos métodos histórico e teleológico identificados pela doutrina para fins de interpretação das normas jurídicas em geral –, chega-se à conclusão de que o foro privilegiado disciplinado no inciso n. I do art. 100 do CPC – que, diga-se de passagem, encerra hipótese de competência territorial e, portanto, relativa – deve ser observado somente nas hipóteses concretas em que a mulher esteja, de fato, em situação de manifesta hipossuficiência em relação ao seu esposo, assegurando-se a este, no entanto, todos os meios de prova permitidos em direito para, mediante exceção de incompetência [23], demonstrar que a sua esposa não faria jus ao referido benefício processual, como bem assinala Nelson Nery Jr. e Maria Rosa de Andrade Nery em lição cujo excerto adiante se segue transcrito, in verbis:

No caso do CPC 100 I, há presunção iuris tantum de que a parte débil é a mulher, presunção essa que pode ceder diante de prova em contrário, o que deverá ser feito pelo marido réu, por intermédio da oposição de exceção de incompetência, declinando o foro do seu (do réu) domicílio como o competente, em razão da inexistência da hipossuficiência da mulher. [24]

E assim deve ser compreendido porque, como de sabença, o foro especial em tela foi concedido à mulher numa época em que esta se encontrava em flagrante desigualdade, quer social quer financeira, em relação ao marido, justificando-se esse privilégio, portanto, como forma de suprir tais desvantagens. Hoje, contudo, essa prerrogativa legal não mais se justifica em sua plenitude, pois, dependendo da situação em que a mulher se encontre frente ao seu esposo, pode ou não haver incidência do inciso n. I do art. 100 do CPC, sem que, assim se procedendo, haja desrespeito aos princípios da isonomia e da igualdade dos cônjuges na administração da sociedade conjugal.

De fato, há casos – ainda hoje – em que a mulher continua sendo a parte mais fraca na relação conjugal e, por isso, tem direito ao foro privilegiado da norma em pauta, como, por exemplo, quando, impedida pelo marido de trabalhar fora de casa, restou-lhe, apenas, os afazeres domésticos e a criação dos filhos, fatos que, sem sombra de dúvida, a coloca em regime de dependência financeira dele, uma vez que eles, por si só, a impedem de profissionalizar-se para o concorrido mercado de trabalho. Nesse contexto, avulta-se induvidosamente a constitucionalidade do referido dispositivo processual.

Por outro lado, uma vez restando comprovado pelo marido – por via de exceção de competência, anote-se mais uma vez – que a sua mulher se acha em condições tanto pessoais como financeiras iguais à dele, não deve incidir a citada regra de competência, uma vez que esta, por óbvio, em tal hipótese concreta, será considerada manifestamente inconstitucional, porquanto não estará preservando a igualdade de tratamento das partes.

Essa inconstitucionalidade, aliás, também deverá ser reconhecida quando a intenção da mulher for a de prejudicar a defesa do marido e, mais, quando as demandas de separação tiverem como fundamento fático a sua culpa exclusiva na dissolução do casamento, conforme preclara lição de Celso Agrícola Barbi vazada nos seguintes termos, in verbis:

[...] a amplitude com que o legislador fixou a regra enseja situações talvez não queridas por ele, em que o benefício legal é usado como meio capaz de dificultar a defesa do marido e em ação de separação ou de divórcio em que a mulher seja verdadeiramente a culpada. Há casos em que o abandono do lar é feito injustificadamente pela esposa e o marido terá de propor a ação em foro longíquo, onde ela vive, às vezes, com novo companheiro. [25]

Logo, não resta dúvida de que o preceito contido no inciso n. I do art. 100 do CPC, em determinadas situações de vida, poderá ou não infringir o princípio da igualdade entre homem e mulher, estejam eles em sociedade conjugal ou não (CR, inciso n. I do caput do seu art. 5º e § 5º do seu art. 226). Tudo dependerá, como visto acima, da situação real em que se encontre a mulher em relação ao esposo, podendo ela, inclusive, abrir mão desse benefício processual, propondo a demanda no local de residência do seu marido ou, então, aceitar a prorrogação da competência do juízo ao não arguir exceção de incompetência caso o seu esposo tenha ajuizado a demanda em seu próprio domicílio [26], ou mesmo em qualquer outro local que não seja o foro dela. [27]

Há quem entenda, porém, que o preceito normativo questionado afrontaria a ordem constitucional e, portanto, não mais vige no ordenamento jurídico nacional, conforme se constata do magistério de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald anotado no excerto que adiante se segue transcrito, in verbis:

A corrente majoritária, em sede doutrinária e jurisprudencial, entende que a norma legal em comento é dotada de constitucionalidade. [...] Todavia, não é o posicionamento que merece aplausos. É que, concretamente, efetivando o princípio isonômico proclamado constitucionalmente, não se pode subsistir o privilégio de foro da mulher para as ações de separação judicial e divórcio, decorrente do art. 100, I, do Código de Processo Civil. Considerando que homem e mulher são iguais em direitos e deveres, afronta a ordem constitucional estabelecer que as ações dissolutórias do matrimônio sejam ajuizadas na residência da mulher, escapando à regra geral processual (art. 94, CPC de que as ações devem ser propostas no foro do domicílio do réu. Pensar o contrário significa afirmar que a mulher ainda estaria mais fragilizada em relação ao marido, o que se nos apresenta descabido no estágio evolutivo atual da sociedade. [28]

Os mesmos juristas, contudo, um pouco mais adiante em seu raciocínio teleológico, dão a entender que, embora defendam, em princípio, a plena inconstitucionalidade da citada norma adjetiva, porque ela não se encontraria em consonância com o princípio da isonomia dos cônjuges (CR, § 5º do seu art. 226), compartilham, também, do entendimento no sentido de que ela poderá, em algumas situações especiais concretas, ser invocada pela mulher em seu benefício próprio, citando como exemplo, a dissolução do casamento em que os filhos menores permanecerem sob guarda e responsabilidade da mãe, e, na mesma demanda judicial, existirem interesses infanto-juvenis de tais crianças a ser apreciados e decididos pelo juiz numa mesma sentença.

É que, nesse caso, segundo os referidos processualistas, "[...] a competência deverá ser fixada em razão daquele genitor que estiver com a guarda dos filhos, pouco interessando se o homem ou a mulher" (sic), uma vez que, em tal situação concreta, presente se encontrará uma motivação razoável e lógica para a invocação da norma processual em questão, fenômeno este que a doutrina passou a chamar de discrímen. [29]

E assim manifestando-se, não resta dúvida de que eles também compartilham do entendimento, acima já esposado, no sentido de que o inciso n. I do art. 100 do CPC, na atual conjuntura do ordenamento jurídico brasileiro, ainda continua em vigência e, portanto, pode ser invocado pela mulher para a solução de determinados casos em que sua hipossuficiência reste devidamente comprovada, mediante uma interpretação conforme à Constituição, isto é, levando em conta não apenas o já citado princípio da isonomia entre homem e mulher (CR, inciso n. I do art. 5º), mas, sobretudo, o princípio da igualdade dos cônjuges na administração da sociedade conjugal (CR, § 5º do art. 226).

De se registrar, ainda, por oportuno, que a norma esboçada no inciso n. I do art. 100 do CPC fala em residência [30] e, não em domicílio da mulher, uma vez que, na época em que ele foi editado, vigia no sistema jurídico nacional o princípio norteador de que o domicílio da esposa era o do seu marido (CC/16, art. 36). Hoje, porém, tal disposição não mais existe. Dessa forma, resta claro que é o lugar da residência da mulher que deve ser levado em conta na identificação do foro competente para os fins previstos na regra processual em comento e, para tanto, deve ser levada em conta a sua residência do momento da propositura da demanda em nome do princípio da perpetuatio iurisdictionis. [31]

Na hipótese de a mulher possuir mais de uma residência, deve incidir, no caso, o disposto no § 1º do art. 94 do CPC, isto é, poderá ela ser demandada em qualquer dos seus endereços conhecidos; todavia, não sendo conhecidos nenhum de seus endereços, poderá ela ser demandada no local em que for encontrada ou, então, no domicílio do esposo, aplicando-se, por analogia, a regra disposta no § 2º do art. 94 do CPC, que trata dos foros concorrentes. [32]

Consigne-se, e enfim, que o elenco de demandas esboçado no dispositivo processual em questão vem sendo – com algumas opiniões isoladas em sentido adverso [33] – considerado numerus clausus tanto pela doutrina como pela jurisprudência, razão por que o foro especial ali estabelecido não pode e nem deve ser aplicado ao divórcio direto [34], bem como ao reconhecimento e dissolução de união estável [35], diante do princípio da igualdade entre os cônjuges proclamado pelo § 5º do art. 226 da Constituição da República. Em tais casos, deve ser aplicado a norma geral contida no art. 94 do CPC, ao disciplinar que as demandas devem ser propostas no foro de domicílio do demandado.

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Sobre o autor
José Ronemberg Travassos da Silva

Especialista em Direito Processual Civil Lato Sensu pela Faculdade de Direito de Caruaru - FADIC; Mestrando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP; Professor Universitário e Juiz de Direito do TJPE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, José Ronemberg Travassos. O foro privilegiado da mulher.: Breve análise dogmática da norma disciplinada no art. 100, inciso I, do Código de Processo Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2322, 9 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13813. Acesso em: 2 nov. 2024.

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