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Direito fundamental à diferença

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08/11/2009 às 00:00
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É possível extrair um direito inerente à pessoa humana de ser ela mesma, distinta de qualquer outra, com suas singularidades, seus projetos de vida, e, ainda, de ser respeitado e tolerado pelos seus semelhantes?

Sumário: 1. Introdução • 2. Fundamentos e conceito dos direitos fundamentais da pessoa humana • 3. Direitos fundamentais e democracia • 4. Neoconstitucionalismo e direitos fundamentais • 5. Direitos fundamentais expressos e implícitos • 6. Direito fundamental à igualdade • 7. Índoles formal e material do direito fundamental à igualdade • 8. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade • 9. Igualdade, não discriminação e discriminação ilícita • 10. O fato da diferença • 11. Direito fundamental à diferença • 12. Ações afirmativas: mecanismos de concretização do direito fundamental à diferença. • 13. Conclusão • Bibliografia.

Palavras-chave: Direitos fundamentais da pessoa humana; direito fundamental à igualdade; direito fundamental à diferença.


1. Introdução

A atenção do Estado Democrático de Direito, principalmente depois da segunda grande guerra mundial, está centrada na máxima da dignidade da pessoa humana, núcleo essencial da teorização dos direitos fundamentais, segundo a qual pressupõe a valorização do ser humano em sua plenitude enquanto realidade concreta e individualizada, com seus sonhos e projetos de vida, bem distante do conceito abstrato de pessoa há muito superado.

Diferentes são as maneiras como as pessoas experimentam a vida, entretanto, muitas vezes, ou quase sempre, esses planos de realização pessoal são restringidos ou simplesmente eliminados por uma padronização de comportamentos deveras imposta por aquelas outras pessoas que se sentem reunidas numa rubricada "maioria". E isso provém até mesmo de quem deveria prezar pela manutenção desse pluralismo, o que reclama tomada de decisões.

Nesse contexto, indaga-se sobre a existência de um direito fundamental à diferença na atual sistemática constitucional brasileira, ou seja, se é possível extrair um direito inerente à pessoa humana de ser ela mesma, distinta de qualquer outra, com suas singularidades, seus projetos de vida, e, ainda, de ser respeitado e tolerado pelos seus semelhantes.


2. Fundamentos e conceito de direitos fundamentais da pessoa humana

O pensamento cristão primitivo, a concepção dos direitos naturais e o iluminismo consistiram, segundo a doutrina francesa, nas principais fontes de inspiração filosófica das declarações de direitos fundamentais da pessoa humana. Entretanto, foram superadas pelo processo histórico-dialético das condições econômicas, mormente diante de um cenário de submissão do proletariado à burguesia capitalista, sobrevindo, então, outras fontes inspiradoras dos direitos fundamentais, como o Manifesto Comunista e as doutrinas marxistas, a doutrina social da Igreja e o intervencionismo estatal. [01]

É possível encontrar, certamente por conta desse conteúdo histórico, um sem-número de denominações de tais direitos, dentre as quais a expressão direitos fundamentais da pessoa humana mostra-se a mais adequada. São fundamentais, porque indicam situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, convive ou sobrevive. [02]Da pessoa humana indica uma universalidade, com a inclusão de todos os indivíduos humanos, tratando-se, pois, de expressão muito mais precisa e ampla que homem, designação um tanto quanto superada no Direito atual, [03] reservada para apenas quando se refira ao ser humano do sexo masculino.

Nessa esteira, também não se deve usar indiferentemente a expressão direitos humanos como se sinônimo fosse de direitos fundamentais, uma vez que aquela designação é preferida entre os constitucionalistas anglo-americanos e latinos, bem como é mais adequada ao âmbito do direito internacional; já a nomenclatura direitos fundamentais tem maior aceitação pelos autores germânicos. [04] Sobre o tema, explica J. J. Gomes Canotilho que as expressões "direitos do homem" e "direitos fundamentais" são freqüentemente utilizadas como se sinônimas fossem. Entretanto, segundo suas origens e significados são distintas: direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espaço-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta. [05]

No que se refere ao conceito de direitos fundamentais da pessoa humana, Konrad Hesse estabelece que são aqueles direitos que o ordenamento jurídico vigente de cada nação qualifica como tais, com a finalidade de criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e dignidade humana. De modo complementar, Carl Schmitt, por sua vez, aponta seu conceito segundo dois critérios: um formal, em que direitos fundamentais são aqueles nomeados e especificados na constituição, aos quais foi emprestado um grau mais elevado de garantia ou de segurança – imutáveis ou de mudança dificultada; e outro material, segundo o qual os direitos fundamentais variam consoante a concepção ideológica, a modalidade de Estado e os valores e princípios consagrados na constituição, ou seja, cada qual tem seus direitos fundamentais específicos. [06]

Dentre os constitucionalistas nacionais, de forma coesa, José Afonso da Silva arremata ao conceituar os direitos fundamentais da pessoa humana como "situações jurídicas, objetivas e subjetivas, definidas no direito positivo, em prol da dignidade, igualdade e liberdade da pessoa humana". [07]


3. Direitos fundamentais e democracia

A importância e significado que os Estados Democráticos de Direito têm atribuído aos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana em suas constituições é nítida. Inexorável se tornou, a qualquer interpretação constitucional, uma análise tendo por pressuposto o regime jurídico dos direitos fundamentais, como forma mesmo de sua preservação.

Numa relação de intensa reciprocidade, hodiernamente, ao mesmo tempo em que os direitos fundamentais refletem a maior ou menor força da democracia de uma determinada sociedade, um Estado caracterizado como democrático é conditio sine qua non para realização desses mesmos direitos fundamentais da pessoa humana. Nesse sentido, Paulo Gustavo Gonet Branco considera que os direitos fundamentais da pessoa humana, para serem eficazes, tornam-se indissociáveis do conceito de democracia, não subsistindo aqueles fora do contexto desse regime político. Os direitos fundamentais estão na essência do Estado Democrático e funcionam como limites do poder estatal e como diretrizes para atuação de todos os poderes constituídos, influenciando sobre todo o ordenamento jurídico. [08] Daí porque a "democracia é o regime de garantia geral para a realização dos direitos fundamentais do homem". [09]

Logo se vê que os direitos fundamentais da pessoa humana vão além do aspecto da garantia de posições individuais para alcançar o status de normas que filtram os valores básicos da sociedade política e que permeiam por todo o direito positivo. São, pois, a base do ordenamento jurídico de um Estado Democrático. [10]

Os direitos fundamentais da pessoa humana são considerados o oxigênio das constituições democráticas e sua teorização tem importância capital para a finalidade de apontar os rumos do Estado e guiar a jurisprudência em seu trabalho de exegese. [11] Por conta dessa intrínseca relação entre direitos fundamentais e o regime democrático é que se pode avocar a conhecida concepção de Lincoln, em que a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo, [12] entendido aqui como conjunto de seres humanos que compõem uma nação. Infere-se, então, que o regime político democrático consiste num governo das pessoas humanas em proveito dessas mesmas, titulares daqueles direitos fundamentais.

No Brasil, percebe-se do próprio Preâmbulo e do art. 1º da Constituição da República a instituição de um Estado Democrático de Direito com a precípua finalidade de assegurar o exercício dos direitos fundamentais, sociais e individuais, como a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, encarados como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos e com fundamento na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho, da livre iniciativa e no pluralismo político.


4. Neoconstitucionalismo e direitos fundamentais

A teorização dos direitos e garantias fundamentais, fundada na dignidade do ser humano, é elevada ao status de maior contribuição do constitucionalismo elaborado no momento posterior a segunda grande guerra, principalmente com a promulgação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, em Paris, pela Assembléia Geral da ONU. Transcendendo para um plano supra-estatal, tal declaração tem a natureza de norma geral de ação para todos os povos e todas as nações, em que todos os direitos proclamados são inerentes a todas pessoas humanas, sem qualquer distinção. [13]

Com efeito, Luis Roberto Barroso aponta os marcos histórico, teórico e filosófico que definem o novo Direito Constitucional ou neoconstitucionalismo, inferindo que a elaboração da teoria sobre os direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade da pessoa humana, ao lado do pós-positivismo e da reaproximação entre o Direito e a Ética, são os principais tópicos do marco filosófico. [14] Com a nova direção do Direito Constitucional, assumem os direitos fundamentais da pessoa humana posição privilegiada, com efetivo destaque dado pelas constituições posteriores.

A Constituição da República de 1988, em sintonia com esse pensamento, atribuiu significado diferenciado aos direitos fundamentais da pessoa humana e exemplo disso é a constatação de um rol extenso e minucioso, porém não exaustivo, dos direitos fundamentais no início do texto constitucional (Título II), além de outros tantos espalhados ao seu longo (v.g., art. 1º, 3º, 193 e ss, 225, etc). A amplitude conferida em especial ao conteúdo do art. 5º da CR/88, que se desdobra em setenta e oito incisos e quatro parágrafos, reforça a compreensão sobre a posição de destaque que o constituinte quis outorgar aos direitos fundamentais, estabelecendo que são elementos integrantes da identidade e da continuidade da Constituição, isto é, rubricou-os com a cláusula de eternidade, tornando ilegítima qualquer tentativa de reforma constitucional tendente a suprimi-los (art. 60, § 4º). [15]

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Certamente por conta desse perfil centrado nos direitos fundamentais é que, em seu prefácio intitulado "A Constituição Coragem", Ulisses Guimarães expôs que a CR/1988, "diferentemente das sete Constituições anteriores, começa com o homem [...] Geograficamente testemunha a primazia do homem, que foi escrita para o homem, que o homem é seu fim e sua esperança, é a Constituição cidadã". [16]


5.Direitos fundamentais expressos e implícitos

Ponto importante sobre a teoria dos direitos e garantias fundamentais do ser humano, especificamente no caso brasileiro, é a questão do enorme rol trazido pelo constituinte. A despeito de ser detalhado e extenso, não há nele o caráter exaustivo (numerus clausus), sendo dominante o entendimento de se tratar de uma relação meramente exemplificativa, como bem se extrai do § 2º, do art. 5º, da CR, segundo o qual "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

O significado histórico de tal enunciado de ilimitação de direitos fundamentais é ensinado por Celso Ribeiro Bastos, para quem este preceito vem figurando nos textos constitucionais brasileiros desde 1891. Para o professor, a inspiração encontra-se na Constituição dos Estados Unidos, que diz: "A enumeração de certos direitos na Constituição não deverá ser interpretada como anulando ou restringindo outros direitos conservados pelo povo". Esse dispositivo fazia muito sentido, sobretudo em face da concepção jusnaturalística sobre o direito então vigente. Assim, o esquecimento ou a deliberada não inclusão de direitos já reconhecidos em nível de costumes não implicava uma revogação da constituição. No caso do Brasil, o significado é um tanto diferente, porque não se trata de "direitos conservados pelo povo", mas sim a outros, decorrentes do regime de princípios por ela adotados. [17]

Com efeito, a Constituição da República de 1988, na primeira metade daquele parágrafo, deixa de maneira insofismável a existência de direitos fundamentais implícitos ou decorrentes, extraídos do regime e dos princípios constitucionais adotados. Nesse sentido, Alexandre de Moraes, mencionando decisão do Supremo Tribunal Federal (Adin nº 939-7/DF), aponta que foram referidos, por força daquele § 2º, o princípio da anterioridade tributária (art. 150, III, b), os direitos e garantias sociais (art. 6º e ss), os direitos inerentes à nacionalidade (art. 12 e 13) e os direitos políticos (art. 14 e ss) como pertencentes à categoria de direitos e garantias individuais, logo, imodificáveis (art. 60, § 4º, IV). [18] Há outros exemplos de direitos fundamentais implícitos, dentre eles a cláusula da proporcionalidade, decorrente do aspecto substancial do direito fundamental ao devido processo legal (art. 5º, LIV), que comporia o chamado bloco de constitucionalidade, e o princípio do duplo grau de jurisdição, extraído da previsão constitucional da existência de tribunais e juízes e de recursos (art. 92 e posteriores).

Na parte final do § 2º em estudo, também se vê a possibilidade de inclusão de direitos fundamentais decorrentes de tratados internacionais em que o Brasil seja signatário, sendo apontados, como exemplos, o direito de resistência [19] e a vedação de prisão civil do depositário infiel. A questão ganhou maiores contornos após a Emenda Constitucional nº 45/2004 que acresceu o § 3º ao art. 5º e trouxe a possibilidade de equivalência dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos às emendas constitucionais.

Entrementes, em que pese a ampla aceitação da doutrina e jurisprudência, a idéia de direitos fundamentais decorrentes não escapa às críticas, especialmente no que concerne, segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ao fenômeno da "inflação" dos direitos fundamentais formais, num processo de desprestígio e desvalor dos direitos de cunho material. [20] Daí ser mister grande zelo no trato dos princípios e regimes constitucionais no trabalho de identificação de direitos fundamentais da pessoa humana implícitos ou decorrentes, como forma mesmo de sua proteção jurídica.


6. Direito fundamental à igualdade

Já foi destacada a importância da relação mútua existente entre direitos fundamentais da pessoa humana e Estado Democrático de Direito. Aqueles não sobrevivem, tampouco se realizam, sem este. E a recíproca é verdadeira. A democracia é o regime político que garante a realização dos direitos fundamentais, enquanto estes se acham no núcleo essencial do ordenamento jurídico dos Estados Democráticos, limitando e direcionando a atuação dos poderes constituídos.

Nessa linha, observa-se que dentre os direitos fundamentais é atribuído um destaque à cláusula da isonomia, na medida em que é tido como "signo fundamental da democracia". [21] Cármen Lúcia Antunes Rocha o considera bem "mais que uma expressão de Direito; é um modo justo de se viver em sociedade. Por isso é princípio posto como pilar de sustentação e estrela de direção interpretativa das normas jurídicas que compõem o sistema jurídico fundamental". [22] Corroborando, Paulo Bonavides assevera que a isonomia, de maneira induvidosa, é o centro modular do Estado Social e de todos os direitos de sua ordem jurídica. Segundo o autor, de "todos os direitos fundamentais a igualdade é aquele que mais tem subido de importância no Direito Constitucional de nossos dias, sendo, como não poderia deixar de ser, o direito-chave, o direito-guardião do Estado Social". [23]

O liame entre direito fundamental à isonomia e democracia é de tal profundidade que a igualdade é concebida como um dos princípios informadores daquele regime político, ao lado dos princípios da liberdade e da maioria. Em sua obra, Aristóteles afirmava que na demo-cracia o governo é dominado pelo número (maioria) e que sua alma consiste na liberdade, sendo todos iguais. A igualdade, assim, é o primeiro atributo que os democratas põem como fundamento e fim da democracia. Logo, toda democracia tem por fundamento o direito de igualdade e tanto mais acentuada será a democracia quanto mais se aprofunda na igualdade. [24]


7. Índoles formal e material do direito fundamental à igualdade

O direito fundamental à igualdade deve ser compreendido em suas dimensões formal e material. É plausível e justificável que a acepção formal resta absorvida pela material, completando o significado do princípio da isonomia, do qual são manifestações.

As constituições elaboradas após e com fundamento nas revoluções estadunidense e francesa sempre inscreveram o princípio da isonomia em seu sentido meramente formal, cujo conteúdo significa que a lei é igual para todos, inadmitindo-se privilégios, ou, noutros termos, a todas as pessoas é atribuído o mesmo valor perante a lei, vedando-se a discriminação. Nesse norte, é a afirmação cunhada no art. 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, em que as pessoas nascem e permanecem iguais em direito.

Na lição de Pimenta Bueno, a "lei deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania". [25] Trata-se, pois, em sua vertente formal, de um princípio de dimensão negativa, na medida em que rechaça o tratamento desigualitário ante o ordenamento jurídico. Todavia, não propõe qualquer tomada de ações ou comportamentos concretos (materiais) de mitigação das desigualdades de fato. Nessa acepção negativista, o princípio da "igualdade não deixa espaço senão para a aplicação absolutamente igual da norma jurídica, sejam quais forem as diferenças e as semelhanças verificáveis entre os sujeitos e as situações envolvidas". [26]

Com efeito, desde o Império, as constituições brasileiras contiveram o direito fundamental à igualdade em sua índole formaligualdade perante a lei ou igualdade jurídica, no sentido de que a ordem jurídica trata todos de maneira igual, sem quaisquer distinções. Todavia, a compreensão do atual art. 5º, caput, que expressa o princípio da igualdade em seu contorno formal, não pode ser tão estreita, devendo ser aferido com outras normas constitucionais, especialmente com as exigências de justiça social. [27]

Vê-se, portanto, que a dimensão formal da igualdade é insuficiente, não se coadunando a atual concepção de Estado Democrático de Direito. Daí porque a Constituição da República de 1988 quis aproximar as duas faces da isonomia, formal e material, uma vez que não se limitou ao mero enunciado da igualdade perante a lei, mas acrescentou vedações a distinções de qualquer natureza e qualquer forma de discriminação, [28] conforme se depreende, v.g., do art. 3º, III e IV; art. 5º, I; e art. 7º, XXX e XXXI.

A concepção material do direito fundamental à igualdade está assentada no conhecido pensamento filosófico de Aristóteles incorporado ao discurso jurídico para se apreender o significado da cláusula geral da igualdade, [29] em que o estagirita vinculou a idéia de igualdade à noção de justiça. Segundo tal pensamento, deve-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. [30] Mas tal enunciado secular sobre o preceito da igualdade não está imune a observações. Como bem anota Celso Antônio Bandeira de Mello, o ensinamento aristotélico é insuficiente ao desate da questão da igualdade, pois, ao instante que lhe reconhece a validade como ponto de partida, nega-lhe o caráter de termo de chegada, na medida em que "entre um e outro extremo serpeia um fosso de incertezas cavado sobre a intuitiva pergunta que aflora ao espírito: Quem são os iguais e quem são os desiguais?" [31]

Argumentando que a fórmula da igualdade de Aristóteles não possui caráter auto-explicativo e, ainda, demonstra elevado grau de indeterminação, Wilson Steinmetz procura fundamentos no pensamento de Robert Alexy, que densifica a máxima geral da igualdade com um cruzamento entre o clássico pensamento "tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais" e o entendimento da Corte Constitucional Germânica que se resume à existência de uma "razão razoável" como justificativa tanto para o tratamento igual quanto para o desigual. Desdobrando em duas regras específicas, dessarte, Alexy conclui que: i) "Se não há nenhuma razão suficiente para a permissão de um tratamento desigual, então está ordenado um tratamento igual"; e ii) "Se há uma razão suficiente para ordenar um tratamento desigual, então está ordenado um tratamento desigual". [32]

Esse, igualmente, é o entendimento de Carmen Lúcia Antunes Rocha, para quem o direito fundamental à igualdade não deve apenas tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades, mas deve, ainda, erradicar as desigualdades criadas pela própria sociedade, estabelecendo os limites e as condições em que as desigualdades podem reclamar tratamentos desiguais sem que isto constitua a abertura de uma fenda legal maior e uma desigualação mais injusta. [33]

Infere-se, então, que a dimensão material do direito fundamental à isonomia supera a igualdade perante a ordem jurídica (formal), estendendo o conceito de sujeito de direitos de maneira a alcançar o ser humano em sua plena concretização, isto é, em sua realidade existencial, sempre distinta e individual. Abandona-se a velha concepção abstrata de pessoa sujeito de direitos (na maioria das vezes homem, branco, alto, com saúde e sem deficiências físicas e rico) para se reconhecer as diferenças e particularidades de cada um, em homenagem à realização da dignidade do ser humano.

Dessa forma, a índole material ou substancial da cláusula constitucional da igualdade reclama, além da não discriminação perante a lei, uma atitude positiva por parte do Estado Democrático de Direito no sentido de promover oportunidades a todos através de suas normas e políticas públicas, com a finalidade de reduzir as desigualdades de fato, atentando-se para as individualidades daqueles menos favorecidos ou excluídos do grupo social. Nesse exato contexto de realização concreta e efetiva do direito fundamental à igualdade é que se situa, como poderoso instrumento desse processo de inclusão social, as ações afirmativas, [34] viabilizando-se o implemento da isonomia nos aspectos econômico, político, social e jurídico.

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Sobre o autor
Marcelo Monteiro Torres

Analista Jurídicio do Ministério Público de Mato Grosso. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORRES, Marcelo Monteiro. Direito fundamental à diferença. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2321, 8 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13821. Acesso em: 27 abr. 2024.

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