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Direito fundamental à diferença

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08/11/2009 às 00:00
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8. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade

O conteúdo jurídico do princípio da igualdade foi analisado por Celso Antônio Bandeira de Mello, que estabeleceu algumas premissas de orientação no tratamento da cláusula magna da igualdade no intuito de se reconhecer quais diferenciações estariam autorizadas, ou desautorizadas, sem que houvesse qualquer quebra da isonomia. O primeiro critério se refere ao elemento adotado como fator de desigualação; o segundo se cinge à correlação lógica abstrata existente entre o fator de discrímen e a disparidade determinada no tratamento jurídico desigual; e o último se reserva à consonância entre àquela correlação lógica e os interesses erigidos pelo sistema constitucional. [35]

Adverte que é necessária a conjunção dos três aspectos para que se tenha uma análise exata do problema, ou seja, para que dada norma jurídica seja qualificada como isonômica é mister que observe cumulativamente àqueles critérios. Reversamente, para que certa situação seja desqualificada pelo princípio da igualdade é suficiente a hostilidade a um daqueles aspectos, qualquer que seja, nada obstante poder desacatar aos três de forma concomitante. [36]

No que atine ao critério primeiro – fator de diferenciação, desdobra-o em dois requisitos, a saber: a) a norma jurídica não pode eleger como fator de discriminação um traço tão específico que individualize atual e definitivamente, de maneira absoluta, um sujeito a ser atingido pelo regime diferenciado; e b) o fator de desigualação adotado deverá residir na pessoa, coisa ou situação a ser discriminada, sendo que os elementos alheios, não existentes nelas mesmas, não poderão justificar regimes diferentes. Segundo Mello, é "inadmissível, perante a isonomia, discriminar pessoas, situações ou coisas [...] mediante traço diferencial que não seja nelas mesmas residentes". [37]

Sobre o segundo aspecto, a existência de correlação lógica entre o fator de discrímen e a desequiparação legal é tida como ponto nodular para a análise de determinada situação jurídica em face do princípio da igualdade. Assim, é necessária a investigação, de um lado, daquilo que é escolhido como critério de discriminação e, de outro, se há justificativa racional (pertinência lógica) para lhe atribuir tratamento jurídico desigual. [38]

Além disso e por fim, requer-se que o liame existente entre o fator de discrímen e seu tratamento diferençado tenha um fundamento lógico concreto, isto é, que tenha pertinência com os interesses acolhidos pela Constituição. Logo se vê que não é qualquer diferença, em que pese real e logicamente explicável, que possui suficiência para discriminações legais. [39]

Dessarte, atento às premissas acima mencionadas, Mello conclui que há desacato ao princípio da igualdade: I – quando a norma jurídica singularizar, no presente e de maneira definitiva, um indivíduo determinado, ao invés de prestigiar uma categoria de pessoas ou uma pessoa futura e indeterminada; II – quando a norma acolher critério diferenciador que não se situa nas pessoas, coisas ou fatos; III – quando a norma não possuir correlação racional em abstrato entre o fator de discrímen e o regime diferençado conseqüente; IV – quando a norma jurídica estabelecer discrímen cujos efeitos são contrapostos ou dissonantes dos valores prestigiados constitucionalmente; e, finalmente, V – quando da interpretação da norma jurídica se extrair desequiparações que não foram reconhecidas por ela claramente, ainda que pela via implícita. [40]


9. Igualdade, não discriminação e discriminação lícita

A reflexão acerca do princípio constitucional da igualdade necessariamente conduz, por acréscimo, à compreensão do princípio da não discriminação, na medida em que estão intimamente relacionados. [41] Nada obstante, a expressão discriminação [42] está bem conhecida no ordenamento jurídico e na sociedade com uma conotação pejorativa, equiparando-se a noção de preconceito. Todavia, em sua raiz, discriminar significa distinguir; discernir, diferençar, separar ou, no contexto que aqui mais interessa, estabelecer diferenças. [43]

O Supremo Tribunal Federal, em caso interessante [44] de colisão entre o direito funda-mental à liberdade de expressão e à isonomia, teceu algumas linhas sobre a questão da igualdade e observou o quanto Constituição da República de 1988 repugna a discriminação ilícita a ponto de, além de consignar sua vedação em diversas normas (e.g., art. 3º, IV; art. 5º, XLI; art. 7º, XXXI; e art. 227), firmar uma exceção à prescritibilidade das infrações penais.

Dessarte, a discriminação só assumiria caráter ilícito ou odioso quando a situação desacatar os direitos fundamentais do ser humano com base em critérios injustificados, injustos, frutos de preconceitos, de opiniões preestabelecidas e prejulgamentos negativos, com a finalidade de estigmatizar pessoas ou coletividades através estereótipos. [45] Mas não se pode generalizar afirmando-se que toda discriminação é odiosa ou dissociada dos ideais isonômicos, ocorrendo que, em muitas situações, determinar uma diferença (discriminar) torna-se inevitável e mister para a realização da própria cláusula igualitária e, por via direta, da dignidade humana. [46]

Exatamente nesse rumo é que se discorre sobre o conteúdo do princípio da igualdade e, também, da diferença. Dessarte, deve-se aferir, com severidade extrema, se há correlação lógica (fundamento racional e abstrato) entre os fatores adotados como diferenciais, encontrados em pessoas, coisas ou situações, e a desigualação submetida, bem como, se há pertinência (fundamento concreto) dessa distinção aos preceitos da Constituição. Somente com o concomitante respeito a todos esses aspectos que estará legitimado o tratamento desigual àqueles tidos como diferentes.

Fala-se, então, em discriminação lícita ou, na expressão de Rosenfeld, [47]discriminação in bonam parte, em que, no parecer de Joaquim Benedito Barbosa Gomes, revela-se inevitável em função de determinadas características pessoais dos indivíduos de determinada parcela da sociedade, o que exclui por princípio e com boa dose de razoabilidade outras categorias de pessoas. [48]

A necessidade de discriminação (lícita), ou tratamento diferençado, daqueles componentes de grupos que possuam um traço justificador de tal distinção, como forma indissociável de satisfação da isonomia enquanto pressuposto da plena dignidade humana, do respeito ao pluralismo e como exigência do regime democrático.


10. O fato da diferença

O Brasil é uma nação [49] extremamente diferente. Trata-se de um país que encerra tantos outros dentro de si: há inúmeros e diferentes Brasis, [50] traduzidos em grupos humanos distintos por aspectos como idade (nascituro, crianças, adultos e idosos), sexo (homem e mulher), origem (nacionais, naturalizados e imigrantes), raça (branco, negro, indígena, etc.), condição econômica (miseráveis, pobres e ricos), saúde (portadores de deficiência física ou mental, de Aids), condição social, escolaridade, cultura, credo religioso, convicção filosófica e tantos outros. Aspectos geográficos também contribuem decisivamente para essa diversidade, como a extensão territorial, clima, vegetação, solo, na medida em que o a pessoa humana neles se insere e tem de se adaptar às suas peculiaridades.

O reconhecimento e o respeito a esse pluralismo passam por um inexorável vínculo com a idéia dignidade da pessoa humana, erigidos, pois, pelo constituinte originário de 1988 ao status de fundamentos do Estado Democrático de Direito, ex vi art.1º, incisos III e V, da Constituição da República, o que reclama e exige especiais posturas estatais de proteção daqueles que são diferentes em razão de quaisquer fatores.

Dignidade, pluralismo, diferenças, igualdades e tolerância são conceitos e situações jurídicas que caminham de mãos dadas, paralelamente situadas na compreensão do novo Direito Constitucional marcado, em seu aspecto filosófico, pela teorização dos direitos fundamentais alicerçados na dignidade da pessoa humana. [51]

Daí que, com base nesses referenciais e definições anteriormente mensuradas, torna-se mister estabelecer se é possível determinar a existência de um direito fundamental de ser diferente no atual contexto constitucional brasileiro.


11.Direito fundamental à diferença

A idéia de um direito fundamental à diferença estatuído na Constituição da República de 1988, mesmo com muito esforço hermenêutico, não pode ser compreendida sob uma rubrica expressa, na medida que o constituinte assim não o quis ou não possuía carga cultural suficiente para compreender esta necessidade, mas isso em nada lhe retira a legitimidade. Em que pese o extensivo rol de direitos fundamentais, claramente exemplificativo, não há norma constitucional explícita estabelecendo que é direito de todos o respeito a suas diferenças, sejam elas de qualquer natureza.

Noutro lado, também não há na Constituição qualquer tentativa de negar-lhe existência. É certo, porém, que em muitos pontos o constituinte vedou a discriminação, inclusive gravando com a cláusula da imprescritibilidade, como visto anteriormente, mas esse impedimento sinaliza para aquelas práticas ilícitas, nada falando, pois, sobre a diferenciação de cunho lícito, isto é, legítima em razão das particularidades do caso concreto

Dessa maneira, a compreensão da existência do direito à diferença passa necessariamente pela fenda do § 2º, art. 5º, da Lei Maior, analisado anteriormente, segundo o qual, autoriza-se a extração de direitos fundamentais implícitos, decorrentes do regime e dos princípios constitucionais adotados. Com efeito, o direito fundamental de ser diferente, e de ser respeitado por conta de seus fatores diferenciais, está subentendido nos princípios constitucionais, mais especificamente, na dimensão substancial do direito fundamental à igualdade (art. 5º, caput), bem como decorre de elementos encontrados nos princípios fundamentais estatuídos pelo constituinte consistentes na democracia, dignidade humana e pluralismo (art. 1º, caput e incisos III e V).

No que se refere à cláusula geral da isonomia, a Constituição o afirma na cabeça do art. 5º, assegurando que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Aqui, como já tratado, a norma constitucional consagrou a índole formal da igualdade, que não é o bastante, pois é preciso ir adiante do que simplesmente estatuir a igualdade diante do ordenamento jurídico; este mesmo sistema de normas, como produção estatal, deve dispor de tudo quanto possível para assegurar os direitos de certas categorias diferençadas.

E esta iniciativa é dada pela própria Lei Fundamental que em diversas passagens atribui tratamento desigual para situações desiguais, diferenciando aqueles que realmente são diferentes em razão de algum fator racionalmente explicável, a exemplo: art. 3º, III (estabelece como objetivos fundamentais a erradicação da pobreza e marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais); art. 5º, VIII (reconhece a pluralidade de crenças religiosas, filosóficas e políticas), XLVIII (distingue os apenados de acordo com a sua idade, sexo e natureza da infração penal), L (homenageia a maternidade das presidiárias e a importância da amamentação) e LXXIV (garante assistência jurídica aos necessitados através da Defensoria Pública – art.134); art. 7º, XII (garante salário-família ao trabalhador de baixa renda), XX e XXXI (protegem o mercado de trabalho da mulher e daqueles que portam alguma deficiência) e XXXIII (proíbe o trabalho infantil); art. 12, § 3º (elenca cargos privativos de brasileiros natos); art. 170, VI e IX (dão tratamento diferenciado a produtos e serviços conforme seu impacto ambiental, bem como às pequenas empresas nacionais); art. 201, § 7º, I e II, e § 8º (definem tempos de serviço e contribuição diferentes para homens, mulheres e profissionais do magistério); art. 203 (garante assistência social aos necessitados); art. 206 (garante educação com liberdade, pluralismo de idéias e concepções pedagógicas, e com gratuidade nos órgãos oficiais), art. 210, § 2º, e art. 230 (reconhecem a língua e o ensino, enfim, a cultura indígena); art. 215, § 1º (protege as manifestações culturais populares, indígenas, afro-brasileiras e outros grupos) e § 3º, III (promove a valorização da diversidade étnica e regional); art. 217, III (concede tratamento diferente para esportes não profissionais); art. 226, §§ 3º e 4º (reconhecem as diversas formas de entidade familiar); art. 230, § 2º (garante a gratuidade de transportes coletivos aos idosos), entre outros.

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Depreende-se, então, que a dimensão material do princípio magno da igualdade muito se aproxima e se dirige à noção do direito fundamental à diferença, uma vez que, como visto, substancialmente a isonomia reclama, muito mais que o mero tratamento eqüitativo perante a norma jurídica, uma tomada de decisões e posturas públicas concretas no sentido de se efetivar as individualidades e garantir que as diferenças existentes em determinados grupamentos humanos sejam homenageadas num processo de inclusão social.

A esse propósito, Luigi Ferrajoli explana que as dimensões (formal e material) da isonomia jurídica podem ser definidas como igualdade nos direitos fundamentais e é através destes que a igualdade em ambas as índoles é assegurada ou perseguida. Assim, seria diversa a natureza desses direitos (igualdade formal e igualdade material) conforme sua relação com as desigualdades de fato e, precisamente, discorre que são as garantias dos direitos de liberdade que asseguram a igualdade substancial ou social: umas garantias tutelam as diferenças, das quais se postula tolerância; outras removem e compensam as desigualdades postuladas como intoleráveis. Em relação às primeiras, Ferrajoli afirma que são direitos à diferença, isto é, direito a ser si mesmo e permanecer uma pessoa diversa das outras; enquanto que as outras garantias seriam direitos à compensação pelas desigualdades. Por fim, conclui que no primeiro caso a diversidade é um valor de garantia e, ao inverso, no segundo é um desvalor a se combater. [52]

Logo, o princípio constitucional da isonomia e direito fundamental à diferença, decorrente do primeiro, estariam um para o outro tal qual estão as faces da mesma moeda. Nesse sentido, Álvaro Ricardo Souza Cruz [53] abertamente explana sobre o direito à diferença como consectário de uma reconstrução da teoria dos direitos fundamentais, calcada na dignidade humana e no pluralismo cultural, núcleo do atual estágio da democracia. In verbis:

Chegamos ao ponto central de nossas preocupações. Como diferenciar sem violentar? É possível discriminar sem ofender a noção de dignidade humana? [...] Para tanto é preciso reconstruir, tal como fizemos, o conceito de direito fundamental e, em especial, o direito à igualdade e seu irmão univitelino, o direito à diferença. Esta reconstrução se faz necessária para uma sociedade marcada pela injustiça. [...] O papel do Direito é ser instrumento de transformação social para o resgate de direitos ainda hoje não realizados, cabe, pois, inevitavelmente, estabelecermos o caminho de reconstrução dos direitos fundamentais estabelecido pelo paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito. (grifamos)

Nas lições de Boaventura de Souza Santos, citado por Flávia Piovesan, [54] possuímos o direito de ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza, sendo mister uma igualdade que reconheça as diferenças e uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades.

Com efeito, há uma necessidade, atual e eminente, de se conviver com as diferenças, como forma mesmo de realização da dignidade da pessoa humana diferente, mormente quando a Republica Federativa do Brasil se declara uma comunidade democrática, aberta ao pluralismo, confessando que ao seu abrigo existe uma diversidade de planos e pensamentos de vida por parte de seus indivíduos ou grupos deles, todos com sua importância e decisivos no fortalecimento da democracia, o que mitiga, portanto, a padronização de comportamentos, na maioria das vezes imposta por força das intituladas "maiorias" que ainda insistem das fomentar a discriminação ilícita e a exclusão social.

Existem muitas diferenças entre os brasileiros, e que maravilha, porque existem muitas culturas, muitas cidades, muitas gírias e muitos rios, mas não é porque temos diferenças que precisamos ser adversários. Não! Pelo contrário: a aventura da vida torna-se cada vez mais empolgante quando há respeito pelo que nos diferencia. [...] Todos precisam ser respeitados nas suas diferenças. Condenar alguém ou excluí-lo porque tem raça, religião ou cultura diferente da nossa é grande prejuízo. Literalmente: pré-juízo! Julga-se previamente sem conhecer, sem averiguar, sem ouvir o outro só porque não é desse ou daquele grupo. [55]

Nesse contexto de compreensão e tolerância às diferenças existentes na pessoa humana, que a individualiza e a destaca das demais, Álvaro Ricardo Souza Cruz ressalta a importância do fortalecimento do ser humano em sua dignidade e do pluralismo no regime democrático. Segundo ele, qualquer concepção contemporânea de constitucionalismo deve observar no princípio do pluralismo, certamente em consonância com o da dignidade da pessoa humana, um dos seus eixos centrais, constituindo, sendo a grande novidade do paradigma do Estado Democrático de Direito. O pluralismo tem por pressuposto a admissão, o respeito e proteção a projetos de vida distintos daqueles considerados como padrão pela maioria da sociedade, representando uma proposta de superar uma visão de mundo etnocêntrica, ao reconhecer o direito a projetos de vida alternativos. [56]

A questão do pluralismo, fundamento da República Federativa do Brasil, constituída em Estado Democrático de Direito, não pode ser restringida à sua dimensão política, consoante, equivocadamente, possa parecer da efêmera leitura do art. 1º, V, da Lei Maior. Nesse passo, Inocêncio Mártires Coelho ensina que o pluralismo deve ser apreendido nos seus diversos aspectos, seja jurídico, político, ideológico, filosófico, econômico, étnico, lingüístico, religioso, educacional, científico, cultural, etc., na medida que seu ponto de partida é funda-mentalmente de ordem filosófica, centrado no conceito metafísico de pessoa humana como singularidade e liberdade, isto é, o pluralismo, portanto, antes de ser um conceito jurídico ou político, é um valor filosoficamente ligado à idéia de pessoa. "É que, embora substan-cialmente iguais, como seres dotados de razão, também somos essencialmente diferentes, enquanto singularidades vocacionadas a decidir livremente sobre o nosso destino". [57]

Dessa forma, explica o autor, que falar em pluralismo político implica que, observadas as mínimas restrições estabelecidas pela própria Constituição da República em sua imperativa reserva, ao ser humano é assegurada liberdade para se autodeterminar e levar a sua vida como bem entender e quiser, imune a qualquer intromissão de terceiros, seja estatal ou de particulares. [58] Diante desse quadro, o professor Mártires Coelho afirma categoricamente a existência de um direito fundamental à diferença em todos os aspectos e sentidos da experiência em sociedade, notadamente porque ser diferente é um estado de normalidade, e não o contrário, desautorizando-se tomar por estigmas aqueles traços característicos que singularizam cada indivíduo enquanto pessoa humana:

Muito embora a Constituição brasileira, assim como tantas outras, utilize expressão pluralismo agregando-lhe o adjetivo político, o que, à primeira vista, poderia sugerir a idéia de que esse princípio refere-se apenas às preferências políticas e/ou ideológicas da Sociedade, a sua abrangência é muito maior, significando pluralismo na polis, ou seja, um direito fundamental à diferença em todos os âmbitos e expressões do viver coletivo - tanto nas escolhas de natureza política, quanto nas de caráter econômico, social e cultural - um direito fundamental, portanto, cuja essência Arthur Kaufmann logrou traduzir em frase de rara felicidade: não só, mas também. [...] O mesmo se diga da idéia de tolerância - intimamente associada ao conceito de pluralismo - a significar que ninguém pode ser vítima de preconceitos, de ódio ou de perseguição pelo simples fato de ser diferente, como, infelizmente, tem acontecido no curso da História, em que pesem os esforços de quantos - ao que parece até agora pregando no deserto - nos advertem de que o normal é ser diferente e que os traços característicos de cada indivíduo não devem ser vistas como estigmas, mas, ao contrário, como expressão da metafísica singularidade das pessoas enquanto criaturas substancialmente distintas das demais. [59] (grifamos)

E concluindo seu pensamento, mencionando a Ricoeur, discorre que o fato do pluralismo passou por algumas fases até chegarmos ao presente momento, em que se proclama o direito à diferença como inerente à própria dignidade da pessoa humana: num primeiro momento, há tolerância do que se desaprova mas não se pode opor impedimentos; a seguir, há tentativa de compreensão das convicções contrárias às nossas, mas sem adesão a elas; e, finalmente, ocorre o reconhecimento do direito ao erro, i.e., o direito próprio a todo indivíduo de acreditar naquilo que bem aprouver e de levar a vida como lhe convier, com a só condição de que as suas escolhas e projetos de vida não causem prejuízo a outrem, tampouco inviabilizem o exercício do mesmo direito pelas demais pessoas integrantes da comunidade. [60]

Dessa forma, constata-se bem delineada a existência implícita do direito fundamental à diferença, fruto do acolhimento da concepção material do princípio da isonomia e de uma maturidade democrática, em que se evidenciam os valores insuperáveis da dignidade da pessoa humana e do pluralismo em seus mais diversos aspectos. E, mais adiante, atinando-se para o seu status de direito fundamental, o direito à diferença está abrigado pelo manto da eternidade (cláusula pétrea), alheio a força do poder constituinte reformador, sendo certo que qualquer tentativa de sua abolição restaria ilegítima (art. 60, § 4º, IV).

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Sobre o autor
Marcelo Monteiro Torres

Analista Jurídicio do Ministério Público de Mato Grosso. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TORRES, Marcelo Monteiro. Direito fundamental à diferença. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2321, 8 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13821. Acesso em: 28 abr. 2024.

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