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A autonomia funcional, técnica e científica dos peritos oficiais de natureza criminal após o advento da Lei nº 12.030/2009

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Além de viabilizar o reforço institucional e logístico, a autonomia da perícia oficial garantirá a sua necessária independência dos órgãos policiais, fundamental para a absoluta imparcialidade e o rigor científico.

Sumário: 1. Introdução – 2. Autonomia – 2.1 Autonomia funcional – 2.2 Autonomia funcional versus independência funcional – 2.3 Autonomia funcional versus autonomia administrativa – 2.4 Autonomia técnica – 2.5 Autonomia científica – 3. O veto ao artigo quarto – 4. Conclusão


1. Introdução

A prova pericial, em seara penal, representa a única prova que não precisa ser repetida em fase processual. Todas as outras provas produzidas devem ser repetidas, quando então, à parte serão assegurados o contraditório e a ampla defesa.

Até por isso, alterou-se o Código de Processo Penal, mediante a Lei n.º 11.690/2008, criando a figura do assistente técnico no procedimento penal. Esta criação possibilita, quando da realização do exame pericial, às partes [01] questionarem os resultados obtidos no laudo pericial, permitindo o contraditório em um momento bem próximo ao da produção da prova. É trazer o contraditório para a fase pré-processual.

Ressalte-se que a possibilidade de atuação do assistente técnico do acusado, somente se dará se, por óbvio, existir investigado ou indiciado, ou seja, se os elementos coligidos forem suficientes para indicar, mesmo de maneira indiciária, a autoria. Quanto ao assistente técnico do Ministério Público, sempre será possível a sua atuação, independente da identificação da autoria.

Em virtude da grande importância da prova pericial, devem-se assegurar garantias aos profissionais responsáveis pela realização da prova pericial. A proximidade, ou mesmo a inserção no órgão que realiza a investigação, que é a denominada polícia judiciária, é mais um fator que contribui para uma maior possibilidade de ingerência nos trabalhos periciais.

Este artigo busca identificar os contornos das formas de autonomia concedidas aos peritos oficiais de natureza criminal, por meio da Lei n.º 12.030/2009.

A Lei n.º 12.030/2009 teve origem no Projeto de Lei n.º 3.653/1997, de autoria do Deputado Arlindo Chinaglia, apresentada em 23/09/1997. A justificação deste Projeto de Lei mostra nitidamente a necessidade de autonomia para a realização dos trabalhos de natureza pericial.

A perícia oficial compreende uma série de atividades indispensáveis para a investigação de práticas ilícitas. Para ser eficiente essa perícia deve ser praticada num ambiente que assegure a imparcialidade, estimule a competência profissional e o trabalho de precisão. É portanto, em razão da importância e das peculiaridades da perícia pública que uma série de entidades, como a Anistia Internacional, Associação Brasileira de Criminalística, Sociedade Brasileira de Medicina Legal, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Conselho Federal de Medicina defendem a autonomia dos órgãos responsáveis pelas atividades de Medicina Legal e as de Criminalística.

Além de viabilizar o reforço institucional e logístico, a autonomia da perícia oficial garantirá a sua necessária independência dos órgãos policiais, o que é de fundamental importância para que os exames periciais e demais laudos técnicos sejam feitos com a mais absoluta imparcialidade e rigor científico.

Ao desenvolver seu trabalho com balizamento técnico, a perícia oficial torna-se de fundamental importância para a elucidação de praticas ilícitas, com a garantia, entretanto, do respeito às garantias individuais. [02]

Em 16/12/2008 o Projeto de Lei foi encaminhado ao Senado Federal, recebendo a numeração SF PLC 204/2008. Como não houve alteração no texto o Projeto de Lei foi encaminhado diretamente ao Presidente da República para sanção, em 01/09/2009.

Na Presidência da República, o Projeto de Lei foi convertido na Lei n.º 12.030, de 17 de setembro de 2009, contando com veto ao artigo 4º, sob a seguinte argumentação:

Ao determinar que ‘as atividades de perícia oficial de natureza criminal são consideradas como exclusivas de Estado’, o art. 4º poderá suscitar a interpretação de que restariam derrogados os §§ 1º e 2º do art. 159 do Código de Processo Penal, que estabelecem a possibilidade de, na falta de perito oficial, a perícia criminal ser realizada por particulares designados pelo juiz.

Tais dispositivos representam importantes garantias à adequada apuração das circunstâncias e autoria das infrações penais, e sua eventual derrogação pelo presente projeto de lei, de fato, não atenderia ao interesse público, haja vista o risco de paralisação de inquéritos policiais e ações penais que, dependendo de exame pericial, não pudessem contar, na comarca na qual tramitam, com perito oficial. [03]

Em que pese a argumentação adotada para vetar o artigo 4º, as interpretações gramatical e teleológica do artigo 2º conduzem à revogação dos §§ 1º e 2º do art. 159 do Código de Processo Penal, extinguindo a figura do perito ad hoc.


2 Autonomia

A palavra autonomia apresenta vários significados. Para a interpretação da norma em comento, pode-se mencionar o significado da autonomia da instituição e da autonomia do indivíduo.

Tendo como destinatário a instituição, pode-se afirmar que autonomia se trata da "faculdade que possui determinada instituição de traçar as normas de sua conduta, sem que sinta imposições restritivas de ordem estranha" [04].

Sendo o destinatário o indivíduo, autonomia é o "direito de um indivíduo tomar decisões livremente; liberdade, independência moral ou intelectual" [05].

Por ser um termo amplo, não é possível dotar determinada instituição ou indivíduo de autonomia absoluta, sob pena desta instituição ou deste indivíduo cometer atos arbitrários e que violem garantias constitucionais dos demais participantes da sociedade. Autonomia absoluta detém o déspota, o tirano, que tudo pode e nada responde. Contornando este problema, pode-se dotar a instituição ou o indivíduo de autonomia, não mais no sentido pleno, mas especificando que parcela dos seus atos estará livre de ingerências. Confere-se uma autonomia limitada, criando as denominações de autonomia administrativa, autonomia financeira, autonomia funcional, autonomia técnica e autonomia científica.

O artigo 2º da Lei n.º 12.030/2009 assegurou a autonomia funcional, técnica e científica tanto para a instituição quanto para o indivíduo, o que veremos na explanação das formas de autonomia conferidas aos peritos oficiais de natureza criminal.

2.1 Autonomia funcional

Apesar de ser a última apresentada no artigo 2º da Lei n.º 12.030/2009, a autonomia funcional deve ser estudada antes da autonomia técnica e da autonomia científica, por servir de base, viga mestra de sustentação destas duas últimas.

É possível a existência de cada uma destas formas de autonomia separadamente, mas a ausência da autonomia funcional dificulta a implantação da autonomia técnica e da autonomia científica.

O termo função, no sentido empregado no texto normativo, representa a "obrigação a cumprir, papel a desempenhar, pelo indivíduo ou por uma instituição" [06], bem como "atividade específica de cargo assumido em uma instituição ou o próprio cargo" [07].

A obrigação a cumprir, o papel que o indivíduo ou a instituição deve desempenhar, deriva de lei, sempre em atendimento ao princípio da legalidade. Trata-se de impor, ao indivíduo ou à instituição, um papel social [08].

No cumprimento do papel social imposto, o indivíduo realizará atividades específicas do cargo. No caso da instituição, não é possível identificá-la como sujeito ativo na realização direta de atividades específicas, não sendo aplicada à instituição a segunda definição.

Estas duas definições guardam estreito relacionamento no caso específico dos peritos oficiais de natureza criminal. Quando o perito criminal realiza determinado exame, realiza uma atividade específica do cargo que ocupa, sendo obrigado por lei a desempenhar aquele papel social.

A autonomia funcional da instituição pode ser conceituada como uma faculdade atribuída a esta instituição de livremente traçar suas normas de conduta, limitada apenas pelas regras legalmente impostas, na definição do seu papel social.

No caso do destinatário ser o indivíduo [09], pode-se conceituar a autonomia funcional como um direito garantido de tomar decisões livremente, atendo-se apenas aos seus preceitos éticos, morais e intelectuais, sempre lembrando da limitação de fundo, de seguir seu papel social.

O legislador acertou ao assegurar a autonomia funcional do indivíduo e não apenas da instituição a qual está vinculado, possibilitando assim que o perito oficial de natureza criminal possa impor a autonomia técnica e científica, sem receios de represálias.

Porém, autonomia funcional não significa ausência de responsabilidade. A autonomia funcional pressupõe desnecessidade de autorização de qualquer pessoa, física ou jurídica, para a realização da atividade, não se afastando, em hipótese alguma, o princípio da legalidade. Caso a atividade seja realizada em desacordo com alguma norma, plenamente viável a responsabilização administrativa, cível e criminal, dependendo do caso concreto.

O papel social imposto ao perito oficial de natureza criminal [10] é, por exemplo, a realização de exames técnicos e científicos, na área de formação daquele indivíduo [11]. Na realização dos exames, representará invasão na autonomia funcional qualquer forma de ingerência realizada por ocupante de qualquer outro cargo, bem como por qualquer órgão.

O órgão pericial também desempenha seu papel social [12]. O funcionamento do órgão pericial não diz respeito a nenhum ocupante de qualquer outro cargo e a nenhum outro órgão, mesmo demais órgãos inseridos em uma mesma estrutura que a sua, cabendo exclusiva e privativamente ao órgão pericial determinar a sua forma de funcionamento. É mais fácil identificar a autonomia funcional no caso de órgãos periciais que estão separados de outros órgãos, representando uma instituição própria. Mas também é possível assegurar a autonomia funcional para um órgão pericial que se encontra inserido em um organograma de uma instituição com outros órgãos.

No caso específico do Departamento de Polícia Federal, o órgão pericial central denomina-se Diretoria Técnico-Científica, que está inserida no organograma do Departamento, ligada diretamente ao Diretor Geral. Em atendimento à autonomia funcional, caberá apenas à Diretoria Técnico-Científica gerir seu funcionamento, nas atividades de natureza pericial, não sendo possível ingerência nem mesmo de órgãos superiores hierárquicos a este órgão.

É necessário que estejam bem definidas quais são as atribuições dos peritos oficiais de natureza criminal e de seus órgãos, pois, a partir destas atribuições é que será possível identificar em quais atividades este profissional encontra-se amparado pela autonomia funcional, técnica e científica e em quais atividades afasta-se a proteção conferida com as autonomias.

Outra atividade que compõe o papel social do perito oficial de natureza criminal é a convocação, pela autoridade judiciária, para o comparecimento em juízo, para prestar esclarecimentos sobre os procedimentos e laudos periciais. Representa outra hipótese onde qualquer ingerência deve ser afastada. Assim, considera-se ilegal qualquer ingerência, mesmo de seu superior hierárquico, para que o perito oficial de natureza criminal fale ou deixe de falar algo sobre os procedimentos e laudos periciais por ele realizados.

Os órgãos periciais oficiais de natureza criminal estaduais encontram-se divididos em dois grandes grupos: os que estão inseridos na estrutura da polícia civil e os que compõem estrutura própria, fora da polícia civil do estado. O órgão pericial oficial de natureza criminal federal encontra-se contido na estrutura do Departamento de Polícia Federal.

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A existência da polícia científica, órgão separado da polícia civil, é um fenômeno recente, ocasionado pela ausência de autonomia funcional atribuída a estes profissionais, que sofriam toda a sorte de ingerências [13], sendo o êxodo para a formação de institutos próprios a única saída encontrada para possibilitar a realização do papel social do perito criminal de forma plena e isenta.

De acordo com o estado da federação, foram observadas naturezas jurídicas diversas para a polícia científica, alguns configurando como pertencente à administração direta, com ou sem atribuição policial; e em outros casos assumindo a forma de autarquia, pessoa jurídica pertencente à administração indireta, mas, em todos os casos, vinculadas à Secretaria de Segurança Pública do estado.

Este fenômeno já pode ser observado em dezessete estados [14], ultrapassando a metade dos estados da federação. Além dos estados que já se encontram desvinculados da polícia judiciária, em Minas Gerais tramita na Assembléia Legislativa uma Proposta de Emenda à Constituição Estadual, desvinculando o órgão pericial da polícia civil. No Rio de Janeiro já foi aprovada a Emenda à Constituição Estadual que trata da desvinculação, carecendo apenas de regulamentação por Lei Complementar Estadual. Nos sete estados restantes e no Distrito Federal, não foram encontrados projetos de desvinculação.

A Diretoria Técnica Científica, órgão central das perícias criminais federais, compõe o organograma do Departamento de Polícia Federal, estando, desta forma, incorporada a um órgão policial de natureza persecutória. A manutenção do órgão pericial federal na estrutura do Departamento de Polícia Federal deu-se principalmente pelo menor grau de ingerências nos trabalhos periciais.

A Lei n.º 12.030/2009 veio em boa hora, pois afasta qualquer entendimento de subordinação dos peritos criminais a qualquer ocupante de outro cargo, bem como afasta qualquer forma que procure diminuir a importância do trabalho realizado pelos peritos criminais. A autonomia conferida mostra, de forma clara, que a prova pericial apresenta como seu destinatário a autoridade judiciária e, por esta razão, devem-se assegurar estas modalidades de autonomia.

O destinatário da prova pericial é a autoridade judicial, tendo acesso a ela, antes do destinatário final, o delegado de polícia e o membro do Ministério Público. O acesso destes à prova pericial não faz destas pessoas as destinatárias finais da prova pericial. As demais provas produzidas durante o inquérito policial podem ter como destinatário o delegado de polícia e o membro do Ministério Público, até porque serão repetidas em juízo, e, neste novo momento produzidas para o destinatário final autoridade judicial.

Constitui erro de lógica entender que o trabalho pericial é uma atividade meio para a realização do inquérito policial. O fato dos exames periciais auxiliarem o delegado de polícia e o membro do Ministério Público na identificação da autoria e da materialidade não faz da prova pericial mero meio para a realização do inquérito policial.

Pensamento desta natureza diminui a importância dos exames periciais a mera prova pré-processual, útil apenas ao delegado de polícia e ao membro do Ministério Público o que, por imposição legal não são.

Os exames periciais constituem meio para o livre convencimento motivado do juiz, da mesma forma que o inquérito policial constitui meio para o convencimento do membro do Ministério Público oferecer a denúncia. Esta é a forma logicamente correta de interpretar o significado da prova pericial e do inquérito policial.

A Lei n.º 12.030/2009 nada menciona sobre a necessidade dos órgãos periciais pertencerem ou não às polícias civis ou ao Departamento de Polícia Federal, diferente do Projeto de Lei n.º 3.653/1997 [15], em alguns de seus momentos durante o processo legislativo, que vedava a subordinação técnico-administrativa a órgão policial. Desta forma, cada ente federativo pode legislar da forma que entender, mantendo ou desvinculando o órgão pericial da policia judiciária.

2.2 Autonomia funcional versus independência funcional

Autonomia e independência são conceitos distintos, cada qual delimitando um conteúdo. A Lei n.º 12.030/2009 concedeu autonomia funcional aos peritos oficiais de natureza criminal, mas não a independência funcional.

Para conceituarmos a diferenciação entre autonomia funcional da independência funcional, a melhor forma é identificar em outras instituições que as têm asseguradas, como é o caso do Ministério Público. Tomando por base a previsão de autonomia funcional [16] e independência funcional [17] atribuídas ao Ministério Público, pode afirmar que a autonomia funcional refere-se à "autonomia do ofício exercido pelo Ministério Público em face de outros órgãos estatais, especialmente em faze dos governadores, legisladores e juízes" [18], ao passo que a independência funcional é a liberdade com que "exercem seu ofício agora, em face de outros órgãos da própria instituição do Ministério Público" [19].

Pela distinção apresentada, a autonomia funcional refere-se à ingerência no relacionamento entre o indivíduo e outras instituições; enquanto que a independência funcional refere-se à ingerência no relacionamento entre os integrantes de uma mesma instituição, independente do cargo ou da posição hierárquica.

Divergindo em parte do entendimento esposado, pode-se diferenciar a autonomia funcional da independência funcional defendendo que a primeira recaí apenas na instituição; enquanto que a segunda recaí sobre os membros da instituição [20]. Desta forma, a autonomia funcional é a "insujeição (...) a qualquer outro Poder do Estado" [21], em tudo o que tange ao papel social do perito oficial de natureza criminal.

Não deve prosperar tal entendimento, simplesmente porque através da Lei n.º 12.030/2009 conferiu-se autonomia funcional diretamente aos indivíduos. A tese apontada pode até ser defendida no caso de outras instituições, onde a atribuição da autonomia funcional não foi feita diretamente aos indivíduos, mas, não deve ser utilizada no caso em análise.

A forma tradicional de atribuição de autonomia funcional e de independência funcional era assegurar a autonomia funcional do órgão e a independência funcional do indivíduo [22]. Tomemos o exemplo do Ministério Público, que detém tanto a autonomia funcional como a independência funcional. Desta forma, atribui-se autonomia funcional ao Ministério Público enquanto instituição e atribui-se independência funcional ao agente político que ocupa o cargo de promotor de justiça ou procurador da república.

Outra distinção que pode ser apontada entre autonomia e independência é que a independência alçou o status de princípio, enquanto que a autonomia representa uma garantia que assegura a autogestão, nas atividades inerentes ao papel social daquele órgão.

Com a autonomia funcional, a instituição Ministério Público encontra-se livre de ingerências para realizar todas as atividades relacionadas com as funções do Ministério Público, podendo criar suas normas internas, desde que não colidam com o ordenamento legal posto, realizar as remoções e lotações de servidores conforme melhor lhe aprouver, dentre outras expressões da autonomia funcional.

Os peritos oficiais de natureza criminal, uma vez que se assegurou apenas a autonomia funcional, têm a possibilidade de afastar qualquer ingerência que diga respeito a órgãos que se encontrem fora da instituição. Interessante a situação, pois, os órgãos periciais que se encontram desvinculados da polícia judiciária apresentam maior autonomia, uma vez que nestas não existem cargos dentro da própria estrutura que possam causar ingerências, situação diversa do caso dos órgãos periciais que estão inseridos na polícia judiciária. Contudo, para evitar que a autonomia funcional transforme-se apenas em um garantia sem efetividade prática, não representando, de fato, autonomia alguma, deve-se interpretar a norma no sentido de que, a partir de agora, os órgãos periciais que se encontram inseridos na polícia judiciária devem ser vistos como vinculados na estrutura organizacional aos órgãos centrais de perícia, notadamente nas atividades periciais.

Em síntese, a autonomia funcional do órgão pericial significa que depois da lei, as atividades inerentes ao papel social do perito oficial de natureza criminal devem ser regradas tão somente pelo órgão pericial, não devendo sofrer ingerências nem de órgãos externos à instituição onde o órgão pericial se encontra e nem de órgãos internos a esta, na atividade fim pericial, visando efetivar a autonomia funcional dos integrantes do órgão pericial.

2.3 Autonomia funcional versus autonomia administrativa

Outra diferenciação necessária é entre a autonomia funcional e a autonomia administrativa, lembrando mais uma vez que a Lei n.º 12.030/2009 assegurou apenas a primeira aos peritos oficial de natureza criminal.

A autonomia administrativa representa a possibilidade de o órgão ter disponível crédito para a realização de suas atividades. Assim, com a autonomia administrativa repassa-se ao órgão um determinado valor das receitas e este tem o poder de gerir este montante, guiado apenas pelos preceitos legais. Com a autonomia administrativa é possível ao órgão adquiri bens e contratar serviços, editar atos de aposentadoria, organizar um quadro próprio para os servidores de carreira e para os serviços auxiliares e realizar atos de provimento inicial, promoção, remoção e outras formas de provimento derivados [23].

Já a autonomia funcional diz respeito apenas à possibilidade dos atos realizados serem feitos sem a ingerência de ocupantes de outros cargos ou outros órgãos, interna ou externamente. Contudo, com a autonomia funcional não é possível o recebimento direto de recursos para a gestão. Desta forma, os órgãos periciais que continuam inseridos na polícia judiciária, não têm a possibilidade de se considerarem unidades gestoras, mantendo o atual quadro existente.

Feitas as considerações sobre a autonomia funcional, parte-se para a autonomia técnica e a autonomia científica.

2.4 Autonomia técnica

A autonomia técnica refere-se à possibilidade da instituição ou do indivíduo determinar-se quanto às atividades técnicas desenvolvidas. Assim, cabe ao perito criminal e, somente a ele definir qual método de trabalho utilizará na realização dos exames periciais. Nada impede, contudo, que o órgão central pericial regulamente, sob forma de recomendações ou sugestões, rotinas de trabalho, em áreas onde a técnica adotada já se encontra sedimentada, visando uma padronização e melhor apresentação do trabalho pericial para o cliente final, qual seja, a autoridade judicial. Estas regulamentações não terão caráter coercitivo, servindo apenas de recomendações.

Ressalte-se que a autonomia técnica não atinge elementos diversos do papel social de perito oficial de natureza criminal. Desta forma, pode o órgão central pericial instituir modelo quanto à forma de confecção do laudo, por exemplo, contendo a forma de letra a ser utilizada, etc., devendo ser seguido obrigatoriamente pelo perito oficial de natureza criminal.

Se, para a realização de um exame pericial há mais de uma técnica disponível, ambas aceitas pela comunidade científica, cada uma apresentando particularidades quanto à precisão, amplitude do resultado, etc., caberá apenas ao perito criminal a determinação da técnica para realizar os trabalhos, não podendo ser imposta outra técnica, mesmo se seu chefe imediato entenda que outra metodologia deveria ser utilizada. A decisão cabe única e exclusivamente ao perito criminal, da mesma forma que a responsabilidade pela adequação entre os quesitos formulados e as respostas advindas.

Um exemplo, fora da área pericial, de aplicação da autonomia técnica é da Imprensa Nacional, que, de acordo com o artigo 5º do Decreto n.º 4.521/2002 funciona com autonomia técnica, incluindo a fixação de critérios e condições para a edição, impressão, disponibilização e distribuição das publicações oficiais. Neste exemplo, se o editor decidir que utilizará a impressão ofsete com determinadas características, atendendo às especificações técnicas, estará livre para seguir este caminho, não necessitando de prévia autorização para realizar o trabalho.

2.5 Autonomia científica

A autonomia científica refere-se diretamente ao processo de pesquisa, ou seja, de alteração do estado da arte em determinada área do conhecimento científico.

Exemplo clássico são as universidades que têm autonomia científica para livremente definir, programar e executar a investigação e demais atividades científicas e culturais [24].

Confere ao órgão pericial o direito de definir livremente os meios de investigação científica. Assim, caberá ao órgão pericial identificar quais modalidades de pesquisa científica têm interesse para o serviço, não sendo aceitável a ingerência de outros órgãos, mesmo componentes da mesma instituição.

A 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública, realizada em Brasília, no período de 27 a 30 de agosto de 2009, definiu como a segunda diretriz a ser adotada promover a autonomia e a modernização dos órgãos periciais criminais, por meio de orçamento próprio, como forma de incrementar sua estruturação, assegurando a produção isenta e qualificada da prova material, bem como o princípio da ampla defesa e do contraditório e o respeito aos direitos humanos [25]. Seguindo esta diretriz, o passo seguinte é assegurar a autonomia financeira dos órgãos periciais, o que pode ser obtido, no nosso entendimento, mantendo o órgão pericial inserido ou não na estrutura da polícia judiciária.

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Sobre o autor
Erick Simões da Camara e Silva

Perito Criminal Federal, Mestre em Direito pela UNIMES/SP, mestre em Química pelo IME/RJ, pós-graduado em Direito pela UNISUL-LFG/SC, graduado em Direito pela UNIRIO/RJ e graduado em Engenharia Química pelo IME/RJ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Erick Simões Camara. A autonomia funcional, técnica e científica dos peritos oficiais de natureza criminal após o advento da Lei nº 12.030/2009. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2323, 10 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13826. Acesso em: 20 nov. 2024.

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