O imposto provisório sobre movimentação financeira IPMF foi instituído pela Lei Complementar nº 7/93, com fundamento na Emenda Constitucional nº 3/93, para vigorar até o dia 31 de dezembro de 1994. A Emenda nº 12/96 possibilitou a recriação desse imposto, agora, com a roupagem de contribuição para ser cobrada pelo prazo máximo de dois anos. Assim, sobreveio a Lei nº 9.311, de 24-11-96 instituindo a CPMF e prevendo sua cobrança pelo prazo de treze meses, prazo esse, posteriormente, prorrogado pela Lei nº 9.359, de 12-12-97 para até o dia 23-01-99, completando-se o período máximo fixado pela Emenda nº 12/96.
Finalmente, a Emenda nº 21, de 18-03-99 prorrogou por mais trinta e seis meses a CPMF instituída pela Lei 9.311/96 modificada pela Lei nº 9.359/96. Note-se que, quando da prorrogação da Lei 9.331/96 está já havia deixado de existir no mundo jurídico por implemento do termo final previsto. Entretanto, essa questão já foi analisada em outros artigos sobre a CPMF, de sorte que, dela não cuidaremos neste breve comentário.
Analisaremos neste artigo a questão da natureza jurídica da CPMF e sua conseqüência.
Dispõe o art. 4º do CTN:
Art. 4º - A natureza jurídica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevante para qualificá-la:
I a denominação e demais característica formais adotadas pela lei;
II a destinação legal do produto da sua arrecadação;
A mudança de denominação de IPMF para CPMF foi feita para burlar a proibição contida no art. 167, IV da Constituição Federal:
Art. 167 São vedados:
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IV a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvada a repartição do produto da arrecadação.....
Como o produto da arrecadação do imposto provisório seria destinado aos setores da saúde e da previdência, ante ao alerta de que isso contrariaria o disposto no inciso constitucional retro transcrito, o então titular da pasta da Saúde não teve dúvida em sugerir a mudança de denominação do tributo, de imposto para contribuição.
Mais que depressa foi a genial idéia palaciana encampada pelo solícito legislador que elaborou a mencionada Lei nº 9.311/96. Esqueceu-se, contudo, a apressado legislador que a natureza jurídica do tributo é definido pelo seu fato gerador, não bastando vincular o produto de sua arrecadação para transformar o imposto em contribuição; pelo contrário, essa circunstância foi tornada irrelevante pelo inciso II, do art. 4º do CTN para caracterização da espécie tributária. E o fato gerador continuou o mesmo, isto é, a movimentação financeira em geral. O legislador não teve a menor preocupação em manter inalterável o fato gerador do tributo tal qual previsto na Lei complementar nº 77/93, que criou pela vez primeira o IPMF. Limitou-se ao expediente maroto de tentar contornar a proibição do art. 167, IV da CF, no que falhou flagrantemente.
Pela clássica divisão de tributos em vinculados e não vinculados à atuação estatal, sabemos que imposto é tributo desvinculado de qualquer atuação do Estado. Para poder instituir e cobrar essa espécie tributária o Estado não precisa desenvolver uma atividade específica; basta o seu poder de império. Daí porque a Carta Política nominou os impostos cabentes a cada entidade política (arts. 153, 155 e 156) para evitar conflitos de competência impositiva. Em relação aos tributos vinculados à atuação do Estado não há necessidade dessa enumeração, pois, cada ente político será o titular do tributo relativamente à atuação específica que promover. Tirante o imposto todas as demais espécies tributárias são tributos vinculados à atuação do Estado. As taxas estão vinculadas aos serviços específicos e divisíveis, prestados pelo Estado ou colocados à disposição dos contribuintes, ou, ainda ao exercício regular do poder de polícia.. As contribuições de melhoria estão vinculadas à execução de obras, pelo poder público, que implique valorização imobiliária. As contribuições sociais são tributos vinculados à atuação indireta do Estado. Têm como fato gerador uma atuação indireta do Poder Público mediatamente referida ao sujeito passivo da obrigação tributária (Cf. nosso Direito Financeiro e tributário, 6ª ed., Atlas, 2000, p. 257).
Ora, a União cobra a CPMF, indistintamente, de todos os que praticam a movimentação financeira, sem qualquer contraprestação ao contribuinte. E mais, para fazer jus a essa cobrança a União não desenvolve qualquer atuação. O sujeito ativo do tributo em absolutamente nada contribui para essa movimentação financeira. Apenas as instituições financeiras é que dão suporte material, pessoal e tecnológico para referida movimentação.
Não há dúvida, pois, tratar-se de imposto, apesar da equivocada denominação de contribuição. Pudesse a denominação formal alterar a substância do tributo ou a espécie tributária, de nada adiantaria a rígida discriminação constitucional de impostos para preservação do princípio federativo. Inúmeros outros impostos poderiam ser criados pelas três entidades políticas com diferentes denominações, destruindo a garantia constitucional do cidadão de não se submeter senão aos impostos nominados ou àqueles decretados no exercício da competência residual da União, além dos extraordinários no caso de guerra externa ou sua iminência.
Definida a natureza jurídica da CPMF como imposto, aplica-se todos os princípios constitucionais pertinentes a impostos, dentre os quais, o princípio da anterioridade em relação ao exercício da cobrança inscrito no art. 150 da CF:
Art. 150 Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, Estados,. Ao Distrito Federal e aos Municípios:
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III cobrar tributos:
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b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou.
Sem discutir se uma Emenda Constitucional pode instituir tributo, mediante prorrogação da lei criadora desse tributo, o fato é que quando a Emenda 21, de18 de março de 1999, prorrogou a Lei 9.311/96, está já não estava mais em vigor, pelo que não poderia cogitar-se de prorrogação. Isso ocorreu, porque o Projeto de Emenda Constitucional foi reiteradamente rejeitado pelo Congresso Nacional, somente vindo a ser aprovado por fortes pressões oriundas, inclusive, do exterior. O apressado legislador constituinte esqueceu de adequar o termo prorrogada por renovada ou reinstituída.
A verdade é que houve um vácuo entre o último dia de vigência da CPMF, nos termos da Lei nº 9.311/96, e a sua recriação via Emenda nº 21/99. A CPMF não foi, pois, prorrogada mas, recriada pela Emenda referida. Aliás, esse fato é confessado no próprio § 3º do art. 75 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, acrescentado pela Emenda nº 21/99:
§ 3º - É a União autorizada a emitir títulos da dívida pública interna, cujos recursos serão destinados ao custeio da saúde e da previdência social, em montante equivalente ao produto da arrecadação da contribuição, prevista e não realizada em 1999.
Não importa que a Corte Suprema tenha suspendido a execução e aplicação desse § 3º até decisão final da ação direta (Adin 2031-5, Rel. Min. Octávio Gallotti). O importante é que o aludido parágrafo confessa, expressamente, a recriação da CPMF depois de decorridos vários dias a contar de sua extinção por decurso do prazo de vigência.
Como imposto extinto e ao depois recriado, em 18 de março de 1999, só poderia ser cobrado a partir de 1º de janeiro de 2000, conforme o princípio constitucional da anterioridade. E o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a insubmissão do IPMF aos princípios imunidade e da anterioridade prevista na Lei Complementar nº77/93, que instituiu esse imposto pela primeira vez, decidiu que esses princípios não podem ser suprimidos por Emendas, porque constituem garantias fundamentais (Adin 939-DF, Rel. Min. Sidney Sanches, T. Pleno, RTJ 151/755). De fato, garantias individuais, por se constituirem em cláusulas pétreas (art.60, § 4º, IV da CF) não podem ser suprimidas pelo legislador constituinte derivado.
Concluindo, se tivesse sido regularmente reinstituído em 1999, com fundamento em Emenda Constitucional regular, esse imposto, apelidado de contribuição, só poderia ser cobrado a partir do exercício de 2000. Com muito maior razão deve ser aplicado o princípio constitucional da anterioridade em relação a um imposto que renasceu por via transversa, prorrogando o que já não mais existia. Do contrário, seria premiar a legislação defeituosa, o que não atina nem com o Direito, nem com o bom-senso.