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A manipulação temporal dos efeitos decisórios no controle difuso de constitucionalidade

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"Não há outro meio de atalhar o arbítrio, senão dar contornos definidos e inequívocos à condição que o limita".

(Rui Barbosa)

SUMÁRIO: SIGLAS E ABREVIATURAS . RESUMO . ABSTRACT . INTRODUÇÃO . I -O INSTITUTO DA MODULAÇAO TEMPORAL DOS EFEITOS DECISÓRIOS .1.1Do surgimento do instituto .1.2A modulação temporal e sua conceituação jurídica . 1.3A jurisdição constitucional norte-americana e europeia (paradigma austríaco) . 1.3.1O instituto e a Suprema Corte dos Estados Unidos .1.3.2O instituto e os Tribunais Europeus .1.4A jurisdição constitucional brasileira . 1.4.1O instituto e o Supremo Tribunal Federal . II -O NOVO RECURSO EXTRAORDINÁRIO E O CONTROLE DIFUSO. 2.1.O controle difuso brasileiro . 2.2.A compatibilização vertical das decisões judiciais no Brasil . 2.2.1.A doutrina norte-americana do Stare decisis . 2.2.2.Os métodos de compatibilização vertical utilizados no Brasil . 2.3.A Repercussão Geral e seus reflexos constitucionais . 2.4.O Recurso Extraordinário e sua atual tendência de abstrativização . 2.5.A necessidade de se modular as decisões no Controle Concreto . III -A LEI 9.868/99 E O CONTROLE DIFUSO . 3.1.O Controle Concreto e sua regulamentação legal . 3.2.O Art. 27 da Lei 9.868/99 e suas as exigências para se modular os efeitos . 3.2.1.O excepcional interesse social . 3.2.2.A proteção à segurança jurídica . 3.2.2.1.A segurança jurídica e a modulação temporal em favor do Estado . 3.3.A repercussão geral e as exigências do art. 27 da Lei 9.868/99 . 3.4.O princípio da proporcionalidade . 3.5.A ilegalidade do quorum qualificado do art. 27 da Lei 9.868/99 . 3.6.O art. 27 da lei 9.868/99 e sua aplicação no Controle Difuso . CONCLUSÃO . REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SIGLAS E ABREVIATURAS

ADC- Ação Declaratória de Constitucionalidade

ADIn - Açao Direta de Inconstitucionalidade

ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental

AgR - Agravo Regimental

art. -Artigo

CF- Constituição Federal

COFINS- Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social

CPC- Código de Processo Civil

EC- Emenda Constitucional

HC- Hábeas Corpus

LICC- Lei de Introdução ao Código Civil

Min.- Ministro

p.- Página

RE- Recurso Extraordinário

RE’s- Recursos Extraordinários

Rel.- Relator

STF- Supremo Tribunal Federal

STJ- Superior Tribunal de Justiça

TJ’s- Tribunais de Justiça

TRE’s - Tribunais Regionais Eleitorais

TRF’s- Tribunais Regionais Federais

TRT’s- Tribunais Regionais do Trabalho

v.- Versus


RESUMO

A jurisdição constitucional inicialmente idealizada por Marshall em 1803 e posteriormente reformulada por Kelsen em 1920, sempre conviveu com o peso que suas decisões provocam a fatos jurídicos consolidados, fardo que se buscou minimizar com o desenvolvimento de uma teoria de flexibilização desses efeitos, conhecida como modulação temporal dos efeitos das decisões. A modulação temporal dos efeitos das decisões judiciais no Brasil adquiriu efetiva consistência com a publicação da Lei 9.868/99, esta, responsável pela regulamentação das ações do controle concentrado de constitucionalidade. Todavia, desde a década de 80 o Supremo Tribunal Federal vem paulatinamente se inclinando pela necessidade de se mitigar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, necessidade esta, já assumida pela Suprema Corte Norte-Americana ainda na década de 60 e pelo controle de constitucionalidade austríaco desde 1926. No Brasil, a despeito da constante utilização do instituto pelo Supremo, grandes juristas ainda possuem suas ressalvas quanto ao instituto, principalmente no tocante a sua aplicação ao controle difuso de constitucionalidade. Nesse escopo, a análise sobre sua adequação ao controle incidental de constitucionalidade é de suma importância para se evitar uma desregrada, incorreta e inócua aplicação.

PALAVRAS CHAVE: Jurisdição Constitucional; Manipulação dos Efeitos; Processo Constitucional.

ABSTRACT

The constitutional jurisdiction originally developed by Marshall in 1803 and later reformulated by Kelsen in 1920, always lived with the burden that their decisions affects legal suits consolidated, that burden with which sought to minimize the development of a theory of relaxation of these effects, known as modulation temporal effects of decisions. The modulation of temporal effects of judgments in Brazil acquired effective consistency with the publication of Law 9.868/99, responsible for regulating the actions of the concentrated control of constitutionality. However, since the 80''s the Supreme Court has gradually been tilting the need to mitigate the effects of the declaration of unconstitutionality. This need has already been recognized by the United States Supreme Court in the 60''s and by the control of constitutionality from Austrian in 1926. In Brazil, despite the constant use by the Supreme Justice, great lawyers also have their reservations about the institute, especially in regard to its application to the diffuse control of constitutionality. In this scope, the analysis of their suitability for incidental control of constitutionality is extremely important to avoid a disorderly, incorrect and innocous application.

KEY-WORDS: Judicial Review; Manipulation of effects, Constitutional process.


INTRODUÇÃO

A Constituição, norma máxima de qualquer ordenamento jurídico, em regra compõe-se de princípios e normas genéricas os quais traçam diretrizes legais a serem observadas pelos demais excertos normativos.

Diante de tal supremacia constitucional, sua aplicação e interpretação reverberam por todo território jurisdicional sobrepondo todo e qualquer texto legal que caminhe em sentido contrário.

Tal imperatividade constitucional na prática brasileira é concretizada pelo Supremo Tribunal Federal, que assim o faz, por intermédio de sua jurisdição constitucional.

A jurisdição constitucional surgiu nos Estados Unidos da América ainda em 1803, com o julgamento do case Marbury versus Madison, pelo justice John Marshall. Apoiando em Blackstone, Marshall consolidou o ideal de que cabe a todo e qualquer juiz o dever interpretar as leis postas e aplicá-las aos casos concretos, devendo sempre resguardar a norma constitucional, hierarquicamente superior.

Nesse escopo, o a decisão judicial seria meramente declaratória, pois a nulidade existiria desde o surgimento da lei inconstitucional, sendo nula desde sua origem, ab initio, restando ao magistrado meramente declarar irregularidade pré-existente e insanável, declaração que retroagiria à gênese da inconstitucionalidade.

Contrapondo ao modelo estadunidense, Hans Kelsen trouxe, por intermédio da Carta constitucional austríaca de 1920, uma nova noção de jurisdição constitucional, afastando do ideal de nulidade ab initio da norma inconstitucional e propondo a noção de que a norma posta em vigor não pode ser tida como nula, mas tão somente anulável, não existindo fundamento para se falar em decisão meramente declaratória, mas sim constitutiva, produzindo efeitos apenas a partir de sua publicação.

Diante das lacunas deixadas por ambas teorias, os juristas há tempos buscam meios para minimizar os reflexos negativos que tais vácuos podem ocasionar aos jurisdicionados. Símbolo dessa busca é a estruturação do instituto da modulação temporal dos efeitos das decisões judiciais, que essencialmente propõe mitigar, flexibilizar o caráter rígido, de ambas teorias, no que concerne aos efeitos de suas decisões no tempo.

Particularmente, pretende-se aprofundar sobre a utilização do instituto no controle constitucional brasileiro stricto sensu, não abordando outras formas de controle difuso senão o realizado sob o pálio do critério hierárquico, que por sua vez, por ser repleto de peculiaridades possibilita um significativo leque de questionamentos, dúvidas e ponderações

Para tanto, no primeiro capítulo do presente trabalho busca-se elucidar as origens do instituto da modulação temporal das decisões judiciais, o que essencialmente, implica no estudo dos diversos estilos de controle constitucional, especialmente o americano, o austríaco e o brasileiro, destacando nesses sistemas, o início da tentativa de flexibilização das declarações de inconstitucionalidade.

Transposta tal estruturação histórica sobre o instituto, compete ao segundo capítulo analisar o controle difuso de constitucionalidade brasileiro, ressaltando as ultimas mudanças sofridas pelo recurso extraordinário, instrumento primordial do controle difuso pátrio, e os reflexos de tais modificações na essência do controle concreto brasileiro, culminando-se, indubitavelmente, no reconhecimento da indispensabilidade de se modular os efeitos das decisões no sistema difuso de constitucionalidade.

Partindo-se dessa premissa, caberá ao terceiro capítulo, ponderar sobre a adequação de se utilizar o art. 27 da Lei 9.868/99, responsável pela regulamentação das ações do controle concentrado de constitucionalidade, ao controle difuso, considerando todos os elementos integrantes do referido excerto normativo sob o enfoque do modelo difuso de controle constitucional, possibilitando ao fim, emitir juízo sobre a incompatibilidade da norma com os ditames do controle difuso.

Tendo em vista o objeto delimitado, a presente pesquisa se pautará, metodologicamente, pelo método dedutivo, caracterizado por uma abordagem mais ampla e abstrata.

Pertinente ainda ressaltar, que referida escolha deu-se em função dos objetivos cernes deste trabalho, quais sejam, demonstrar a necessidade de se aplicar a modulação temporal ao controle difuso de constitucionalidade e a inadequação de se utilizar a Lei 9.898/99 ao mesmo sistema de proteção constitucional, de modo que, partindo-se da análise das origens do instituto e suas características essenciais, centra-se nas peculiaridades da jurisdição constitucional brasileira.


CAPÍTULO I - A MODULAÇÃO TEMPORAL DOS EFEITOS DECISÓRIOS

A prática de se modular os efeitos das decisões judiciais no Controle de Constitucionalidade é recente no mundo jurídico. No Brasil, a mesma somente fora legalizada com advento da Lei 9.868/99, que regulamentou as ações diretas de inconstitucionalidade e constitucionalidade.

Tal surgimento adveio da necessidade de se flexibilizar os efeitos provocados pela declaração de inconstitucionalidade do ato normativo, a qual, em razão do dogma da nulidade da lei inconstitucional, operaria efeitos ex tunc, retroagindo à origem da lei.

Diante da necessidade de se amoldar tais efeitos às necessidades políticas-jurídicas-sociais do caso concreto, buscou-se mesclar as duas principais teorias existentes sobre a declaração de inconstitucionalidade.

A primeira, largamente aceita entre os doutrinadores e os Tribunais brasileiros, consiste na ideia trazida pelos nortes-americanos e difundida no Brasil por Rui Barbosa, de que a lei inconstitucional, apesar de concretizar sua existência como ato estatal, já nasce morta. Assim sendo, não possui qualquer validade no mundo jurídico, pois certo que é inconstitucional desde sua edição.

Nesse escopo, a decisão judicial apenas declara a inconstitucionalidade preexistente; trata-se de mero ato declaratório. Logo, a decisão judicial opera efeito ex tunc, retrocedendo ao nascimento da norma em comento, declarando nulos todos os desdobramentos jurídicos provenientes de sua efêmera aplicação, que, em regra, pode ocorrer entre a sua entrada em vigor até a declaração judicial de sua inconstitucionalidade.

Nas palavras de Capelletti (1999, p. 115-116), ao narrar o sistema norte-americano de jurisdição constitucional,

{...} a lei inconstitucional, porque contrária a uma norma superior, é considerada absolutamente nula (null and avoid) e, por isso ineficaz, pelo que o juiz, que exerce o poder de controle, não anula, mas, meramente declara (pré-existente) nulidade da lei inconstitucional.

A segunda teoria, menos aceita no Brasil, fora idealizada por Kelsen e sustenta o Sistema Austríaco de Controle de Constitucionalidade. Diferentemente do modelo norte-americano, para Kelsen a decisão judicial não consiste em uma simples declaração de inconstitucionalidade preexistente; na realidade, o suposto vício confirmado apenas existe daquele momento para frente, não havendo que se falar em retroatividade da decisão, pois a mesma em momento algum declara situação pretérita, mas, sim, constitui uma situação nova, qual seja, a incompatibilidade da norma com a Constituição. Tem-se, pois, uma decisão constitutiva negativa e não declaratória (Ávila, 2009, p. 41).

Ademais, Kelsen não reconhece a existência de nulidades no Direito. Para ele, uma norma posta (em vigor) somente pode ser anulável, e não nula, pois o simples fato de estar em vigor atesta sua conformidade com a constituição, logo, válida, pois, segundo Kelsen (2003a, p. 287),

uma lei inválida não pode ser afirmada como contrária à Constituição, pois uma lei inválida não é sequer uma lei, pois inexiste juridicamente. O sentido possível para a expressão "lei contraria à Constituição" só pode ser o seguinte: a lei, em questão, de acordo com a Constituição, pode ser revogada não só pelo processo usual (lei posterior revoga a anterior); mas também através de um processo especial, previsto pela Constituição. Enquanto, porém, não for revogada, tem de ser considerada como válida; e, enquanto for válida, não pode ser inconstitucional.

Assim, a decisão judicial que aprecia uma possível inconstitucionalidade não declara uma situação já concretizada, mas, sim, anula, cassa a lei que até a publicação do mandamus judicial seja considerada válida e eficaz, razão pela qual a decisão opera efeitos apenas do julgamento em diante, ou seja, ex nunc, mantendo todas as relações jurídicas ocorridas sob o pálio de sua existência.

Todavia, ambas as teorias fracassaram ao tentar solucionar os problemas provenientes das relações jurídicas constituídas no interregno entre sua entrada em vigor e sua cassação pelo Judiciário. Com efeito, elas proporcionam certas aberrações jurídicas como o vácuo imposto pela Teoria da Nulidade às relações jurídicas estruturadas durante a aparente validade da lei inconstitucional, bem como a estranha existência de lei reconhecidamente inconstitucional como se constitucional fosse, situação viabilizada pela Teoria da Anulabilidade.

Procurando preencher tais lacunas, deu-se início a um processo de flexibilização das referidas teorias, acarretando uma fusão entre vários aspectos de ambas, permitindo uma adequação dos efeitos do controle de constitucionalidade, mitigando as consequências de tais aberrações jurídicas e compatibilizando as decisões com a realidade jurídica posta.

Destarte, estruturava-se o instituto da Modulação ou Manipulação Temporal das Decisões no Controle de Constitucionalidade, cujo ápice, no Brasil, deu-se com a edição da Lei 9.868/99, que se passará a estudar a fundo.

1.2 A MODULAÇÃO TEMPORAL E SUA CONCEITUAÇÃO JURÍDICA

Como visto, a Corte Constitucional brasileira consolidou a tradição norte-americana da Teoria da Nulidade, entendendo operar, em regra, o efeito ex tunc quando da revogação de ato normativo tido inconstitucional.

Contudo, o legislador consubstanciado nos movimentos já deflagrados por toda Europa e Estados Unidos e esboçado pelo repertório jurisprudencial do Supremo Tribunal, trouxe ao ordenamento jurídico o instituto da Modulação Temporal das Decisões Judiciais, assim dispondo no art. 27 da Lei 9.868/99:

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Tem-se por normatizado o novo instituto da Jurisdição Constitucional brasileira, permitindo ao Supremo Tribunal Federal, no Controle Concentrado, "relativizar" os efeitos, em regra, retroativos da declaração de inconstitucionalidade, possibilitando tanto a retroação dos efeitos, quanto a não-retroação ou até a fixação de uma data pró-futuro.

Com se depreende da inteligência do artigo acima transcrito, o instituto é uma exceção à consolidada regra da retroação da eficácia da decisão que declara a inconstitucionalidade de lei, razão pela qual o legislador impôs à aplicação de tal procedimento um quorum qualificado, qual seja, dois terços dos ministros que compõem nossa Corte Constitucional.

Por conseguinte, o instituto consiste na excepcional possibilidade de o STF, ao prever um cenário de possível violação à segurança jurídica ou de extraordinário interesse social, limitar e modular a eficácia temporal da decisão judicial de forma a melhor atender a realidade fática da conjuntura que envolve o julgamento.

1.3 A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NORTE-AMERICANA E EUROPEIA (PARADIGMA AUSTRÍACO)

Como visto, a manipulação temporal dos efeitos das decisões judiciais surgiu como forma de se mitigar os reflexos nocivos provenientes da aplicação prática das teorias da nulidade e da anulabilidade de lei inconstitucional. Portanto, como integrante da sistemática da jurisdição constitucional, pertinente abordar, de forma breve, os dois principais sistemas de jurisdição constitucional.

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Seguindo a estruturação utilizada por Mauro Cappelletti (1999, p.66) proceder-se-á à abordagem sob dois aspectos principais: o elemento "subjetivo" e o elemento "modal" dos sistemas de controle de constitucionalidade.

Inicialmente, de acordo com o aspecto subjetivo, dois grandes sistemas de controle constitucionalidade destacam-se: o sistema difuso, que se pauta pela distribuição da competência do controle de constitucionalidade a todos os órgãos do judiciário, os quais incidentalmente exercem o papel de defensor da constituição; e o sistema concentrado, que se caracteriza pela centralização de tal poder/dever de defesa constitucional a um órgão judiciário específico.

O sistema difuso, também usualmente conhecido por sistema americano, surgiu pela primeira vez nos Estados Unidos da América, derivando daí seu nome usual. Pauta-se por uma simples, porém coerente linha de raciocínio cuja ideia central já consubstanciava a célebre decisão do Chief Justice John Marshall no mundialmente conhecido julgamento Marbury versus Madison no ano 1803.

O cerne da teoria americana estruturava-se na ideia de que a função de todo juiz é interpretar leis, devendo aplicá-las aos casos concretos que de vez em vez lhe aparecem para apreciação. Dessa maneira, quando duas normas legais se colidem, cabe ao magistrado decidir qual deve ser mantida e reger a situação concretizada. Para tanto, utiliza-se dos tradicionais critérios da "lex posterior derogat legi priori" e "lex specialis derogat legi generali". Contudo, a questão se agrava quando se colidem normativos de diferentes hierarquias; nessa situação, deve o magistrado optar pela norma hierarquicamente superior (em regra de índole constitucional) em detrimento da inferior – lex superior derogat legi inferiori.

Portanto, como compete ao juiz, independente de sua hierarquia funcional, analisar a questão concreta trazida a juízo e aplicar a lei que lhe seja mais adequada, consequentemente compete a ele, também, aplicar o brocado latino da hierarquia entre as leis, para diante de norma inconstitucional, ou seja, em confronto com a constituição, afastá-la, declarando sua inconstitucionalidade e aplicando a norma correta.

Não obstante a linearidade e coerência do raciocínio americano, este não se mostraria viável sem a conjunção de outro instituto de suma importância para o direito norte americano, a doutrina do Stare Decisis (vide item 2.2.1), a qual, em breves linhas, consiste na vinculação de todos os órgãos jurisdicionais inferiores de certa circunscrição aos seus respectivos órgãos superiores e, em última estância, à Suprema Corte Americana.

Tal vinculação jurisprudencial se revelou, ao longo dos tempos, o fator predominante para o insucesso do sistema americano nos países pertencentes à civil law. Insucesso este que advinha da incompatibilidade de tal raciocínio com a estrutura desta família do direito, afinal, se imaginarmos o sistema difuso em tais Estados-nação, com certeza teríamos instalado o caos da insegurança jurídica ao permitir que em um mesmo dia um magistrado entenda pelo afastamento de determinada lei, por seu manifesto caráter inconstitucional, e outro, logo depois, entenda de maneira diversa, concluindo pela aplicação da lei anteriormente afastada, pois, na civil law, em regra, não existe qualquer tipo de vinculação entre as decisões judiciais.

Diante de tal impasse, a solução encontrada pelo idealizador da Constituição Austríaca de 1920, Hans Kelsen, seria a criação de um órgão jurisdicional adequado, ou seja, uma espécie de Corte Constitucional, denominada de Verfassungsgerichtshof. Surgia o sistema de controle de constitucionalidade, que seria futuramente conhecido por sistema concentrado, austríaco ou europeu (o último em razão de sua influência no continente europeu), o qual orbitava em torno de um único órgão judicial, idealizado e criado para exercer precipuamente a proteção à Constituição.

Infere-se, pois, que o sistema concentrado fundamenta-se em uma ideia diametralmente oposta àquela consolidada por Marshall em seu célebre julgamento. Deixa-se a ideia de que o problema da lei inconstitucional restringe-se à mera interpretação de lei com a consequente abstenção de se aplicar referida norma inconstitucional e abre-se espaço para a consolidação de um raciocínio que valoriza uma presunção da validade das leis, refletindo, por sua vez, na impossibilidade de tal vicio ser declarado por qualquer juiz, como forma de mera manifestação de seu poder/dever de interpretar a lei, com exceção à Corte Constitucional, a quem incumbe tal tarefa.

Transposto esse aspecto subjetivo dos dois sistemas de jurisdição constitucional, passa-se agora às suas peculiaridades "modais", ou seja, processuais.

O sistema americano que subjetivamente possui uma característica difusa, sob o aspecto modal, detém um caráter incidental, o qual consiste na impossibilidade de se resolver as questões constitucionais em sede de ação própria, específica, perante um órgão jurisdicional próprio para solucionar tais conflitos.

Na modalidade americana o conflito constitucional deve ser arguido de maneira incidenter tantum, ou seja, de forma secundária, por intermédio de um caso concreto e na medida em que tal controvérsia seja pertinente à solução da referida situação posta em juízo, sendo competente para dirimir as questões constitucionais o mesmo juízo competente para julgar o caso concreto, do qual se extraiu a discussão em primeiro lugar.

Logo, tanto os órgãos jurisdicionados inferiores como a Suprema Corte Norte-Americana resolvem as questões constitucionais apresentadas apenas no contexto do caso concreto posto em juízo ("only within the context of concrete adversary litigation") e tão-somente na medida necessária a resolver o conflito ("only as necessary to the disposition of the case"), independentemente da ação na qual se ventile a questão constitucional ("regardless of the nature of the proceeding").

Resta, pois, caracterizada a noção de controle concreto de constitucionalidade que, conjuntamente com o controle difuso de constitucionalidade, compõem o sistema norte-americano.

Em contrapartida, a Constituição austríaca de 1920, já anteriormente mencionada, criou um órgão jurisdicional próprio (Verfassungsgerichtshof) para exercer a atividade de controle constitucional, o qual seria provocado por meio de um processo próprio e autônomo, inteiramente desvinculado de um caso concreto.

Dessa feita, no sistema austríaco os juizes, além de não possuírem poderes para exercer tal controle constitucional, tampouco poderiam pedir à Corte Constitucional que realizasse o controle que lhes era vedado, sendo obrigados a aplicarem as leis que entendiam inconstitucionais. Afinal, na conjuntura estruturada, matéria constitucional somente poderia ser arguida pelos órgãos habilitados na Constituição de 1920, que se limitava a apenas duas figuras políticas, o Governo Federal (Bundesregierungen ) e os Governos de Lander (Landesregierugen).

Todavia, percebeu-se que essa primeira roupagem editada pela Carta de 1920 limitava de forma extrema a defesa constitucional, possibilitando, inclusive, a perpetuação de leis notadamente inconstitucionais, pois não era do interesse desses dois entes legitimados questioná-las perante a Corte.

Com o advento da lei de revisão constitucional de 1929, tal problema fora mitigado ao ampliar o rol de legitimados para questionar à Corte Constitucional normas tidas inconstitucionais, acrescentando aos dois legitimados já existentes as figuras da Corte Suprema para as causas cíveis e penais (Oberster Gerichtshof) e a Corte Administrativa para as causas administrativas (Verwaltungsgerichtshof).

Estruturava-se um sistema de controle híbrido, pelo menos sob o enfoque modal aqui tratado, afastando-se da exacerbada concentração do controle constitucional inaugurado pela Constituição de 1920 e aproximando-se do sistema norte-americano, obviamente ''a anos-luz de distância'' da descentralização típica daquele sistema.

Como visto, os dois principais sistemas de controle de constitucionalidade são praticamente antitéticos, diferenciando-se em quase todos os aspectos. Contudo, ambos sofrem constantes processos de mutações adequando-se às novas necessidades e buscando um meio-termo que melhor solucione os novos problemas. Meio-termo este que buscou o Brasil ao estruturar sua jurisdição constitucional, a ser abordada posteriormente.

1.3.1 O Instituto e a Suprema Corte dos Estados Unidos

O Sistema norte-americano de controle de constitucionalidade tem como fundamento a retroatividade das decisões, as quais operam o chamado efeito ex tunc. Tal tradição advém da premissa, sustentada por Dworkin (2002, p. 127), de que os juizes americanos não criam direitos, mas apenas declaram os já existentes na Constituição. Dessa forma as decisões deviam ser revogadas não porque a nova conjuntura assim impunha, mas, sim, porque aquela não representava da melhor maneira o direito aplicável.

Assim, cada lei admite uma única interpretação correta, sendo as interpretações anteriores preteridas em relação à atual por se entender que a última melhor aplica o direito ao caso.

Esse modelo da retroatividade plena, também conhecido pelo nome de Modelo de Blackstone, começou a ser duramente criticado e modificado pela Suprema Corte Norte-Americana na década de 60, atingindo seu ápice na Corte de Warren [01], mais precisamente no case Likletter versus Walker no ano de 1965.

Contudo, a discussão sobre o modelo Blackstone iniciou-se bem antes, ainda na década de 50, quando do julgamento de Griffin v. Illinois, no qual os justices Frankfuter, Burton e Minton argumentaram sobre a necessidade de se concederem efeitos prospectivos à decisão, evitando, assim, inúmeras revisões criminais e seus nefastos reflexos ao judiciário e ao Estado. Não obstante terem sido vencidos no julgamento, tal argumentação abriu as portas para que a Suprema Corte voltasse a abordar o assunto anos mais tarde.

Emílio Peluzo Neder Meyer (2008, p. 85) e Eduardo Appio (2008, p. 73) sustentam que as discussões da Corte americana sobre os efeitos temporais de suas decisões são mais perceptíveis quando analisamos as decisões sobre a utilização de provas ilícitas nas ações penais, decisões sobre as quais se passa a ponderar.

Primeiramente, ainda em 1949 (Wolf v. Colorado), a Suprema Corte Norte-Americana definiu que a colheita de provas de forma ilícita não ensejaria a nulidade da ação penal, pois a Quarta Emenda à Constituição em nada proibia tal produção inidônea de provas, não sendo necessário ao judiciário controlar a atividade policial, tarefa que poderia ser atribuída à opinião pública.

Anos mais tarde, já em 1961, no case Mapp v. Ohio, a Suprema Corte mudou seu posicionamento, entendendo que as provas obtidas ilicitamente agrediriam a Primeira Emenda, o que fez com que a Suprema Corte lidasse com os casos já passados em julgados.

Proveniente da abertura criada em Mapp v. Ohio, chegou à Suprema Corte o case Linkletter v. Walker, cujo objeto consistia na aplicação ou não do precedente de Mapp ao seu caso concreto. Victor Linkletter fora condenado por uma decisão baseada em provas ilícitas, anteriormente ao julgado de Mapp v. Ohio, e pretendia, agora, ter sua condenação anulada com aplicação do novo precedente firmado em 1961.

Diante da situação posta, a Suprema Corte Norte-Americana, em um julgamento histórico, por 7 votos a 2, entendeu que a Constituição Americana não proibia nem trazia uma regra absoluta de retroatividade, devendo o intérprete legal ponderar as peculiaridades do caso concreto e amoldar os efeitos de forma a melhor atender as necessidades do caso. Inaugurava-se a possibilidade de a Corte aplicar a teoria prospectiva às suas decisões, contudo, sem uma ruptura total e radical com a tradição da retroatividade.

Portanto, a Corte Americana decidiu que o precedente firmado em Mapp v. Ohio seria aplicado apenas aos casos pendentes de recurso e não aos transitados em julgado. Como mencionado, atribuía-se, pela primeira vez, efeito prospectivo ao julgamento, contudo sem romper com a teoria da retroatividade, razão pela qual a Suprema Corte, estruturou um rol de exigências a possibilitar a utilização dos efeitos prospectivos.

Criou-se, assim, a "Tese em Três Estágios", que por sua vez exigia, para a concessão de efeitos prospectivos, a análise de fatores, como: o propósito das novas normas (propósito), a extensão da dependência das autoridades que executam as normas anteriores (confiança) e os efeitos da retroatividade total sob a administração da justiça (efeito).

Após o julgamento de Linkletter v. Walker a Suprema Corte Norte-Americana passou "a exercitar uma importante dose de discricionariedade (liberdade) de atuação" (Appio, 2008, p. 75). Inaugurava-se uma época de maior ativismo da Suprema Corte, entabulando regras mais rígidas à atuação policial, afinal não mais seria necessário preocupar-se com os reflexos, ao passado, de suas atuações no presente.

Blaco Soto resume a atual estrutura americana em três efeitos possíveis de serem aplicados: o primeiro seria a tradicional Retroatividade Total, cuja decisão retroagiria ao passado; o segundo, a Limited Prospectivity, cuja decisão afeta não só o processo em que foi proferida, mas também aqueles que estão pendentes de julgamento final, e, por fim, a Pure Prospectivity ou Prospectivity Overruling, cuja decisão não seria aplicável sequer no caso que lhe deu origem; nessa situação toda a retroatividade seria excluída.

Complementando os ensinamentos de Blaco Soto, pode-se ainda citar uma outra possibilidade de aplicação dos efeitos denominada de Selective Prospectivity ou Partial Prospectivity, cuja decisão judicial afetaria apenas o caso concreto e nenhum outro, não retroagindo, é o que pontua o Serviço de Pesquisa da Biblioteca do Congresso (Congressional Research Service), vejamos:

As in criminal cases, the creation of new law, through overrulings or otherwise, may result in retroactivity in all instances, in pure prospectivity, or in partial prospectivity in which the prevailing party obtains the results of the new rule but no one else does. [02]

Todavia, o novo precedente (Linkletter v. Walker) trouxe à Suprema Corte Norte-Americana significativas críticas, principalmente em razão de estar os justices, reflexamente, extrapolando os limites do caso concreto sob análise, contrariando a essência do controle de constitucionalidade estadunidense.

Atualmente, em virtude dessas pressões, a Suprema Corte retornou às suas antigas tradições, desprestigiando a inovação trazida no julgamento de Linkletter v. Walker e buscando uma maior aproximação com o princípio da igualdade na aplicação jurisdicional do direito.

Tal retorno fora iniciado com o case Griffith v. Kentucky em 1987 e posteriormente consolidado com os cases James M. Beam Distilling Co. v. Georgia, em 1991, e Harper v. Virginia Departman of Taxation, em 1993, no qual se assentou que "quando a Suprema Corte não define expressamente os efeitos prospectivos, vige, como em James Beam, a natural retroatividade da decisão" (MEYER, 2008, p.94).

Desta feita, a partir de 1994 a Corte Americana, revogando o precedente aberto no julgamento de Linkletter, voltou a rechaçar in totum a possibilidade de se abrandar a retroatividade total da declaração de inconstitucionalidade, efeito inerente ao sistema norte-americano de controle constitucional.

1.3.2 O Instituto e os Tribunais Europeus

Os Tribunais Constitucionais Europeus surgiram sob forte influência de Hans Kelsen, pai intelectual da Constituição Austríaca de 1920. Diante dessa influência, quase a totalidade dos países do velho continente optaram pela fórmula proposta na Carta austríaca de se constituir um órgão próprio para dirimir as questões constitucionais, cuja função na prática se assemelharia a de um legislador negativo, pois, para Kelsen, a anulação de uma lei por um Tribunal "equivale a criar uma norma geral, já que não se está diante de uma questão concreta a ser resolvida num litígio de parte" (Meyer, 2008, p. 97).

Conforme previamente mencionado, a teoria de Kelsen opõe-se à americana de Blackstone. Para o austríaco ato nulo não seria um ato jurídico, razão pela qual seria inapropriado cogitar a existência de outro ato jurídico para revogá-lo, pois acreditava, como dito no item 1.1, que com a sua simples vigência a lei já possuiria validade ante a Constituição e apenas um procedimento especial poderia cessar seus efeitos.

Tomados pelos ideais kelsianos, os principais países europeus constituíram seus Tribunais Constitucionais, mesclando ambas as teorias (principalmente no tocante aos efeitos decisórios), mas sempre mantendo o caráter essencialmente kelsiano em seu funcionamento.

Com relação à modulação dos efeitos temporais das decisões destes Tribunais, existem algumas diferenças entre os diversos países que integram o continente europeu. Contudo, pertinente abordarmos alguns dos mais relevantes juridicamente.

O ordenamento jurídico austríaco, como não podia ser diferente, adota como regra geral a não retroatividade (ex nunc) das decisões que declaram uma norma inconstitucional. Assim, a mesma opera efeitos apenas a partir de sua publicação. Existe, ainda, a possibilidade de o Tribunal, analisando as implicações políticas do caso, atrasar a publicação da decisão em até 18 meses, possibilitando com que o Governo se movimente para minimizar os possíveis danos, afinal, a decisão começaria a operar efeitos em data posterior ao julgamento, pró-futuro; é a chamada Fristsetzung [03]. Pode ainda o Tribunal optar por aplicar à sua declaração de inconstitucionalidade uma retroatividade ilimitada ou limitada.

No Tribunal Alemão a regra geral é a retroatividade (ex tunc) das decisões constitucionais, com o consequente entendimento de que todos os atos anteriormente produzidos são nulos.

Na Itália, em regra os efeitos não retroagem (ex nunc), todavia, tal regra aplica-se tão-somente no controle concentrado, sendo que no incidental a retroatividade prevalece. Quanto à atribuição de possíveis efeitos prospectivos, a possibilidade fora rechaçada pela Constituinte italiana, porém, diante das dificuldades apresentadas pela Corte Constituzionale iniciou-se uma prática de atrasar as publicações das decisões visando alcançar tal efeito. Buscando solucionar o "jeitinho italiano", a partir da década 80 estruturam-se duas técnicas: a primeira, chamada de "inconstituzionalità sopravvenuta em sentido amplo ou differita", buscava restringir a retroatividade plena da decisão; a segunda, chamada de "doppia pronuncia", objetivava diferir os efeitos da decisão para um momento futuro.

A jurisdição espanhola apenas recentemente começou a discutir a questão dos efeitos temporais de suas decisões. Originalmente, a Lei Orgânica do Tribunal Constitucional Espanhol prevê que a declaração de inconstitucionalidade retroage (ex tunc) diante da nulidade declarada. Não obstante, em 1989 o Tribunal se viu diante de uma situação em que teve que ponderar os nocivos reflexos de sua decisão na administração estatal. Assim os julgadores buscaram resguardo na prospectivity americana, atribuindo efeito ex nunc aos casos já passados em julgado.

Por fim, imprescindível falar dos portugueses, que trazem no corpo de seu texto constitucional a possibilidade de se modular os efeitos, quando presentes razões de segurança jurídica, equidade ou interesse público:

Artigo 282.

(Efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade)

1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado.

2. Tratando-se, porém, de inconstitucionalidade ou de ilegalidade por infracção de norma constitucional ou legal posterior, a declaração só produz efeitos desde a entrada em vigor desta última.

3. Ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou de ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo menos favorável ao arguido.

4. Quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos n.ºs 1 e 2.

Em regra, a declaração de inconstitucionalidade lusitana retroage à entrada em vigor da norma viciada (ex tunc), conforme se depreende do artigo acima colacionado. Quanto à possibilidade de se atribuir efeitos pró-futuro, não há consenso. Grande parte da doutrina portuguesa, da qual se destacam Jorge Miranda e Gomes Canotilho, é veementemente contrária a tal atribuição, por entender que o princípio da supremacia constitucional não permitiria tal transação. Para eles, existe um verdadeiro excesso por parte do Tribunal Constitucional na utilização do instituto, fazendo com que a Corte acabe exercendo poderes tipicamente legislativos.

1.4 A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL BRASILEIRA

A função do judiciário em exercer o controle de constitucionalidade apareceu pela primeira vez com o advento da República, em 1890. Até então, o Brasil desconhecia qualquer controle constitucional exercido pelo poder judiciário. A uma, pela forte influência britânica e francesa, que consolidou o ideal da soberania do Parlamento, o que na prática implicava a inexistência de qualquer forma de controle da atividade legislativa. A duas, pela existência de um quarto poder no Império tupiniquim, o conhecido Poder Moderador, representado por Dom Pedro em pessoa, a quem cabia a tarefa de resolver os conflitos entre os Poderes.

Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organização Política, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos.

Pertinente ressaltar que no projeto constitucional de 1823, portanto, antes de Dom Pedro fechar a Constituinte e outorgar a Carta Magna, idealizava-se um controle constitucional pautado nos ensinamentos de Marshall, entendendo que "todas as leis existentes, contrárias à letra e ao espírito da presente Constituição, são de nenhum valor" [04].

Todavia, com a proclamação da República e a instalação da Constituinte de 1890, diga-se de passagem, fortemente influenciada pelos ideais norte-americanos, instaurou-se implicitamente a base que permitiria à reforma constitucional de 1926 implantar o controle constitucional pela via da exceção, possibilitando a qualquer juiz ou tribunal, respeitadas as regras de competência e da organização judiciária, exercer a atividade de controle. Consagrava-se assim a chegada ao Brasil do sistema difuso de controle constitucional.

Terminada a revolução de 30, Getúlio Vargas, não mais suportando a pressão popular (Revolução Constitucionalista em São Paulo), instala uma nova Constituinte que promulgava a nova Carta de 1934, que, em termos de jurisdição constitucional, trouxe três importantes inovações: a primeira, conhecida como cláusula de reserva de plenária, que se mantém até hoje, vinculava a declaração de inconstitucionalidade a um quorum especial, qual seja, maioria absoluta dos membros do Tribunal [05]; a segunda trazia, pela primeira vez, a figura do Procurador-Geral da República como agente instigador do controle constitucional na chamada ação direta de inconstitucionalidade interventiva; a terceira e mais engenhosa das inovações permitia ao Senado Federal suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo judiciário [06]. Proporcionava-se a possibilidade de se atribuir à decisão de caráter eminentemente inter partes (sistema norte-americano) eficácia erga omnes, ou seja, estendendo a todos os efeitos da decisão tomada para alguns.

Com o novo golpe de Vargas e a implantação do Estado Novo, uma nova Constituição foi outorgada, peculiarmente com características ditatoriais, sendo apelidada de Polaca [07]. Não obstante a manutenção do sistema difuso de jurisdição constitucional, instaurava-se uma verdadeira preocupação em fortalecer o Poder Executivo, permitindo ao Presidente da República, de forma discricionária, submeter ao Legislativo a decisão do Judiciário que declarou inconstitucional determinado regramento normativo, o qual, por sua vez, perderia seu efeito pela decisão de 2/3 dos membros ambas as Casas.

Iniciada a redemocratização brasileira, promulgou-se a Constituição de 1946, restaurando o equilíbrio dos Poderes e restabelecendo a tradição do controle difuso de constitucionalidade. Contudo, com o advento da Emenda Constitucional nº 16, em 1965, permitiu-se, exclusivamente ao Procurador-Geral da República, questionar a constitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, diretamente ao Supremo Tribunal Federal, inaugurando o sistema concentrado de proteção à Constituição, conforme inteligência da nova redação conferida ao art. 101, I, ''k'', da Magna Carta de 1946.

Estava inserido no Brasil o sistema concentrado de controle constitucional, realizado por meio de ação direta.

Ademais, a mesma emenda trouxe a possibilidade de se realizar tal controle concentrado também nos âmbitos dos Tribunais dos Estados, tendo como normas paradigmas as Constituições estaduais.

A Constituição Militar de 1967, posteriormente reescrita pela EC nº 1 de 1969 – reflexo direto do Ato Institucional nº 5 –, em nada de significativo alterou a Carta de 1946, ao menos com relação à jurisdição constitucional, onde apenas suprimiu-se a possibilidade trazida pela EC nº 16/65 de realizar controle constitucional no âmbito dos Estados, ressaltando a possibilidade de se realizar o controle de lei municipal em face de constituição estadual para fins de intervenção.

Finalmente, a atual Carta Constitucional, promulgada em 1988, trouxe basicamente três inovações: a primeira, na seara do controle concentrado, consistiu na expansão do rol de legitimados para propor a ADIn [08]; a segunda estabeleceu a possibilidade de se controlar as omissões legislativas tanto no âmbito do controle concentrado, por intermédio da ADIn por Omissão, quanto no controle difuso por meio do Mandado de Injunção; a terceira traçou os parâmetros para uma possível criação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).

Após sua promulgação, duas importantes emendas alteraram a jurisdição constitucional. A primeira mudança veio com a EC nº 3/93, que criou a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC). A segunda modificação veio com a EC nº 45/05, usualmente conhecida por Reforma do Judiciário, que: ampliou o rol dos legitimados para propor a ADC, igualando-o ao da ADIn; estendeu o efeito vinculante, antes apenas previsto para a ADC, à ADIn e; trouxe a figura da Repercussão Geral aos Recursos Extraordinários, o que, prima facie, não estabelece ligação com a jurisdição constitucional, mas que, como se verá, é de extrema importância para a atual sistematização de controle constitucional.

1.4.1 O Instituto e o Supremo Tribunal Federal

O Supremo Tribunal Federal ao exteriorizar inúmeras vezes em seus julgados a clara preferência pela teoria da nulidade, entendendo ser a lei inconstitucional um ato nulo e sem qualquer efeito e, portanto, operando efeitos ex tunc, acabou por alçar a nulidade da lei inconstitucional à condição de dogma, consolidando o chamado dogma da supremacia constitucional.

Proveniente do sistema norte-americano de controle constitucional, a teoria da nulidade, como visto no item anterior, fora pela primeira vez implementada no Brasil com a reforma constitucional de 1926, a qual possibilitava a defesa constitucional pela via da exceção, em caráter incidental.

Todavia, recentemente a nossa Corte superior vem presenciando uma gradativa flexibilização de tal supremacia constitucional por meio do surgimento de várias dissidências entre seus ministros, buscando questionar o caráter absoluto da teoria da nulidade e da consequente atribuição de efeitos ex tunc à declaração de inconstitucionalidade.

Marco dessa flexibilização é sem dúvida o julgamento do RE 79.343/BA do ano de 1977, no qual o então Relator Ministro Leitão de Abreu asseverou a necessidade de se temperar o dogma da supremacia constitucional para melhor aplicá-lo à conjuntura da situação, não obstante, ao fim, ter-se decidido pela retroatividade.

Em sua argumentação o Min. Leitão de Abreu entabula uma comparação entre a orientação de que a lei inconstitucional é lei morta (ideal americano) e uma orientação mais flexível na qual a lei inconstitucional produz efeitos enquanto não decretada seu vício (ideal austríaco). Consubstanciado nas ideias de Kelsen entende o Ministro que a lei, ao adentrar o ordenamento jurídico, impõe obediência ao destinatário até que porventura advenha uma decretação de inconstitucionalidade, in verbis:

[...] a lei inconstitucional é um fato eficaz, ao menos antes da determinação da inconstitucionalidade, podendo ter conseqüências que não é licito ignorar. A tutela da boa-fé exige que, em determinadas circunstâncias, notadamente quando, sob a lei ainda não declarada inconstitucional, se estabelecerem relações entre o particular e o poder público, se apure, prudencialmente, até que ponto a retroatividade da decisão, que decreta a inconstitucionalidade, pode atingir, prejudicando-o, o agente que teve por legítimo o ato e, fundado nele, operou na presunção de que estava procedendo sob o amparo do direito objetivo. (RE 79343, Relator(a): Min. LEITAO DE ABREU, SEGUNDA TURMA, julgado em 31/05/1977, DJ 02-09-1977)

Tal ponderação é tão significativa para uma abertura do STF – a ideia de ser possível fugir da obrigatoriedade do sistema norte-americano – que Mendes (2004, p. 295) encontra nessas argumentações o embrião da tese para a utilização do instituto da modulação temporal tanto no controle concentrado quanto difuso de constitucionalidade, ponderações mais adiante analisadas.

Posteriormente, outras decisões consolidaram a possibilidade de se mitigar os efeitos retroativos da declaração de inconstitucionalidade, sem, contudo, afastar a teoria da nulidade absoluta, como propusera anteriormente o eminente ministro Leitão de Abreu.

São os casos dos recursos extraordinários 105.789/MG e 122.202/MG, cujos relatores Ministros Carlos Madeira e Francisco Rezek, respectivamente, optaram por não aplicar a retroatividade total em virtude do princípio da irredutibilidade dos vencimentos dos magistrados. Na mesma linha, o RE 78.549/SP, no qual também se privilegiou o efeito ex nunc em observância ao princípio do funcionário de fato.

Desta feita, no tocante à atribuição de efeitos ex nunc às decisões judiciais, a Lei nº 9.868/99 em nada inovou, tendo apenas solidificado o posicionamento jurisprudencial construído pelo STF a partir da célebre decisão do Min. Leitão de Abreu.

Tem-se, pois, que em se tratando de controle difuso de constitucionalidade prevalece a tradição americana de atribuição de efeitos ex tunc. Todavia, caso haja a intervenção do Senado Federal, conforme previsto no art. 52 da Constituição Federal, a doutrina brasileira se divide. Alguns doutrinadores, dos quais destacam-se Alexandre de Moraes e José Afonso da Silva, entendem operar efeitos ex nunc. Em contrapartida, Gilmar Mendes, Clèmerson Clève e o próprio Supremo Tribunal – RMS 17.976/SP e RE 86.056/SP – entendem operar efeitos ex tunc, posicionamento último que prevalece em nosso ordenamento jurídico.

Por sua vez, no tocante ao controle concentrado de constitucionalidade, é possível encontrar julgados, ora num sentido ora noutro, adequando o efeito da decisão da melhor forma possível para a conjuntura à época do julgamento. Logo, a possibilidade de se trabalhar com os efeitos decisórios das decisões do STF também se consolidou na jurisprudência antes da entrada em vigor da Lei 9.868/99.

A inovação da Lei 9.868/99 ficou, assim, a cargo da faculdade concedida ao STF de se fixar uma data futura e atribuir à mesma o caráter de marco inicial para a produção dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade, vez que as demais possibilidades já estavam consolidadas na jurisprudência do Supremo.

Em síntese, o art. 27 da nova lei, que será abordado no capítulo 3 deste trabalho, deixa para trás a simples dicotomia ex tunc/ex nunc, possibilitando ao Pretório Excelso optar por quatro formas de se amoldar os efeitos temporais de suas decisões.

A primeira seria utilizar a tradicional doutrina de Blackstone, retroagindo os efeitos à entrada em vigor da lei inconstitucional. A segunda, uma espécie retroação limitada, restringindo os efeitos da decisão a algum momento entre a publicação da lei e a prolação da sentença. A terceira consistiria na opção clássica Kelsiana, limitando os efeitos a partir do trânsito em julgado da decisão de inconstitucionalidade. A quarta e última trataria da fixação de uma data no futuro, produzindo, então, efeitos prospectivos.

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Sobre o autor
Victor de Ozeda Alla Bernardino

Bacharelando pela Faculade de Direito da Universidade Federal de Goiás; Conciliador Voluntário na Seção Judiciária do Estado de Goiás

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERNARDINO, Victor Ozeda Alla. A manipulação temporal dos efeitos decisórios no controle difuso de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2337, 24 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13897. Acesso em: 26 abr. 2024.

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