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A manipulação temporal dos efeitos decisórios no controle difuso de constitucionalidade

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CAPÍTULO II - O RECURSO EXTRAORDINÁRIO E O CONTROLE DIFUSO

Como se sabe o controle difuso de constitucionalidade permite a qualquer magistrado ou tribunal exercer de forma incidental a proteção à Constituição, com respeito, por óbvio, às regras processuais civis de organização judiciária.

O sistema concreto de defesa constitucional pauta-se pela análise incidenter tantum da questão supostamente inconstitucional, ou seja, a constitucionalidade discutida apresenta-se na ação como mera causa de pedir do objeto processual, que será uma determinação judicial que resolva o litígio.

Como dito, da mesma prerrogativa detêm os Tribunais que igualmente exercem o controle difuso de constitucionalidade. Contudo, para esses, usualmente provocados mediante recurso, a Constituição Federal, em seu art. 97 [09], exige que a decisão se concretize pela maioria absoluta dos integrantes do Tribunal, o que na prática exclui a competência dos órgãos fracionários dos Tribunais, como as Câmaras, Turmas e Seções, restringindo a mesma ao Pleno ou ao Órgão Especial (este último quando houver).

Nessa situação, suscita-se uma questão de ordem,remetendo os autos ao órgão especial ou ao pleno, a quem compete analisar tal prejudicial, conforme inteligência dos artigos 480 e 481 do Código de Processo Civil, in verbis:

Art. 480. Argüida a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo do poder público, o relator, ouvido o Ministério Público, submeterá a questão à turma ou câmara, a que tocar o conhecimento do processo.

Art. 481. Se a alegação for rejeitada, prosseguirá o julgamento; se for acolhida, será lavrado o acórdão, a fim de ser submetida a questão ao tribunal pleno.

Portanto, a constitucionalidade arguida será apreciada primeiramente pela Turma ou Câmara, que, entendendo pela sua existência, submeterá tal entendimento ao Pleno ou ao Órgão Especial, a quem cabe a palavra final sobre a questão.

No entanto, há, ainda, a possibilidade de que o próprio STF exerça o controle difuso de constitucionalidade, situação, inclusive, mais pertinente ao objetivo desta pesquisa.

Tal possibilidade concretiza-se, sobretudo, por meio do Recurso Extraordinário, que se encontra disciplinado pelo art. 102, III da Constituição Federal, senão veja-se:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

(...)

III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida:

a) contrariar dispositivo desta Constituição;

b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal;

c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição.

d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.

Infere-se do dispositivo acima transcrito que o RE somente será viável quando, de alguma forma, houver ofensa à Constituição. Não obstante, a questão constitucional ainda deverá ser incidental, mero instrumento para a concretização do pedido principal, devendo, ainda, em caso de controle stricto sensu de constitucionalidade, respeitar a cláusula de reserva de plenário, incrustada no artigo 97 de nossa Magna Carta.

Diante do caráter essencialmente concreto do controle difuso – julgam-se casos singulares e situações individualizadas – e do caráter incidental da declaração constitucional, naturalmente a decisão judicial que põe termo ao processo possui efeitos retroativos (ex tunc) e eficácia inter partes.

Tal eficácia pode ser alterada por meio de uma inovação brasileira trazida na Constituição de 1934, e mantida na atual carta (art. 52, X) [10], que permite ao Senado Federal, discricionariamente, quando comunicando da decisão do Supremo que declarou, no todo ou em parte, a inconstitucionalidade de lei federal, estadual ou municipal, editar resolução suspendendo a eficácia da referida legislação.

Atribui-se, assim, eficácia erga omnes a uma decisão anteriormente dotada de eficácia inter partes, ou seja, entre os litigantes processuais.

Todavia, quanto ao efeito temporal, grande parte da doutrina entende operar efeitos ex nunc, afinal trata-se de mera suspensão de algo eficaz. Em contrapartida, Gilmar Mendes, Clèmerson Clève e Marcelo Caetano entendem operar tal resolução efeitos ex tunc, posicionamento que compartilham com o STF [11].

Por sua vez, a questão dos efeitos e da eficácia das decisões em sede de controle difuso de constitucionalidade está longe de se pacificar tanto na jurisprudência quanto nas doutrinas, pois, com as inovações legislativas introduzidas ao referido controle, eclode nas discussões a chamada Teoria da Abstrativização do Controle Difuso, a ser abordada no item 2.4.

2.2 A COMPATIBILIZAÇÃO VERTICAL DAS DECISÕES JUDICIAIS NO BRASIL

A ideia de se uniformizar a jurisprudência no Brasil remonta à era colonial, quando ainda se aplicava por aqui a legislação portuguesa, donde, inclusive, se buscou inspiração, juntamente com a Stare decisis norte-americana, para se estruturar uma preocupação com a compatibilização das decisões judiciais.

Expoente desse início de uniformização é, sem dúvida, o recurso de revista, previsto nas Ordenações Filipinas, aplicáveis ao Brasil até a sua independência, sendo posteriormente recepcionada pela Constituição de 1824 e revogada definitivamente pelo Código de Processo Civil de 1973.

Todavia, conforme precisamente pontua Osmar Mendes Paixão Côrtes (2007, p. 315),

De qualquer sorte, a preocupação com a divergência jurisprudencial não desapareceu com a revista do processo civil, pois o recurso extraordinário, já com a Reforma Constitucional de 1926, teve expressa previsão do seu cabimento quando houvesse divergência interpretativa.

Assim, passou o Supremo Tribunal exercer a função de uniformização jurisprudencial, o que era e continua a ser importante para a preservação da unidade do Direito no Estado Constitucional e imprescindível para a manutenção de uma estrutura federalista de Estado.

Ademais, sobre um enfoque mediato, tal uniformização busca uma maior racionalidade da atividade judiciária, evitando que demandas já maciçamente discutidas e decididas pelos Tribunais voltem a estes para nova apreciação, independentemente de possuírem partes diferentes, afinal, a argumentação jurídica já fora outrora resolvida.

Tenta-se, portanto, desafogar o judiciário brasileiro que há tempos se encontra à beira de um colapso, mormente em razão da enorme quantidade de processos com idêntica controvérsia.

Contudo, tal uniformização suscitou uma série de ponderações e preocupações acerca de elementos como a função interpretativa do magistrado e a diversidade cultura do país, que, prima facie, resultaria na impossibilidade de se imaginar uma interpretação sobre determinada norma, quando se tem tantas diferenças regionais.

Na mesma linha, tem-se ainda uma preocupação com uma possível obediência cega e irrestrita às vontades emanadas pelo Supremo Tribunal e a um engessamento da atividade do julgador.

No entanto, conforme brilhantemente pondera José Afonso da Silva (2003, p. 229), não possuímos uma diversidade de culturas, mas, sim, uma única, a qual detém vários elementos especificadores e diferenciadores. Argumenta, ainda, que não há que se cogitar tal obediência cega às decisões do Supremo, pois, senão, estar-se-ia substituindo "a fixidez das normas escritas pela fixidez da jurisprudência".

Cristalina a preocupação do legislador brasileiro com a uniformização jurisprudencial, criando mecanismos para compatibilizar as decisões dos Tribunais, sempre visando a proteger a unidade da Federação, reformando decisões contrárias ao consolidado entendimento do assunto. Contudo, tais mecanismos não possuíam o condão de obrigarem os Tribunais inferiores a obedecerem aos ditames traçados pelos Tribunais Superiores, condão previsto apenas no controle abstrato de constitucionalidade.

Não obstante a incessante preocupação, o sistema brasileiro, como visto, não previa qualquer forma de vinculação cogente, exceto os processos objetivos de controle constitucional, até a promulgação da EC n° 45, que inseriu a figura da súmula vinculante no ordenamento jurídico brasileiro, dando início a uma maior aproximação com o sistema de vinculação da common law, mais especificamente da doutrina norte-americana do Stare decisis, a seguir abordada.

2.2.1 A Doutrina Norte-Americana do Stare decisis

O sistema norte-americano do Stare decisis não se encontra disciplinado pela Constituição Americana, tampouco em lei federal, sendo proveniente da própria commom law. Sua origem remonta ao século XVIII, ainda na Inglaterra, quando William Blackstone sustentava a importância de se estruturar um sistema vinculativo de precedentes judiciais, buscando maior estabilidade nas decisões e incrementando a credibilidade dos magistrados.

Com a independência dos Estados Unidos, o modelo de precedentes também começou a ser aplicado pelos ianques, com quem mais se desenvolveu. Contudo, apenas em 1914, com a decisão no caso Hepburn v. Griswold, a doutrina foi judicialmente estabelecida. Todavia, atualmente a Suprema Corte Norte-Americana vem sendo alvo de inúmeras críticas por estar constantemente mudando seus precedentes e trazendo certa instabilidade ao país. Tal inconstância iniciou-se ainda na Corte de Rehnquist, quando se buscou flexibilizar o precedente judicial.

Trata-se, portanto, de uma vinculação do atual magistrado a um precedente anterior, cuja similitude fática impõe a utilização da decisão previamente proferida. Assim, não se exige a identidade dos casos comparados, mas a presença do mesmo princípio lógico utilizado para solução do precedente.

Dita imposição faz-se presente tanto no sentido horizontal quanto no vertical [12]; porém, na primeira situação o magistrado está vinculado à decisão pretérita desde que não opte por sua revogação (overruling), isso, claro, partindo da premissa de que exista um precedente. Na segunda, a vinculação é total e irrestrita, não podendo sequer cogitar a utilização do overruling.

Nesse sentido, interessante elucidar o que viria a ser um precedente. Para Michael Gerhardt in Eduardo Appio (2008, p. 64), existem cinco características principais inerentes a um verdadeiro precedente, apto a vincular futuras decisões. A primeira seria a sua permanência, ou seja, a possibilidade de a decisão se perpetuar ao longo dos anos, solucionando vários casos. A segunda seria a sua sequencialidade, ou seja, a ordem dos julgamentos gera resultados diferentes; dessa forma, caso se invertesse uma decisão e seu respectivo precedente, o resultado poderia ser diverso do ocorrido. A terceira baseia-se na sua consistência, ou seja, a nova decisão deve se adequar, do ponto de vista lógico, com a jurisprudência de determinado órgão julgador. A quarta consiste na sua compulsão, o que leva o justice, mesmo sendo pessoalmente contrário ao precedente, a aplicá-lo, por ser a melhor solução para o caso. Por fim, a quinta característica seria a sua previsibilidade, a qual demonstra ao julgador que as várias decisões anteriores geraram certa confiança na população, bem como uma expectativa de que seriam seguidas no futuro, razão pela qual o precedente deve ser mantido.

Na atual sistematização americana do Stare decisis existem quatro instrumentos utilizados pelos magistrados, que são de imprescindível importância para a completa compreensão do sistema de vinculação, quais sejam: Ratio Decidendi (holding), Obiter Dictum, Distinguishing e o Overruling.

O primeiro consiste na motivação da decisão judicial, possibilitando ao julgador que se utilize de precedentes como sua ratio decidendi, afinal, no Direito americano o precedente é considerado uma fonte material e formal de Direito, mesmo quando se "cria" [13] um novo direito; a razão estruturada para o caso será futuramente utilizada em outras decisões.

O segundo baseia-se em um fundamento de fato e direito, o que não vincula o julgador, pois são meros argumentos acessórios à solução do caso.

O terceiro constitui a busca pelo magistrado de similitude entre o atual caso e o precedente que se pretende aplicar ou afastar.

O último consiste na permissão concedida ao julgador, entendendo estar equivocado o precedente anterior, de revogá-lo e aplicar ao caso a solução que entenda mais correta, lembrando que tal possibilidade não existe quando se fala de vinculação vertical.

Diante do quadro exposto, pode-se entabular que o magistrado americano, diante de um caso concreto, poderá tomar quatro atitudes: a primeira seria a utilização do precedente como sua ratio decidendi, para solucionar a questão; a segunda consistiria na demonstração de que não existe similitude fática entre o caso concreto e o suposto precedente (distinguishing); a terceira seria comprovar que o fundamento anterior, supostamente vinculativo, não lhe aplica, pois consiste em mero obter dicta; e, por fim, a quarta seria a revogação (overruling) do precedente, estruturando uma nova decisão sobre o caso.

Portanto, a vinculação das decisões judiciais nos Estados Unidos é um instituto extremamente arraigado na sua tradição jurídica e de extrema importância para o sistema de controle difuso de constitucionalidade.

2.2.2 Os Métodos de Compatibilização Vertical Utilizados no Brasil

Pode-se identificar a introdução da compatibilização das decisões judiciais em diversos instrumentos inseridos em nosso procedimento civil, os quais, à primeira vista, podem passar despercebidos, mas que refletem claramente a intenção do legislador em criar uma ideologia de vinculação de precedentes, tanto vertical quanto horizontalmente.

Primeiramente, como exemplo mais claro dessa referida teoria, tem-se a súmula vinculante. Inserida em nosso ordenamento jurídico pela EC n° 45, consiste em um instrumento concedido ao STF para atribuir efeito vinculativo às decisões em sede de controle difuso, que, naturalmente, não dotam de tal imperatividade.

Prescreve o art. 103-A da Constituição Federal:

O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

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Infere-se, pois, que o principal objetivo da súmula vinculante é atribuir a uma série de decisões idênticas caráter cogente, ou seja, concedendo força suficiente para que todas as demais instâncias do judiciário e dos outros Poderes do Estado sejam compelidas a cumprir tal determinação judicial, que, a partir da publicação do enunciado sumulado, detém eficácia erga omnes.

Todavia, existem diversos outros mecanismos de compatibilização que não se destacam como a súmula do art. 103-A da CF. É o caso, por exemplo, da possibilidade prevista no artigo 557 [14] do CPC, que permite ao relator negar seguimento a recurso manifestamente conflitante com súmula ou posicionamento dominante do próprio Tribunal, de Tribunal Superior ou do STF, podendo, até mesmo, dar provimento monocraticamente ao recurso caso a decisão vergastada igualmente contrariar jurisprudência dominante, nos termos já esboçados.

Na mesma linha é caso da permissão dada ao juiz monocrático, pelo § 1º do artigo 518 [15] do CPC, de não receber o recurso de apelação quando a decisão estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do STF.

Pode-se, ainda, citar o art. 543-A, §5º [16], o qual atribui presunção absoluta de presença de repercussão geral ao RE que atacar decisão contrária à súmula ou jurisprudência dominante do STF. Tem-se, pois, um claro prestígio à força normativa da Constituição, com o fito de perseguir a unidade do Direito por meio da compatibilização vertical das decisões judiciais.

Evidente a introdução do mecanismo da compatibilização das decisões judiciais no ordenamento brasileiro, o que às vezes se dá de maneira explícita, como no caso da edição de súmula vinculante, ou de forma mais discreta, como nos instrumentos inseridos no CPC, que possibilitam uma maior padronização do judiciário e suas decisões.

2.3 A REPERCUSSÃO GERAL E SEUS REFLEXOS CONSTITUCIONAIS

A repercussão geral é um filtro constitucional introduzido no ordenamento jurídico pela EC nº 45 e posteriormente regulamentado pela Lei nº 11.418/06.

Com seu advento, restringia-se o acesso ao STF, o qual não mais estaria à disposição de litígios pertinentes apenas às partes envolvidas, exigindo-se mais. Exige-se, sim, uma transcendência e relevância da matéria discutida, elementos cuja competência para apreciação é exclusiva do pretório excelso e sob quorum qualificado.

É o que prescreve o art. 543-A do CPC, introduzido pela Lei nº 11.418/06:

Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo.

§ 1º Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.

Dessa feita, o legislador finalmente conceituava o instituto essencialmente subjetivo e aberto que consignou no § 3º do art. 102 da CF [17], bem como confirmava ser a repercussão geral um requisito específico e intrínseco [18] de admissibilidade do recurso extraordinário, ao taxativamente condicionar seu conhecimento à existência de elementos relevantes do ponto de vista social, jurídico, econômico ou político e que transcendessem a esfera do particular.

Consagrou-se, assim, o binômio ‘relevância e transcendência’ como elementos indispensáveis para a configuração da repercussão geral; em outras palavras, deve a demanda posta contribuir para a persecução da unidade do Direito no Estado Constitucional, compatibilizando ou solucionando os problemas de índole constitucional.

Não obstante o caráter indeterminado da conceituação do binômio entabulado, tal subjetividade não pode ser entendida como um livre arbítrio ao julgador para que considere a existência ou não da repercussão geral apenas sob o seu ponto de vista pessoal, mas sim que introduza na interpretação do binômio uma valoração objetiva, permitindo um controle social por intermédio de casos previamente analisados, que servirão de parâmetro às futuras concessões. Resta, pois, ao STF construir paulatinamente, mediante o julgamento de casos concretos, as limitações do que conteria ou não repercussão geral.

Sobre o binômio, Marinoni e Mitidiero (2008, p. 36 e 37) ponderam, com autoridade, sobre a análise dos elementos caracterizadores do interesse exigido e sobre a forma de se examinar a transcendência, para a atribuição da repercussão geral:

Evidentemente, não é por acaso que o recurso extraordinário, endereçado ao guardião da Constituição (art. 102, caput, da CF), tem o seu conhecimento subordinado à alegação de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social e jurídico, uma vez que a própria Constituição arrola matérias por ela mesma tratada sob Títulos que trazem, exclusivamente ou não, explicitamente ou não, epígrafes coincidentes com aqueles conceitos que autorizam o conhecimento do recurso extraordinário.

(...)

A transcendência da controvérsia constitucional levada ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal pode ser caracterizada tanto em uma perspectiva qualitativa como quantitativa. Na primeira, sobreleva para a individualização da transcendência o importe da questão debatida para a sistematização e desenvolvimento do direito; na segunda, o número de pessoas susceptíveis de alcance, atual ou futuro, pela decisão daquela questão pelo Supremo e, bem assim, a natureza do direito posto em causa (notadamente, coletivo ou difuso).

Patente a intenção do legislador de retirar o caráter eminentemente individual do recurso extraordinário, atribuindo-lhe status mais genérico, aproximando-o das ações diretas constitucionais. Com a repercussão geral, o controle difuso exercido por intermédio do recurso extraordinário deu um grande passo no sentido de se aproximar do sistema concentrado de constitucionalidade, referendando a atual tendência – destacada por inúmeros doutrinadores e abordada no item abaixo – de abstrativização do controle difuso de constitucionalidade.

Além da obrigatoriedade de o recurso tratar de matéria transcendente e relevante – logo, em certo ponto, abstrata – outras medidas inerentes ao instituto auxiliam nessa aproximação.

É o caso da permissão prevista no § 5º, também do art. 453-A, em que se admite a intervenção do amicus curiae para aferição da relevância e transcendência. O amicus curiae, cuja tradução literal é ‘amigo da corte’, é uma figura típica do controle concentrado, sendo, inclusive, previsto no art. 7º, § 2º da Lei nº 9.868/99. Consiste na permissão para que terceiros (aqui sem adentrar na discussão se seria ou não modalidade de intervenção de terceiros) ingressem de forma objetiva na ação, buscando maior discussão e ponderação sobre a tese jurídica posta em juízo. Como se depreende da própria tradução literal do instituto – amigo da Corte –, trata-se de um auxilio dado à Corte Constitucional.

Nas palavras do Ministro Celso de Mello,

A admissão de terceiro, na condição de amicus curiae, no processo objetivo de controle normativo abstrato, qualifica-se como fator de legitimação social das decisões da Suprema Corte, enquanto Tribunal Constitucional, pois viabiliza, em obséquio ao postulado democrático, a abertura do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade, em ordem a permitir que nele se realize, sempre sob uma perspectiva eminentemente pluralística, a possibilidade de participação formal de entidades e de instituições que efetivamente representam os interesses gerais da coletividade ou que expressem os valores essenciais e relevantes de grupos, classes ou estratos sociais. {...}

Sobre essa intervenção na apreciação da repercussão geral, pertinente a observação realizada por André Albuquerque Cavalcanti Abbud (2005, p. Repro n° 129), quando ainda abordava o anteprojeto da Lei nº 11.418/06:

A admissão do amicus curiae tem o propósito de ampliar os mecanismos de participação da sociedade no processo, contribuindo assim para acentuar o caráter democrático e pluralista deste e, nessa medida, conferir maior legitimidade à decisão judicial. A previsão do anteprojeto foi, assim, bastante feliz. Tendo em vista a enorme força por ele atribuída aos precedentes do STF no juízo sobre a repercussão geral, os quais terão larga influência sobre o julgamento de outros recursos, nada melhor que abrir à sociedade, na figura do amicus, a possibilidade de participar ativamente da formação do convencimento e tomada de decisão da corte.

Outro mecanismo que aproximou os controles de constitucionalidade foi a expansão concedida à decisão que reconhece a inexistência ou não da repercussão geral, a qual avança aos limites do caso concreto discutido em juízo e serve de precedente vinculante às outras demandas que versem sobre mesma controvérsia. Tem-se configurada uma espécie de eficácia erga omnes para os casos idênticos, elemento comum ao controle concentrado.

Todavia, o que mais aproximou os dois tipos de controle foi o procedimento da análise da repercussão geral em recursos repetitivos. Em tais situações, deve o Tribunal a quo sobrestar os inúmeros recursos que versem sobre mesma controvérsia, escolhendo, dentre eles, um ou alguns que melhor representam a controversa jurídica posta. Tem-se aí a figura do recurso paradigma. O RE escolhido deverá ser remetido ao STF, a quem compete exclusivamente a análise da repercussão geral.

Conhecido o recurso, passa-se à ponderação de mérito, e, em sendo este provido, deverá o juízo a quo ser comunicado para que se retrate da decisão ora vergastada, sob pena de reclamação constitucional. Contudo, no caso de não provimento do recurso, os sobrestados nos Tribunais, Turmas de Uniformizadoras ou Turmas Recursais deverão ser tidos como prejudicados, já que afrontam a decisão tomada pelo STF.

Caso não conhecido o recurso, todos os demais barrados no juízo a quo serão automaticamente tidos como não-admitidos, conforme reza art. 543-B, in verbis:

Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo.

§ 1o Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da Corte.

§ 2o Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos.

§ 3o Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se.

§ 4o Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada.

§ 5o O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal disporá sobre as atribuições dos Ministros, das Turmas e de outros órgãos, na análise da repercussão geral.

Tem-se, pois, uma verdadeira vinculação à decisão que não reconhece a existência da repercussão geral, operando verdadeira eficácia erga omnes, típica do controle concentrado de constitucionalidade.

Nítidos são os reflexos da repercussão geral no controle de constitucionalidade. Ao se alterar a essência do recurso extraordinário, retirando seu caráter concreto e atribuindo-lhe certa abstração, reflexamente modificou-se o controle difuso, aproximando-o do controle concentrado, inclusive com a importação, pelo primeiro, de institutos típicos do segundo, conforme se aborda no item seguinte.

2.4 O RECURSO EXTRAORDINÁRIO E SUA ATUAL TENDÊNCIA DE ABSTRATIVIZAÇÃO

Com a implementação das medidas processuais já tratadas, o Direito brasileiro vem se aproximando do sistema norte-americano do Stare decisis, buscando estabelecer uma relação de hierarquia entre as Cortes Superiores para com os Tribunais e os juízes monocráticos.

Diante dessa nova conjuntura estruturada, muitos são os estudiosos que já afirmam estar em andamento, no Brasil, o fenômeno da abstrativização do controle difuso ou objetivização do recurso extraordinário, o que na prática significa uma aproximação dos dois sistemas de controle constitucional, que, como visto, surgiram como elementos diametralmente opostos.

Como expoente dessa recente teoria, há de se destacar o processualista Fredie Didier Jr., o qual já propagava tal acontecimento, ainda no ano de 2005, quando do surgimento do instituto da repercussão geral e da súmula vinculante, os mais significativos elementos dessa modificação doutrinária.

Atualmente, a questão gera muita polêmica: doutrina e magistrados se dividem, ressaltando os benefícios e os prejuízos de se permitir tal transformação sofrida pelo controle difuso de constitucionalidade.

Necessária a constatação de que a implementação das medidas de cunho uniformizadoras, abordadas no item 2.2.2, bem como do instituto da Repercussão Geral, abordado no item 2.3, possibilitou ao STF vislumbrar o recurso extraordinário não mais como instrumento de reexame judicial do caso concreto, mas, sim, como um instrumento de controle constitucional de caráter genérico.

Objetivamente, para se compreender tal modificação, necessário se faz romper com certa tendência de se considerar o sistema difuso como sinônimo do sistema concreto e o sistema concentrado como sinônimo de sistema abstrato.

Tal emparelhamento, mesmo sendo extremamente atrativo, deve ser realizado com muita cautela. Certo que, em regra, o controle concreto dar-se-á de forma difusa, contudo, enquanto o primeiro refere-se à matéria a ser abordada (caso concreto), o segundo pauta-se pela forma em que se processa o referido controle (via de defesa, incidenter tantum). De outro lado, é comum que o controle abstrato se realize por meio do sistema concentrado; todavia, como asseverado acima, o sistema concentrado, tal qual o difuso, refere-se ao modo de se processar o controle (ação direta, principaliter tantum), enquanto que o controle abstrato relaciona-se com a matéria abordada (análise em tese).

Fredie Didier (2006, p. 121-122) alerta não existir qualquer impedimento à utilização de um controle constitucional, ao mesmo tempo difuso e abstrato, no qual a defesa constitucional seria exercida por qualquer órgão jurisdicionado, mas feita em tese, sem a análise de uma situação concreta. Cita, ainda, o processualista o exemplo da arguição de inconstitucionalidade nos Tribunais, in verbis:

É o que acontece quando se instaura o incidente de arguição de inconstitucionalidade perante os tribunais (art. 97 da CF/88 e arts. 480-482 do CPC): embora instrumento processual típico do controle difuso, a análise da constitucionalidade da lei, neste incidente, é feita em abstrato. Trata-se de incidente processual de natureza objetiva (é exemplo de processo objetivo, semelhante ao processo da ADIN ou ADC). É por isso que, também à semelhança do que já ocorre na ADIN e ADC, é possível a intervenção de amicus curiae neste incidente (§§ do art. 482). É em razão disso, ainda, que fica dispensada a instauração de um novo incidente para decidir questão que já fora resolvida anteriormente pelo mesmo tribunal ou pelo STF (art. 481, par. ún., CPC).

Nessa linha de raciocínio o STF vem mitigando a essência concreta e difusa do recurso extraordinário, enxergando-o como forma de se possibilitar a defesa constitucional. Exteriorização desse entendimento é sem dúvida a argumentação do Min. Gilmar Mendes, quando do julgamento do Processo Administrativo nº 318.715/STF, in verbis:

A função do Supremo nos recursos extraordinários ─ ao menos de modo imediato ─ não é a de resolver litígios de fulano ou beltrano, nem a de revisar todos os pronunciamentos das Cortes inferiores. O processo entre as partes, trazido à Corte via recurso extraordinário, deve ser visto apensa como pressuposto para uma atividade jurisdicional que transcende os interesses subjetivos.

No mesmo perfilhamento, o RE nº 376.852/SC, também da relatoria do Min. Gilmar Mendes:

Esse novo modelo legal traduz, sem dúvida, um avanço na concepção vetusta que caracteriza o recurso extraordinário entre nós. Esse instrumento deixa de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. Trata-se de orientação que os modernos sistemas de Corte Constitucional vêm conferindo ao recurso de amparo e ao recurso constitucional (Verfassubgsbeschwerde) (...) Essa orientação há muito mostra-se dominante também no direito norte americano. (STF, Pleno, RE 376852, rel. Min. Gilmar Mendes, DJU 24.10.2003, p. 65)

Ademais, inúmeros são os exemplos no direito brasileiro que expõem tal tendência, como a sistematização do recurso extraordinário, prevista no art. 14 e 15 da lei dos Juizados Especiais Federais [19], a qual, juntamente com o Regimento Interno do STF, possibilita a intervenção de interessados em se discutir a tese (figura análoga à do amicus curiae),a vinculação de todas as Turmas Recursais à decisão proferida pelo STF e a concessão de cautelar sobrestando todas as ações de idêntica controvérsia até o julgamento final pelo STF, cuja decisão aplica-se nos casos semelhantes (similar à permissão do art. 2 da Lei nº 10.868/99).

Na mesma linha, tem-se a criação da súmula vinculante pela EC nº 45, a qual, como se viu, atribui eficácia erga omnes a reiteradas decisões no controle difuso, bem como o art. 475, § 3º [20] do CPC, que desobriga o reexame necessário quando a sentença consubstancia-se em julgados do pleno do STF.

O voto da Min. Ellen Gracie, no AI n° 375011, que dispensou o atendimento ao pré-questionamento sob o argumento de ser a matéria em questão relevante para apreciação constitucional, igualmente compactua desse entendimento. No mesmo sentido, o Min. Sepúlveda Pertence, no RE n° 298694/SP, entendeu possível o julgamento de matéria não enfrentada pelo Tribunal a quo, atribuindo uma noção aberta ao objeto do recurso, assim como ocorre nas ações diretas.

Cita-se, ainda, a admissão pelo STF – dada "a relevância da matéria, e, apontando a objetivação do processo constitucional também em sede de controle incidental" [21] – da intervenção da figura do amicus curiae. Por fim, a modulação temporal levada a cabo pelo Min. Gilmar Mendes no julgamento do Habeas Corpus, cujo objeto era a progressão de regime nos crimes hediondos.

Portanto, vários são os indícios de que, gradativamente, o recurso extraordinário vem se abstraindo de sua essência estritamente particular e se tornando, como alguns Ministros intitulam, um "remédio de controle abstrato de constitucionalidade" (Min. Ellen Gracie).

Não obstante a visível modificação da sistemática do controle difuso, tal tese está longe de ser unanimidade, ao passo que dentro da própria Corte Constitucional existe uma clara divisão entre os Ministros Gilmar Mendes e Eros grau, a favor, e Joaquim Barbosa e Sepúlveda Pertence (aposentado), contrários à tal teoria. (Lenza, 2009, p. 185).

Para os Ministros Mendes e Grau, o art. 52, X da Constituição Federal, antes responsável pela atribuição de eficácia erga omnes às decisões do controle difuso, sofreu uma verdadeira mutação constitucional, não mais devendo ser interpretado como sendo o Senado Federal o ator responsável pela suspensão da legislação tida como inconstitucional, mas, sim, o agente responsável por dar publicidade à decisão proferida pelo STF.

Afinal, após proferida a decisão, já se configura a inconstitucionalidade e a aplicação da lei já se torna inviável, não sendo necessário o Senado federal conferir caráter cogente à decisão, pois a mesma já é eivada de tal imperatividade por meio do princípio da supremacia constitucional.

Discordando desse pensamento, o Ministro Joaquim Barbosa entende ser mais confiável utilizar-se da súmula vinculante para atribuir tal eficácia à decisão proferida em sede de controle difuso ou valer-se do Senado Federal, atitudes com as quais se impediria um avanço sob domínios do legislativo, evitando uma hipertrofia do Judiciário, principalmente do STF.

Inegável a constatação de que a teoria da abstrativização do controle difuso já se encontra infiltrada em nosso ordenamento jurídico; contudo, independentemente de sua utilização é necessário ponderar sobre as reais consequências por ela geradas, sopesando as vantagens e as desvantagens para, apenas, então, com impassibilidade e propriedade, se permitir tal aproximação entre os controles constitucionais, que há séculos são tidos como ‘água e vinho’.

Compartilha dessa preocupação e precaução o jurista Pedro Lenza (2009, p. 188), cujas palavras são imprescindíveis no momento:

Por todo o exposto, muito embora a tese da transcendência decorrente do controle difuso pareça bastante sedutora, relevante e eficaz, inclusive em termos de economia processual, de efetividade do processo, de celeridade processual (art. 5º, LXXVIII – Reforma do Judiciário) e de implementação do princípio da força normativa da constituição (Konrad Hesse), parecem faltar, ao menos em sede de controle difuso, dispositivos e regras, sejam processuais, sejam constitucionais, para a sua implementação.

Pontuais as palavras do ilustre doutrinador que corretamente enxerga a necessidade de melhor regulamentação de tal aproximação entre os controles constitucionais, que, apesar de, em tese, ser extremamente benéfica à falida instituição do processo, pode se mostrar extremamente prejudicial ao Estado e seus Poderes, em caso de precipitada aplicação da abstrativização, sem a devida regulamentação.

2.5 A NECESSIDADE DE SE MODULAR AS DECISÕES NO CONTROLE DIFUSO

O Controle Difuso de constitucionalidade no Brasil vem, ao longo dos anos, sofrendo intensa modificação em sua concepção, deixando para trás a teoria estadunidense, baseada no julgamento de Marshall, e se aproximando da ideologia Kelsiana, típica do controle concentrado.

Dois grandes acontecimentos foram os responsáveis por tal aproximação entre os sistemas controle de constitucionalidade e pela mudança na maneira de se ver, pensar e aplicar o controle difuso.

O primeiro consiste, como visto no item 2.2, na incessante busca por uma uniformização dos Tribunais, por meio da importação de elementos inerentes à doutrina norte-americana da vinculação dos precedentes, chamada de Stare decisis. Elementos estes que prezam por uma orientação jurisprudencial, chegando, em certos casos, a impor uma vinculação compulsória, enquanto que em outros consiste em mera orientação sem qualquer obrigatoriedade.

Estrutura-se, então, a chamada teoria da compatibilização vertical das decisões judiciais, a qual reporta aos Tribunais tidos inferiores o dever ou recomendação de se observar as decisões proferidas pelo STF, em sede de recurso extraordinário, ou, em outras palavras, em sede de controle difuso.

Como visto, o principal representante dessa teoria é, sem sombra de dúvidas, a súmula vinculante, cuja observância é compulsória e inescusável a todas as esferas dos Poderes da República, devendo o STF ser interpelado diante de seu desrespeito.

O segundo grande acontecimento se deu com a atual tendência de abstrativização do controle difuso de constitucionalidade ou da objetivização do recurso extraordinário, que consiste na superação do ideal individualista do RE e da necessidade de enxergá-lo como mero instrumento para se alçar matérias constitucionais ao pálio dos ministros do STF.

Principal expoente dessa tendência é, sem dúvida, o instituto da repercussão geral, que, como abordado, pauta-se pela exigência do binômio ‘relevância e interesse’, como requisito de admissibilidade recursal.

A repercussão geral rompeu de uma vez por todas com a singularidade do objeto tratado no recurso extraordinário: atualmente, para ser conhecido, o RE precisa versar sobre tema relevante ou aspecto político, social, econômico ou jurídico, e, principalmente, precisa transcender a esfera de interesse das partes litigantes, devendo abarcar situações cujas soluções interessam a outros litígios em trâmite ou possíveis de judicialização.

Com a repercussão, o objeto do RE deixa de ser fechado e abre-se para a interpretação dos ministros do STF, os quais não mais se veem restritos aos argumentos versados na peça recursal, gozando da mesma liberdade já usufruída nas ações diretas, típicas do controle concentrado.

Ademais, além da exigência de transcendência da matéria tratada no recurso interposto – que, na prática, implica imaginar uma decisão que extrapola os limites do processo e atinja a todos, ou, no mínimo, um considerável grupo de pessoas com interesses coincidentes –, a inovação legislativa prevê ainda uma espécie de vinculação das decisões que não reconheçam a existência da repercussão geral. Não se olvidando ainda das hipóteses de recursos pautados em idêntica controvérsia, situações nas quais a eficácia vinculativa, tanto da apreciação da repercussão quanto do mérito da demanda posta em juízo, se afloram.

Nesse sentido, Marinoni e Mitidiero (2008, p. 73) entendem dotar as decisões proferidas no controle difuso de efeito erga omnes, cabendo à súmula vinculante atribuir eficácia cogente apenas às decisões nas quais a ratio decindendi não esteja claramente definida. É o que se denota do trecho a seguir:

Foi exatamente para essas situações que o constituinte derivado resolveu inserir, no art. 103-A da Constituição da República, a possibilidade de edição de súmula com efeito vinculante. Assim, aonde a ratio decidendi for cristalina, a súmula vinculante é absolutamente desnecessária. Nos casos em que a ratio decidendi do julgado for muito complexa ou obscura, edita-se a súmula.

Evidente, portanto, a transcendência sofrida pelo controle difuso de constitucionalidade brasileiro, o qual, por intermédio das alterações abordadas, abandonou sua característica essencial de pautar-se por casos concretos, começando a utilizar-se destes apenas como parâmetro de análise, contudo, sem qualquer cerceamento da análise de elementos extrínsecos aos tratados no caso.

Inquestionável o entendimento do STF de se modular as decisões judiciais também no controle difuso, como fez recentemente no julgamento do HC 82.959 e do RE 197.917-8/SP, diante da reverberação que, atualmente, as decisões proferidas nesse tipo de controle provocam na sociedade; afinal, está-se diante de uma causa de relevante interesse social, ou político, ou econômico, ou jurídico, cuja tese discutida transcende o indivíduo e atinge determinada coletividade.

Assim também entendeu a Suprema Corte Norte-Americana, que no case Linkletter v. Walker propôs e modulou os efeitos da decisão, aplicando-a tão-somente aos casos ainda pendentes de julgamento, vislumbrando, assim, ainda na década de 60, a necessidade de se modular suas decisões de controle constitucional, que nos Estados Unidos se dá exclusivamente pela via difusa.

Todavia, o reconhecimento da necessidade de se aplicar ao controle difuso o instituto da modulação temporal dos efeitos das decisões não implica que o art. 27 da Lei nº 9.868/99 deva ser, de pronto, utilizado para a regulamentação do instituto no sistema difuso de constitucionalidade. Tal conclusão merece ponderação mais alongada sobre as inúmeras nuanças que permeiam sua aplicação, apontamentos que serão deixados para o próximo capítulo.

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Sobre o autor
Victor de Ozeda Alla Bernardino

Bacharelando pela Faculade de Direito da Universidade Federal de Goiás; Conciliador Voluntário na Seção Judiciária do Estado de Goiás

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERNARDINO, Victor Ozeda Alla. A manipulação temporal dos efeitos decisórios no controle difuso de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2337, 24 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13897. Acesso em: 24 abr. 2024.

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