Artigo Destaque dos editores

A manipulação temporal dos efeitos decisórios no controle difuso de constitucionalidade

Exibindo página 3 de 4
Leia nesta página:

CAPÍTULO III - A LEI 9.868/99 E O CONTROLE DIFUSO

O controle concentrado de constitucionalidade foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro com o advento da EC n° 16 no ano de 1965, que reformou a Constituição de 1946, trazendo a figura da Ação Direta de Inconstitucionalidade, cuja apreciação competia exclusivamente ao Supremo Tribunal.

Como visto ainda no primeiro capítulo deste trabalho, de 1965 até a presente Magna Carta, o sistema concentrado de constitucionalidade se manteve em nossa legislação, estando atualmente previsto no art. 103 [22] da Carta de 1988, no qual foram traçadas suas diretrizes gerais, cuja regulamentação viria apenas em 1999, com a edição da Lei n° 9.868 e da Lei n° 9.882, do mesmo ano.

Todavia, antes da edição das referidas leis, no ano de 1993 mais uma vez o legislador brasileiro inovou ao aprovar a EC n° 3, criando a Ação Declaratória de Constitucionalidade, cujo objetivo seria sanar possíveis dúvidas quanto à constitucionalidade de determinada legislação, conferindo, assim, maior estabilidade ao ordenamento pátrio e privilegiando a segurança jurídica.

Dessa feita, no ano de 1999 o Congresso Nacional aprovou a lei que regulamentou a ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade, especificando desde os legitimados a propor tal demanda, passando pelos elementos essenciais à petição inicial, abordando a intervenção de terceiros e a figura do amicus curiae, bem como suas liminares, e ponderando, por fim, sobre as decisões definitivas, sendo este justamente o ponto relevante para a presente pesquisa e onde se encontra prevista a modulação temporal dos efeitos das decisões judiciais.

O mesmo ocorreu com a edição da Lei n° 9.882/99, que regulamentou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental e trouxe no bojo do art. 11 a permissão para a mitigação dos efeitos do reconhecimento do descumprimento do preceito fundamental.

Destarte, atualmente o controle concreto de constitucionalidade brasileiro é composto por três ações, quais sejam: Ação Direta de Inconstitucionalidade, Ação Declaratória de Constitucionalidade e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, regulamentadas, primeiramente, pela Constituição Federal, que traz parâmetros gerais, os quais devem ser observados pelas legislações infraconstitucionais, posteriormente pelas Leis 9.868 e 9.882 e, por fim, pelo Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, o qual possui força de lei.

3.2 O ART. 27 DA LEI 9.868/99 E SUAS EXIGÊNCIAS PARA SE MODULAR OS EFEITOS

A Lei 9.868 de 10 de novembro de 1999, como visto, foi responsável pela regulamentação da Ação Direta de Inconstitucionalidade e da Ação Declaratória de Constitucionalidade.

A nova legislação não trouxe grandes inovações ao procedimento das ações do controle concentrado de constitucionalidade, limitando-se, em sua generalidade, a reafirmar as práticas consolidadas pela jurisprudência e pelo Regimento Interno do pretório Excelso.

Todavia, a Lei, em seu art. 27, trouxe uma significativa inovação ao controle constitucional brasileiro. O referido excerto normativo permite aos ministros do Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços, modularem os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, quando vislumbrarem a existência de relevante interesse social e visando proteger a segurança jurídica. Vejamos:

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Da inteligência do artigo supracitado pode-se retirar quatro importantes informações, quais sejam: o quorum especial imposto pelo legislador para autorizar a modulação temporal, necessitando não de maioria absoluta, como se exige para declaração de inconstitucionalidade, mas, sim, de dois terços dos ministros; a permissão de utilização do instituto apenas nas decisões que declaram inconstitucionalidade de lei, não prevendo a possibilidade de se manipular os efeitos nas ações declaratórias de constitucionalidade; a necessidade de se pautar na segurança jurídica ou no excepcional interesse social para justificar a mitigação dos efeitos decisórios; a liberdade concedida aos ministros do Supremo para fixarem como termo a quo do julgado a data do surgimento da lei (ex tunc), ou uma data entre a edição da lei e o julgamento, ou a data do julgado (ex nunc), ou data futura (pure prospectivity).

Primeiramente, seria natural o raciocínio de que fosse exigido, para a modulação dos efeitos decisórios, um quorum qualificado de votação, vez que se trata de exceção à regra da nulidade total da lei inconstitucional fundamentada sob o dogma da supremacia constitucional e consolidada pelo próprio Supremo Tribunal. Todavia, tal exigência numérica ainda encontra vários opositores que entendem ser a restrição inconstitucional, discussão que será abordada mais adiante.

Poder-se-ia, ainda nesse sentido, questionar o porquê dos dois terços e não apenas a maioria absoluta exigida na declaração de inconstitucionalidade; contudo, desnecessária tal discussão, já que a limitação numérica não se traduz em um raciocínio lógico científico, mas, sim, em um subjetivismo exercido pelos representantes do poder legislativo.

Quanto à modulação dos efeitos da decisão declaração de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, pertinente ressaltar a ausência de sua previsão. Como visto, o artigo 27 é extremamente claro ao dispor que "ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo" poderá o Supremo mitigar os efeitos da decisão proferida, excluindo, nitidamente, qualquer possibilidade de se modular a declaração de constitucionalidade.

Contudo, o Supremo Tribunal Federal, em setembro de 2008, quando do julgamento da COFINS (RE 377457 e RE 381964), não encontrou óbice em cogitar a possibilidade de se modular a decisão que confirmou a constitucionalidade da lei questionada, mesmo diante da ausência de permissão legal.

In casu, questionou-se a constitucionalidade da lei ordinária, que ao modificar lei complementar obrigou os profissionais liberais a contribuírem com a COFINS. Contudo, o Supremo entendeu não existir hierarquia entre leis ordinárias e complementares, não existindo, portanto, razão para eximir os profissionais liberais de tal cobrança. Assim, o pretório Excelso não reconheceu a inconstitucionalidade ventilada; logo, por via reflexa, reconheceu a constitucionalidade da lei questionada.

Diante da situação, os ministros, por sugestão do Eminente Ministro Marco Aurélio, passaram a ponderar sobre a necessidade ou não de se modular os efeitos decisórios sob o pálio da proteção à segurança jurídica, contudo, não se alcançou o quorum exigido pela Lei 9.868/99, acarretando na não-manipulação dos efeitos decisórios.

Não obstante a discussão de se utilizar ou não o regramento da Lei 9.868/99 no controle difuso de constitucionalidade, discussão a seguir ponderada, afigura-se mais relevante a implícita concordância dos ministros da Suprema Corte em se utilizar o instituto também na declaração de constitucionalidade, mesmo sem qualquer previsão legal, pelo contrário, com a existência de proibição tácita do legislador, que preferiu grafar o termo "declarar a inconstitucionalidade" ao se omitir o que abarcaria ambos os casos.

Razão assiste ao legislador que, tacitamente, proibiu a modulação da declaração de constitucional; afinal, como visto, a referida ação declaratória fora idealizada para dirimir possíveis dúvidas quanto à constitucionalidade ou não da lei publicada, valorizando o instituto da segurança jurídica. Portanto, não há proteção à segurança jurídica – cerne da ação em tela –, se, ao seu termo, o legitimado terá uma decisão que declare ser a lei constitucional, porém, só a partir de certa data futura. Estaria o Supremo Tribunal Federal afrontando o princípio constitucional da divisão dos poderes, bem como acirrando a insegurança jurídica, ao invés de privilegiá-la.

Transpostas as duas exigências formais contidas no art. 27 da Lei 9.868/99– quorum qualificado e espécie da declaração – imperativo passar-se ao requisito material, qual seja, a presença de excepcional interesse social e possível afronta à segurança jurídica, os quais serão abordados em tópicos apartados.

3.2.1 O excepcional interesse social

O verbete "excepcional interesse social" trazido no bojo do art. 27 da Lei 9.868/99 não encontra qualquer correspondência nos regramentos do controle de constitucionalidade, sendo sua inserção uma completa inovação por parte do legislador.

Todavia, a Constituição federal utiliza-se da expressão em seu art. 184, quando aborda a questão da desapropriação para fins de reforma agrária. De modo que dessa utilização estruturou-se um certo respaldo doutrinário e jurisprudencial sobre a expressão, contudo, limitando-se à seara dos litígios expropriatórios.

Para os estudiosos da área, imprescindível assimilar que no interesse social não está contido o interesse do povo, tampouco o do Estado e, sim, o interesse de uma determina classe social, em regra, menos favorecida, que reclama a desapropriação da propriedade individual em favor da coletividade.

Busca-se fixar, conforme Hely Lopes Meirelles (2000, p. 555), o entendimento de que o interesse social não se relaciona com o interesse da Administração ou do Estado e que os bens desapropriados não se destinam à Administração, mas, sim, aos administrados, à coletividade ou a certos indivíduos definidos por lei.

Não obstante tais ponderações realizadas sob a esfera do direito civil e administrativo, no âmbito do controle constitucional quase não se abordou a nova locução. Entretanto, de plano já se percebe uma certa semelhança com o excerto normativo contido no art. 282 da Constituição portuguesa, anteriormente transcrito na integra do qual, agora, colaciona-se apenas o item 4. Vejamos:

Art 282 (...)

4. Quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos n.ºs 1 e 2.

Observa-se que o Direito português optou pela expressão "interesse público de excepcional relevo"; já o pátrio optou pelo interesse social em detrimento do público, o que de pronto revela uma tentativa do legislador em tutelar a sociedade, exigindo ao Supremo Tribunal que prestigie o interesse social, considerado como o somatório dos interesses individuais em detrimento do interesse do próprio Estado.

Contudo, os juristas lusitanos e brasileiros não são uníssonos quanto à adequação da terminologia utilizada, tampouco quanto à viabilidade de sua utilização. Para os portugueses, mais precisamente para Rui Medeiros (1999, p. 707) a locução "interesse público de excepcional relevo" é resultado da incapacidade do legislador em encontrar outra mais adequada diante da constatação de que a segurança jurídica e a equidade não seriam suficientes a abarcar todas as possibilidades que exigiriam uma mitigação dos efeitos das decisões. Pondera, ainda, que a expressão deve ser analisada de forma restritiva, buscando evitar a prevalência de valores políticos ou considerações de ordem política.

Da mesma linha de raciocínio compartilha Miranda, para quem o item 4 da Constituição portuguesa prevê dois tipos de exigências para a modulação dos efeitos, sendo uma estritamente jurídica – na qual se inclui a segurança jurídica (objetiva) e equidade (subjetiva) – e uma estritamente não-jurídica – o interesse público de excepcional relevo –, elemento que impõe uma completa fundamentação quando de sua utilização.

No entanto, há de se observar que a exigência não-jurídica para a flexibilização dos efeitos encontra-se prevista na Magna Carta portuguesa, sendo, portanto, norma de status constitucional, o que não ocorre com a expressão do Direito brasileiro, que possui status de norma meramente legal, acarretando-lhe severas ponderações, diferentemente do que ocorre com a proteção à segurança jurídica que possui status de princípio constitucional.

A ausência de respaldo constitucional para o "interesse social" previsto no art. 27 da Lei 9.868/99 é sem dúvida um dos elementos mais questionados pelos estudiosos brasileiros, ao passo que seria inadmissível conceber o afastamento de uma norma constitucional para se modular os efeitos decisórios sob o pálio da existência de um excepcional interesse social, sob pena de ruptura com o princípio da supremacia constitucional.

Ademais, Ana Paula Ávila (2009, p. 166) ressalta outro problema ainda mais grave, qual seja, uma possível incongruência entre as exigências previstas no art. 27, afinal, para a jurista essa total indeterminação do termo, ora em estudo, frustra a concretização da própria exigência de proteção à segurança jurídica, pois, como conceito aberto que o é, exige do intérprete um processo para seu preenchimento, cujo resultado, não raramente, é imprevisível, contrastando com os mecanismos que assegurem a certeza da ordem jurídica inerentes ao princípio da segurança jurídica.

Nesse sentido, o próprio Min. Gilmar Mendes (HC 82.959/SP) ressalta que a opção pela modulação decorre de um rígido juízo de ponderação com o qual se faça prevalecer o princípio da proteção à segurança jurídica ou outro princípio constitucional relevante que ''faça as vezes'' do excepcional interesse social.

Desta feita, além das ponderações sobre a constitucionalidade do termo empregado no art. 27, mister reforçar a ideia de que "interesse social" não se confunde com interesse público, tampouco com interesse da Administração ou do Estado, devendo ser interpretado como um somatório dos interesses individuais, logo, transcendendo a esfera do indivíduo e alcançando à coletividade.

3.2.2 A proteção à segurança jurídica

O ideal de segurança jurídica para alguns estudiosos , ao lado da própria noção de justiça, o único elemento universalmente válido no Direito. Não obstante toda sua universalidade, imperioso salientar que tal expressão não possui um significado preciso, ao contrário, possui inerente fluidez e abertura que permitem caracterizá-la como um conceito jurídico indeterminado.

Elucidando o conceito de segurança jurídica, Regina Nery Ferrari (2004, p. 304) assim pontua:

[...] mesmo traduzindo a certeza do direito aplicável, não apresenta um só significado, ou seja, quando se pensa que a segurança jurídica significa o direito justo, determinar o seu conteúdo não é tarefa fácil, na medida em que em determinadas situações ninguém poderá se furtar de reconhecer que existe a presença do respeito à segurança jurídica e, em outros, a negação de sua existência é patente. Porém, em que pese estas duas zonas de certeza, existe entre elas uma zona de incerteza que medeia estas duas posições e que só será dissipada frente à análise de um caso concreto.

A despeito de tamanha indeterminação, tanto a doutrina quanto a jurisprudência são uníssonas ao afirmarem ser a segurança jurídica um princípio constitucional implícito e um dos alicerces da própria noção de Estado de Direito, que, por outro lado, constitui fundamento do sistema constitucional brasileiro (art. 1°, caput, CF) [23], de maneira que, para alguns juristas, a sua previsão expressa seria totalmente desnecessária.

Infere-se do inciso XXXVI do art. 5° da Constituição de 1988, que a segurança jurídica esta umbilicalmente ligada às noções de ato jurídico perfeito, coisa julgada e direito adquirido. Da mesma forma, estabelece o art. 6° da Lei de Introdução ao Código Civil, o qual, em consonância com a Magna Carta, também impõe o respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada, devendo o primeiro ser entendido como o ato "consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou" (Art. 6°, § 1° da LICC), o segundo como o direito "que já se incorporou definitivamente ao patrimônio e à personalidade de seu titular, de modo que nem a lei nem um fato posterior pode alterar tal situação jurídica" (DINIZ, 1998, p. 139) e o terceiro como "a decisão judicial de que já não caiba recurso" (Art. 6°, § 3° da LICC).

Desta feita, pode-se concluir que o princípio da segurança jurídica, por estar intimamente ligado a tais institutos, busca propiciar às pessoas uma certa previsibilidade, através da qual se permita alcançar uma noção antecipada e direta dos reflexos de seus atos, ou seja, é na prática vivenciada pelo cidadão quando a ele se estabelecem condições para conhecer, ou poder conhecer, quais as normas em vigor, bem como estruturar expectativas que sejam obedecidas em um futuro próximo.

Referida previsibilidade pode ser alcançada de duas formas. A primeira, conhecida como segurança jurídica ex ante, é alcançada com mecanismos que garantam ao cidadão o prévio conhecimento do direito posto, ou seja, possibilitem uma "certeza do direito" por intermédio de mecanismos, como os princípios da legalidade e da publicidade. A segunda, conhecida por segurança jurídica ex post, pauta-se pela busca de uma significativa estabilidade das situações resultantes da concretização das normas, quer pela Administração Pública, quer pelo judiciário, não podendo ser arbitrariamente modificadas, razão pela qual a coisa julgada e a proteção da confiança são tidas como reflexos diretos dessa forma de segurança jurídica.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Nesse sentido, J. J. Gomes Canotilho (1993, p. 373):

Os princípios da protecção da confiança e da segurança jurídica podem formular-se assim: o cidadão deve poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições jurídicas e relações, praticados ou tomadas de acordo com as normas jurídicas vigentes, se ligam os efeitos jurídicos duradouros, previstos ou calculados com base nessas mesmas normas. Estes princípios apontam basicamente para: (1) a proibição de leis retroactivas; (2) a inalterabilidade do caso julgado; (3) a tendencial irrevogabilidade de actos administrativos constitutivos de direitos.

Corroborando com Canotilho, contudo, utilizando-se de outras denominações, Couto e Silva (2004, p. 9) também entendem existir dois enfoques para se analisar a segurança jurídica: o objetivo, que guarda correlação com a proteção ex ante apresentada pelo jurista português, e o subjetivo, que busca uma preservação da coisa julgada e do princípio da confiança, como ocorre na proteção ex post.

Todavia, no que concerne ao art. 27 da Lei 9.868/99, por se estar a trabalhar com os efeitos produzidos pela norma tida como inconstitucional, logo, proteção ex post, tem-se a proteção à coisa julgada e à confiança como principais vertentes, sendo esta última, in casu, mais relevante para a presente pesquisa.

O princípio da confiança, originariamente idealizado pelo Direito alemão, almeja proteger os direitos e as expectativas dos cidadãos diante da atuação estatal, essencialmente quando ocorrem modificações dessas situações, afinal, leva-se em consideração a confiança dos beneficiários na estabilidade dos atos estatais, já que estes gozam de presunção de legitimidade e de constitucionalidade.

Destarte, os atos jurídicos estatais podem gerar expectativas nos cidadãos, muito em razão de sua essência genérica e abstrata, além, é claro, de deterem presunção de validade.

Assim, ao se cogitar a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, é de suma importância ponderar a respeito do princípio da confiança, pois, inúmeras vezes, a norma, mesmo inconstitucional, acaba por respaldar, em virtude de sua presunção de constitucionalidade, situações jurídicas que devem ser respeitadas, sob ameaça de se ferir a segurança jurídica, direito fundamental esculpido no inciso XXXVI do art. 5° da CF [24].

Pertinente, contudo, se questionar acerca da utilização, por parte do Estado, de fundamentação consubstanciada na ofensa à segurança jurídica para manter situações mais benéficas para si, não obstante terem sido consolidadas sob o pálio de norma inconstitucional de sua autoria.

Entretanto, deixa-se para o tópico adiante a ponderação sobre a solução de tal questionamento.

3.2.2.1 A segurança jurídica e a modulação temporal em favor do Estado

O princípio da confiança, fundamento da segurança jurídica, é comumente vinculado à noção de boa-fé objetiva, por sua vez entendida como a submissão de determinada conduta a um standard socialmente estabelecido.

Tamanha proximidade se explica pela imposição de certa coerência dos atos praticados com condutas precedentes, coerência que ambos os institutos primam. Nesse escopo, pode-se destacar o princípio non potest venire contra factum proprium, que, a despeito de estar mais intimamente ligado à boa-fé objetiva, também se correlaciona com a proteção à confiança e à segurança jurídica.

Infere-se do brocado latino que não se pode valer-se de determinado fato, gerado por si próprio, para furtar-se de determinada obrigação, limitando as atitudes contraditórias durante o trato jurídico e caracterizando como abuso de direito qualquer mudança injustificada de comportamento.

Nesse sentido, vejamos as lições do Min. Aguiar Júnior (1991, p. 240):

"A teoria dos atos próprios, ou a proibição de venire contra factum proprium protege uma parte contra aquela que pretenda exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente. Depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, há quebra dos princípios de lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e prejuízo à contraparte. Aquele que vende um estabelecimento comercial e auxilia, por alguns dias, o novo comerciante, inclusive preenchendo pedidos e novas encomendas, fornecendo o seu próprio número de inscrição fiscal, não pode depois cancelar tais pedidos, sob alegação de uso indevido de sua inscrição. O credor que concordou, durante a execução do contrato de prestações periódicas, com o pagamento em lugar ou tempo diverso do convencionado, não pode surpreender o devedor com a exigência literal do contrato. Para o reconhecimento da proibição é preciso que haja univocidade de comportamento do credor e real consciência do devedor quanto à conduta esperada."

Outro aspecto relevante da boa-fé objetiva é a cláusula do tu quoque, que para Anderson Schreiber (2005, p. 177) trata-se de mera subespécie de venire contra factum propium.

Inspirada na célebre frase "tu quoque, Brute, fili mi!" [25], atribuída ao Imperador Romano Júlio César, em seus últimos momentos de vida após ser apunhalado por conjurados em pleno Senado Romano, a cláusula, típica das relações contratuais, consiste, em síntese, na proibição de se alegar a própria torpeza em seu favor.

Portanto, com generalidade, o tu quoque consiste no impedimento a determinado sujeito de auferir vantagens de situações jurídicas criadas e consolidadas por meio de um desrespeito a uma norma legal, não permitindo que uma pessoa fira uma legislação e depois venha exigir de outra o seu acatamento. Exemplo clássico dessa vedação é o impedimento à parte de se recorrer, a seu favor, de ordenamento jurídico por ele mesmo desrespeitado anteriormente.

Cristalino o condão repressor da cláusula do tu quoque, coibindo a infidelidade jurídica, neste estudo entendida como aquela entre o Estado e a Constituição que o ampara e institui.

Estrutura-se, assim, a solução para o questionamento suscitado no item anterior, com o qual não se pode pactuar, pois, caso contrário, estar-se-ia a ferir diretamente o princípio da boa-fé, que compõe o princípio da proteção à confiança e à segurança jurídica, que, por outro lado, integram a noção de Estado Democrático de Direito, um dos pilares constitucionais pátrios previsto no art. 1° de seu texto.

Nesse escopo, a lição de Ana Paula Ávila (2009, p. 151):

Assim, seria incongruente com os ditames da boa-fé (objetiva, salienta-se), a mais não poder, a solução que permitisse ao Estado usar (no caso, abusar) do poder de legislar em desrespeito à Constituição – ou seja, inconstitucionalissimamente –, e, como prêmio, ainda dispor da possibilidade de ver mantido o proveito que tenha logrado em virtude da lei inconstitucional, muito especialmente se esse proveito se dá em detrimento dos direitos individuais. Esse importante aspecto do princípio da boa-fé reside, muito mais que numa proposição juridicamente fundada na segurança jurídica, na própria virtude e na ética das comunidades juridicamente organizadas, e há que ser considerado, portanto, na interpretação doar. 27 da Lei n° 9.868/99.

Em suma, são três as razões que permitem concluir pela impossibilidade da utilização do instituto da modulação temporal fundada na proteção à segurança jurídica em favor da Administração, pois, primeiramente, se o referido benefício tenha se concretizado em detrimento de direitos individuais, em caso de conflito os últimos necessariamente deverão prosperar. Segundo, porque a segurança jurídica é um direito fundamental oponível ao Estado, tendo o Supremo (RE n° 215.756/SP) já decidido que os direitos fundamentais aproveitam aos cidadãos e não ao Estado. Terceiro, porque a Constituição brasileira não permite que determinado sujeito, autor de um ato inválido, venha lograr proveito com o mesmo.

3.3 A REPERCUSSÃO GERAL E AS EXIGÊNCIAS DO ART. 27 DA LEI 9.868/99

O instituto da repercussão geral, como visto, fora introduzido em nosso ordenamento jurídico pela EC n° 45 e posteriormente regulamentado pela Lei 11.418/06, que incluiu em nosso Código de Processo Civil os arts. 543-A e 543-B, cujo teor transcreve-se:

Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo.

§ 1° Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa.

§ 2° O recorrente deverá demonstrar, em preliminar do recurso, para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existência da repercussão geral.

§ 3° Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal.

§ 4° Se a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no mínimo, 4 (quatro) votos, ficará dispensada a remessa do recurso ao Plenário.

§ 5° Negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

§ 6° O Relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

§ 7° A Súmula da decisão sobre a repercussão geral constará de ata, que será publicada no Diário Oficial e valerá como acórdão.

Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo.

§ 1° Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da Corte.

§ 2° Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos.

§ 3° Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se.

§ 4° Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada.

§ 5° O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal disporá sobre as atribuições dos Ministros, das Turmas e de outros órgãos, na análise da repercussão geral.

Infere-se da inteligência dos parágrafos segundo e quarto do art. 543-A que para apresentar repercussão geral deve o objeto da ação judicial proposta deter certa relevância social, política, ou jurídica, ou econômica, bem como extrapolar os domínios subjetivos da causa, ou seja, os interesses individuais dos litigantes envolvidos. Daí porque se falar no binômio ''relevância e transcendência'', já consagrado pelas melhores doutrinas sobre o assunto.

Todavia, o legislador brasileiro, assim como o fez na modulação temporal, introduziu em nosso ordenamento jurídico um instituto cuja conceituação é indeterminada, aberta.

Tal qual ocorre com os conceitos de "excepcional interesse social" e "segurança jurídica", exigidos na modulação temporal, os elementos tidos como essenciais para o reconhecimento da repercussão geral, previstos no art. 543-A, § 1°, também se pautam pela indeterminação, cabendo ao Supremo, por meio de sua jurisprudência, estruturar paulatinamente as limitações de tamanha abertura concedida pelo legislador.

Nesse escopo, o Pretório Excelso, ao longo desses três anos de efetiva aplicação do instituto, vem reconhecendo a presença de repercussão geral em matérias cujos objetos envolvem servidores públicos, sistema remuneratório, sistema tributário, sistema eleitoral e direitos fundamentais.

Ademais, o STF está consolidado a noção de que a própria transcendência da matéria posta em juízo por si só se qualifica a concretizar o interesse social descrito no art. 543-A do CPC. Afinal, o simples fato de existirem inúmeros litigantes diretamente ligados com a ação em julgamento, já comprova certa importância social da questão.

É o que explana o eminente Ministro Ayres Britto, quando da apreciação de repercussão geral no RE 567.454, in verbis:

4. Na hipótese do RE em exame, entendo que a causa é relevante do ponto de vista social, por dizer respeito a relação jurídica de que fazem parte, num dos pólos, milhões e milhões de usuários-consumidores que se distribuem, geograficamente, por todo o território nacional. Sendo certo que os serviços públicos de telefonia atendem a necessidades básicas de comunicação pessoal, profissional e mercantil, revelando-se, além do mais, como essencial fator a segurança público-privada e integração nacional.

5. Percebe-se, de outra parte, que se eventualmente conhecido o recurso extraordinário, a decisão sobre o seu mérito importará a definição da Justiça competente para julgar um sem-número de outros processos semelhantes. Mas não só. A tese jurídica a ser fixada por este Supremo Tribunal Federal, se apreciado o mérito do RE, repito, determinará a própria validade de decisões em grande número de processos em que discutida a legalidade da "tarifa básica de assinatura", tendo em conta o caráter absoluto da competência processual.

6. De todo o exposto, manifesto-me pela presença do requisito da repercussão geral, pelo que submeto a matéria ao conhecimento dos demais Ministros desta Suprema Instância de Justiça (art. 323 do RI).

Dessa feita, pode-se perfeitamente concluir que todas as questões que envolvam assuntos econômicos e políticos detêm, de certo modo, interesse social, na medida em que tais situações sempre envolvem um sem-número de pessoas.

Logo, toda repercussão geral reconhecida sob o manto do interesse social, político ou econômico automaticamente irá possuir os requisitos exigidos para preencher o conceito de "excepcional interesse social" previsto na modulação temporal.

Todavia, resta ainda outra exigência, o interesse jurídico, que nada obstante também acarretar interesse social, ao passo que envolve sempre um grande numero de interessados, possui, ainda, uma estreita correlação com a "segurança jurídica" prevista no art. 27 da Lei 9868/99.

O interesse jurídico previsto pelo art. 543-A do CPC, de acordo com as atuais apreciações do Supremo, baseia-se fundamentalmente na noção de proteção à segurança jurídica e na ideia de se estabelecer critérios que pautaram as demais decisões sobre o assunto nos mais diversos tribunais (compatibilização vertical das decisões judiciais).

Portanto, cristalina a íntima relação que o "interesse jurídico" da repercussão geral possui com a "ofensa à segurança jurídica" da modulação dos efeitos temporais das decisões judiciais, levando-se à conclusão de que toda repercussão reconhecida sob o argumento da existência de interesse social automaticamente estará a reconhecer presença de uma ameaça à segurança jurídica.

Por tudo, conclui-se que a manifestação do STF no sentido de reconhecer a presença de repercussão geral no caso concreto posto a julgamento, implicitamente e naturalmente conduz ao reconhecimento de a decisão a ser proferida possuir todos os requisitos exigidos para se qualificar a modulação de seus efeitos, por constituir uma afronta à segurança jurídica ou por dotar de um excepcional interesse social (já que reverbera no âmbito político, econômico, social ou jurídico), tornando inócua uma nova deliberação sobre aspectos já reconhecidos, implicitamente, ainda no juízo de admissibilidade recursal.

3.4 O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

Atualmente, o princípio da proporcionalidade se desponta como um eficiente instrumento de solução de conflitos, sopesando princípios conflitantes em determinada situação fática. Tamanho afloramento se justifica, segundo a atual concepção do Direito, pela extrema complexidade das atuais relações sociais, impossibilitando que se estruture um sistema jurídico fechado, com normas especificas e exatas, acarretando na necessidade de se solucionar certos conflitos por meio de normas que não tratam o assunto diretamente, mas apenas de maneira reflexa.

Nesse diapasão, o princípio da proporcionalidade se posta como uma diretriz a ser observada pelo intérprete, quando se está a ponderar sobre conflitos constitucionais, por duas razões básicas: a primeira por ser aplicável em qualquer situação de conflito e a segunda por traçar de maneira relativamente objetiva uma solução para o choque.

Pertinentes são as palavras do professor Guerra Filho, na obra de André Ramos Tavares (2006, p. 662). Vejamos:

(...) se verifica que os princípios podem contradizer, sem que isso faça qualquer um deles perder a sua validade jurídica e ser derrogado. É exatamente numa situação em que há conflito entre princípios, ou entre eles e regras, que o princípio da proporcionalidade (em sentido estrito ou próprio) mostra sua grande significação, pois pode ser usado como critério para solucionar da melhor forma tal conflito, otimizando a medida em que se acata prioritariamente em e desatende o mínimo possível o outro princípio.

Entretanto, como tudo nas ciências humanas, tal ideal recebe algumas criticas, principalmente no sentido de que sua utilização ocasionaria depreciação da obra legislativa e um consequente desmerecimento do Legislativo em relação ao Judiciário. Ademais, ressalta a subjetividade das decisões pautadas na proporcionalidade, sua indeterminação e a extrema liberdade que concede aos magistrados para decidirem conflitos, tudo a desprestigiar o princípio da proporcionalidade.

Refutando tais preocupações, Paulo Bonavides (2002, p. 388) ressalta que a proporcionalidade exerce função diametralmente oposta às preocupações relatadas, pois em vez de mitigar os atos legislativos, busca-se, através da interpretação e da ponderação, uma solução que preserve todas as normas jurídicas supostamente em conflito, sem derrogar qualquer ato legislativo.

Complementando, há ainda que se ressaltar que a indeterminação inerente da proporcionalidade é característica essencial da própria norma constitucional, que para efetiva aplicação exige do intérprete uma atuação criativa ao se amoldar tal norma ao caso concreto em julgamento.

Não obstante a discussão sobre a pertinência ou não de se utilizar a proporcionalidade como forma de interpretação constitucional, imprescindível abordar sua composição.

A doutrina brasileira é uníssona ao atribuir ao princípio da proporcionalidade três elementos essenciais, quais sejam: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade stricto sensu, destacando que não basta o atendimento de um elemento apenas, mas tão-somente a conjunção de todos.

A adequação ou conformidade consiste em uma exigência fática de que o meio utilizado deva ser viável a atingir o objetivo desejado, tratando-se de análise da correlação entre os meios empregados e o fim pretendido, ressaltando que não se trata da análise da concretização do fim pretendido, mas apenas de sua possibilidade.

A necessidade ou exigibilidade, assim como a adequação, trata de uma exigência fática, todavia, não mais se preocupa aqui com o objetivo final, e sim com o meio utilizado para tanto. Desta feita, a necessidade se traduz na melhor escolha possível dentre os meios adequados à concretização do objetivo pretendido, sendo este o menos oneroso ao cidadão, logo, o mais suave e menos gravoso. Nessa escolha, deve o julgador abstrair-se do meio eleito no caso concreto para buscar exemplos de vias alternativas à escolhida, para, então, compará-los e eleger o menos gravoso.

Por sua vez, a proporcionalidade em sentido estrito, diferentemente dos demais elementos, não se trata de uma exigência fática, mas de efetiva otimização das possibilidades jurídicas, ao se escolher, dentre os meios e os fins, o melhor, que juridicamente falando se traduz pelo conjunto que menos onere o cidadão, mesmo que algumas pessoas saiam prejudicadas, pois, o que se foca, in casu, é a macrovisão.

Vislumbrando uma aplicação específica do princípio da proporcionalidade na modulação dos efeitos das decisões judiciais, Daniel Sarmento (1998, p.38) assim descreve os elementos que compõem o princípio em questão:

Assim, entendemos que o princípio da proporcionalidade autoriza uma restrição à eficácia ex tunc da decisão proferida no controle de inconstitucionalidade, sempre que esta restrição: (a) mostra-se apta a garantir a sobrevivência do interesse contraposto, (b) não houver solução menos gravosa para proteger o referido interesse, (c) o benefício logrado com a restrição à eficácia retroativa da decisão compensar o grau de sacrifício imposto ao interesse que seria integralmente prestigiado, caso a decisão surtisse seus efeitos naturais.

Vê-se, pois, que o princípio da proporcionalidade é de suma importância e utilidade para a modulação das decisões no controle difuso de constitucionalidade, pois, como já esboçado anteriormente, diante da presunção de existência do excepcional interesse social, jurídico, político e econômico, bem como da transcendência da questão posta em juízo, caberá aos Ministros tão-somente ponderar sobre a necessidade ou não de mitigar os efeitos, em regra retroativos, da decisão judicial.

Assim o sendo, estar-se-ia sempre diante de um conflito de princípios constitucionais, estando de um lado o principio constitucional da nulidade de lei inconstitucional e de outro o princípio constitucional, que, conforme Gilmar Mendes (HC 2004, p. 363), ''faça as vezes'' de excepcional interesse social, o qual contempla, logicamente, os interesses sociais, econômicos e políticos.

Destarte, não existe mecanismo mais eficiente para solucionar um conflito entre princípios constitucionais do que a utilização da proporcionalidade, razão pela qual diversos autores ressaltam o caráter desnecessário da norma expressa no art. 27 da Lei 9.868/99, por já estar o Supremo modulando suas decisões antes mesmo da publicação do excerto normativo em questão.

Ana Paula Ávila (2009, p. 55), para quem "o tradicional efeito ex tunc do controle de constitucionalidade prestava-se à modificação mesmo antes do advento da Lei n° 9.868", e Daniel Sarmento (1998, p. 39) entendem que a inexistência de norma expressa sobre o assunto não impediria o magistrado de calibrar os efeitos de suas decisões.

Ademais, imprescindível destacar o posicionamento de Gilmar Mendes (2004, p. 363 e ss.) que vê no princípio da proporcionalidade a solução para os conflitos entre a nulidade da lei inconstitucional e os princípios da segurança jurídica e interesse social. Vejamos:

Tal como observado, o princípio da nulidade continua a ser a regra também no direito brasileiro. O afastamento de sua incidência dependerá de um severo juízo de ponderação que, tendo em vista análise fundada no princípio da proporcionalidade, faça prevalecer a idéia de segurança jurídica ou outro princípio constitucionalmente relevante manifestado sob a forma de interesse social relevante. (...) O princípio da nulidade somente há de ser afastado se se puder demonstrar, com base numa ponderação concreta, que a declaração de inconstitucionalidade ortodoxa envolveria o sacrifício da segurança jurídica ou de outro valor constitucional materializável sob forma de interesse social.

Portanto, não há que se ventilar a ideia de se regulamentar o instituto da modulação no controle difuso de constitucionalidade, tampouco se valer de "aconchambramentos", como vem se valendo o Supremo, com o fito de transladar a norma do art. 27 da Lei 9868/99 para aplicação no âmbito do controle difuso de constitucionalidade, pois, como visto, já existem mecanismos próprios e hábeis a controlar a utilização da modulação pelos julgadores.

3.5 A ILEGALIDADE DO QUORUM QUALIFICADO DO ART. 27 DA LEI 9.868/99

Extrai-se do excerto normativo introduzido pela Lei 9.868/99 que para se modular os efeitos das declarações de inconstitucionalidade é necessário o atendimento do quorum qualificado e restritivo de dois terços dos Ministros do Supremo, o que na prática se traduz pelo montante de oito votos.

Prima facie, não se percebe o tamanho das implicações produzidas pela exigência do referido quorum na utilização do permissivo contido no art. 27 da Lei 9.868/99.

Notório, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, que nosso ordenamento jurídico não prevê uma hierarquia entre as normas constitucionais, estando estas em igual patamar com suas pares, devendo ser observadas dentro de uma unidade sistêmica, sem antinomias reais.

Veja-se trecho do voto do eminente Min. Moreira Alves no célebre julgamento da ADIn 815, in verbis:

Essa tese - a de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias dando azo à declaração de inconstitucionalidade de umas em face de outras – se me afigura incompossível com o sistema de Constituição rígida, como bem observou FRANCISCO CAMPOS (Direito Constitucional, I, p. 392, Livraria Freitas Bastos S.A, Rio de Janeiro/São Paulo, 1956) ao acentuar que "repugna, absolutamente, ao regime de constituição escrita ou rígida a distinção entre leis constitucionais em sentido material e formal; em tal regime, são indistintamente constitucionais todas as cláusulas constantes Constituição, seja qual foi o seu conteúdo ou natureza". E repugna, porque todas as normas constitucionais originárias retiram sua validade do Poder Constituinte originário e não das normas que, também integrantes da mesma Constituição, tornariam direito positivo o direito suprapositivo que o constituinte originário integrou à Constituição ao lado das demais e sem fazer qualquer distinção entre estas e aquelas. (...) Ao contrário, delas resulta a estrita observância do principio da unidade da Constituição.

Prescreve o ilustre jurista, consubstanciado no princípio da unidade constitucional, que a Constituição deve ser interpretada e analisada sob um enfoque sistêmico de um conjunto coeso de normas, não podendo ser tomada uma norma como suficiente em si mesma, impondo-se ao intérprete vislumbrar a Constituição em sua globalidade, harmonizando os pontos de tensões existentes e evitando, dessa forma, o aparecimento de contradições.

É o que argumenta Canotilho (1993, p. 226-227):

O princípio da unidade da constituição ganha relevo autônomo como princípio interpretativo quando com ele se quer significar que a constituição deve ser interpretada de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos) entre as suas normas. (...), o princípio da unidade da unidade obriga o intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e procurar harmonizar os espaços de tensões (cfr. Supra, Cap. 2.°/D-IV) existentes entre as normas constitucionais a concretizar (...). Daí que o interprete deva sempre considerar as normas constitucionais não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios.

André Ramos Tavares (2006, p. 83) destaca que Canotilho ainda apresenta outro princípio interpretativo, o qual se liga essencialmente ao da unidade da Constituição, denominado de princípio da concordância prática ou da harmonização.

Para o jurista português (Canotilho, 1993, p. 228), o referido princípio pauta-se pela imposição de uma organização dos bens jurídicos apta a evitar a supressão total de uns em detrimento de outros. Deriva desse raciocínio a noção de "igual valor dos bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia)".

Na mesma linha, Lenza (2009, p. 95) pontua que a "o fundamento da ideia de concordância decorre da inexistência de hierarquia entre os princípios".

Resta consolidada, portanto, a ideia de que não existe hierarquia entre as normas constitucionais, devendo ser rechaçada qualquer argumentação no sentido da existência de contradições entre as normas originariamente assim tidas.

Não obstante o consolidado posicionamento acima exposto, o legislador brasileiro, ao instituir o quorum qualificado para a modulação dos efeitos das decisões, acabou por desregular tal paridade entre as normas constitucionais, pois, conforme pontua Luís Roberto Barroso (2008, p. 8), implicitamente se criou "uma preferência em abstrato em favor da disposição constitucional violada pela lei ou ato normativo declarado inválido pelo STF, em detrimento de outras disposições igualmente constitucionais (...)" como, por exemplo, o princípio constitucional da segurança jurídica e o princípio que faça o papel do excepcional interesse social.

Tal hierarquização não seria permitida ao legislador realizar por meio de norma constitucional, quiçá por norma ordinária, situação em que se residiria a ilegalidade da imposição do referido quorum.

Essencial a lição de Luís Roberto Barroso (2008, p. 9) nesse sentido:

A modulação se dá dentro do sistema e envolve a ponderação entre dois conjuntos de normas constitucionais: a) as que tenham sido eventualmente violadas pela norma infraconstitucional em questão; e b) as que procuram preservar os efeitos já produzidos pela referida norma infraconstitucional. De um lado, por exemplo, poderão estar a regra do concurso público ou a da iniciativa do Executivo; e, de outro, a boa-fé ou a moralidade administrativa. Como não existe hierarquia entre normas constitucionais, a ponderação tem que ser feita pelo Tribunal sem imposição prévia de quorum, em um sentido ou noutro. Do contrário, se estaria atribuindo maior valor a uma norma constitucional do que a outra.

Pertinente ainda destacar que tal limitação numérica é inovação brasileira, já que os outros sistemas jurisdicionais que comportam a modulação temporal de seus efeitos não preveem qualquer quorum diferenciado para a mitigação dos efeitos temporais. É o caso da Alemanha, Espanha, Estados Unidos, Portugal, Itália e Colômbia (Barroso, 2008, p. 7).

Ademais, ainda contribui para a ilegalidade do quorum transcrito no art. 27 da Lei 9.868/99 a noção de que o legislador brasileiro teria reduzido, por lei ordinária, a competência do Supremo Tribunal Federal, que, como se sabe, é determinada pela Constituição, e, por isso, podendo apenas ser alterada por emenda constitucional.

Referida restrição de competência se concretizaria por causa da argumentação já exposta anteriormente de que a modulação dos efeitos temporais das decisões judiciais seria validada não pela edição da lei que regulamentou a ADIn e a ADC, e sim por próprio fundamento constitucional, conforme assevera Gilmar Mendes (HC 82.959/SP):

Assim, aqui, como no direito português, a não aplicação do princípio da nulidade não se há de basear em consideração de política judiciária, mas em fundamento constitucional próprio.

Infere-se, pois, que a fundamentação para a não-aplicação do princípio da nulidade está na própria ordem constitucional, não podendo, portanto, o legislador alterar tal permissividade de índole constitucional por meio de norma de status infraconstitucional.

Resta, assim, demonstrada a total ilegalidade do quorum estipulado no art. 27 da Lei 9.868/99, seja pela sua arbitrária hierarquização de normas constitucionais, que, como visto, possuem mesma hierarquia, seja por limitar a competência do Supremo Tribunal por intermédio de lei ordinária, situação inconcebível pelo nosso ordenamento jurídico.

3.6 O ART. 27 DA LEI 9.868/99 E SUA APLICAÇÃO NO CONTROLE DIFUSO

O Supremo Tribunal Federal, ao longo desses quase dez anos da introdução da Lei 9.868/99 em nosso ordenamento jurídico, vem se direcionando a reconhecer a sua aplicação não só no controle concentrado de constitucionalidade, como também no controle difuso.

Tal observação se faz em virtude dos recentes julgados realizados pelo Pretório Excelso, nos quais se conclui pela modulação ou não dos efeitos temporais de suas decisões, com base na Lei 9.868/99. É o caso dos RE’s 377457/PR, 381964/MG, dentre outros.

Data vênia, tal posicionamento não pode se perpetuar.

Como visto, a própria Constituição já prevê mecanismos suficientes para controlar as mazelas dos efeitos de uma possível declaração de inconstitucionalidade de um ato normativo.

Tem-se, para tanto, a ferramenta do princípio da proporcionalidade, que, por meio de uma rigorosa ponderação, permite afastar (parcialmente) os efeitos da norma inconstitucional violada em favor de outra norma constitucional que possa vir a ser ofendida pela volta ao status quo ante.

Logo, não seria arrazoado transportar uma norma idealizada para um outro sistema de controle constitucional se a Magna Carta já prevê um mecanismo de ponderação extremamente eficaz e rigoroso para solucionar os embates entre normas constitucionais, como a que ocorre entre a norma constitucional violada e o princípio da segurança jurídica, por exemplo.

Ademais, há de se atentar para a flagrante inconstitucionalidade do quorum qualificado introduzido pela norma que regulamenta da ADIn e da ADC, o qual ao mesmo tempo que limita a competência do Supremo (atribuída pela Constituição), por meio de lei ordinária, também atribui uma preferência em abstrato à norma constitucional violada, já que se presume sua imposição sobre as demais – hierarquia que a Constituição não impõe às normas que a integram.

Tampouco seria pertinente exigir uma análise quanto à existência de ofensa à segurança jurídica ou quanto à presença de excepcional interesse social para se autorizar a modulação, pois, como já explanado, a repercussão geral já se deu a essa função ao, preliminarmente, analisar a presença do binômio ''interesse e transcendência'', que legalmente se traduz pelo aparecimento do interesse jurídico, do qual se deriva a ofensa à segurança jurídica, ao interesse social, econômico e político, que, invariavelmente, levam ao excepcional interesse social descrito no art. 27 da Lei 9868/99.

Isso sem contar que, ao se reconhecer a transcendência da matéria tratada no recurso extraordinário interposto, implicitamente estar-se-ia confirmando a presença do interesse social, ao passo que uma decisão que interfira em múltiplos processos logicamente reverbera por um considerável grupo de pessoas, caracterizando, assim, existência do interesse social.

Destarte, não há razões que legitimem a utilização do art. 27 da Lei 9.868/99 no controle difuso de constitucionalidade, devendo se proceder à modulação dos efeitos das decisões proferidas em sede desse sistema de controle constitucional, por intermédio do princípio da proporcionalidade, pela maioria absoluta dos ministros do Supremo e sem a necessidade de qualquer justificação quanto à existência ou não de ofensa a segurança jurídica ou a existência de excepcional interesse social, por já estarem os mesmos presumidos no caso concreto, em virtude do reconhecimento da repercussão geral.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Victor de Ozeda Alla Bernardino

Bacharelando pela Faculade de Direito da Universidade Federal de Goiás; Conciliador Voluntário na Seção Judiciária do Estado de Goiás

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERNARDINO, Victor Ozeda Alla. A manipulação temporal dos efeitos decisórios no controle difuso de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2337, 24 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13897. Acesso em: 16 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos