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Quando pode não ser recomendável atender à recomendação do Ministério Público

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07/12/2009 às 00:00
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A BASE LEGAL DA RECOMENDAÇÃO MINISTERIAL

A Constituição Federal prevê que é dever do Ministério Público promover medidas necessárias à garantia dos direitos constitucionais. [29] Dentre as medidas que pode o parquet exercitar, na sua atividade de controle e fiscalização, por determinação infraconstitucional, está a "recomendação". Assim estabelece o art. 6º, XX, da Lei Complementar Federal n. 75, de 20 de maio de 1993, que:

Art. 6º — Compete ao Ministério Público da União: (...); XX — expedir recomendações, visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, bem como ao respeito, aos interesses, direitos e bens cuja defesa lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis. (grifei)

A recomendação também se aplica ao Ministério Público dos Estados por força do art. 80 da Lei Federal n. 8.625, de 12 de fevereiro de 1993, Lei Orgânica Nacional do Ministério Publico.

Art. 27 — Cabe ao Ministério Público exercer a defesa dos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, sempre que se cuidar de garantir-lhe o respeito:

I — pelos poderes estaduais e municipais; (...)

Parágrafo único. No exercício das atribuições a que se refere este artigo, cabe ao Ministério Público, entre outras providências; (...)

IV — promover audiências públicas e emitir relatórios, anual ou especiais, e recomendações dirigidas aos órgãos e entidades mencionadas no "caput" deste artigo, requisitando ao destinatário sua divulgação adequada e imediata, assim como resposta por escrito. (grifei)

Entretanto, a recomendação, repetimos, embora seja um documento de grande peso, não vincula o destinatário. Hugo Nigro Mazzilli ensina:

Embora as recomendações, em sentido estrito, não tenham caráter vinculante, isto é, a autoridade destinatária não esteja juridicamente obrigada a seguir as propostas a ela encaminhadas, na verdade têm grande força moral, e até mesmo implicações práticas. Com efeito, embora as recomendações não vinculem a autoridade destinatária, passa esta a ter o dever de: a) dar divulgação às recomendações; b) dar resposta escrita ao membro do Ministério Público, devendo fundamentar sua decisão. [30]

O assunto foi examinado em julgado do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, pela sua Segunda Câmara de Direito Público, em janeiro de 2009, que manteve decisão de primeira instância. O Sindicato das Escolas Particulares de Santa Catarina (SINEPE) insurgiu-se contra recomendação do Ministério Público para que a entidade fizesse um trabalho de conscientização entre os seus filiados, no sentido de buscarem adequação das instalações físicas, visando a garantir acessibilidade aos portadores de necessidades especiais.

O caso fora submetido ao juízo de primeira instância, que extinguiu a ação sem julgamento de mérito, tendo o Juiz Hélio do Valle Pereira anotado em sua decisão:

Não há como combater uma simples recomendação; caso haja discordância quanto ao seu conteúdo, cabe ao autor meramente a desconsiderar.

(...) estimo, realmente, que, independentemente do conteúdo da recomendação, este ato em si (a orientação sugerida pelo Ministério público) não seja judicialmente atacável. [31] (grifei)

Outros Magistrados também se posicionaram. Conforme notícia divulgada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, a Juíza Patrícia Gondim negou mandado de segurança impetrado pela Associação dos Magistrados daquele estado (AMARN), contra a Recomendação Conjunta 009/2007, assinada por 10 Promotores de justiça orientando as operadoras de telefonia ao não cumprimento de ordens judiciais de quebra de sigilo telefônico, por entenderem faltar competência aos Juízos referidos. Vejamos trecho da matéria:

A juíza diz na decisão que é preciso desmistificar o instrumento opinativo chamado "Termo de Recomendação", que segundo ela, vem sendo freqüentemente utilizado pelo Ministério Público. A relatora chama a atenção também para a norma constitucional (art. 129/CF), onde consta que o Ministério Público pode promover, expedir, requisitar, exercer e até "zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos...", mas não é da sua essência determinar ou ordenar. Sendo assim, a "Recomendação" é uma simples opinião sobre determinada situação ou fato. E nada mais.

Na visão da relatora, tais recomendações têm gerado dúvidas e conflitos, inclusive levando Instituições ao descrédito. É preciso que elas não sejam banalizadas e, em conseqüência, mal compreendidas pela sociedade, garantido o equilíbrio entre o interesse coletivo e a credibilidade das instituições. Na decisão é citado julgamento do STF com entendimento semelhante, segundo o qual recomendações, carentes de execução compulsória, não obrigam a autoridade administrativa a quem são dirigidas. Cita também um precedente do TRF, 5ª Região (AMS 82.929/CE), em caso idêntico.

A juíza Patrícia Gondim esclarece que a própria fragilidade da recomendação afasta o bom direito, pois, no seu entender, não se pode conferir uma liminar para suspender efeito de um ato opinativo que não possui eficácia decisória. Assim a concessão da liminar estaria atribuindo à recomendação poder decisório, o que seria muito perigoso, pois todas as recomendações passariam a ser obedecidas até uma decisão judicial em contrário. "A recomendação é uma solicitação, indicação, aconselhamento e ninguém é obrigado a cumpri-la". Esclareceu ainda que uma simples recomendação não se constitua em ato com efeito suficiente para merecer a atenção de um Mandado de Segurança, razão pela qual não se há que falar em ilegalidade. [32] (grifei)

É cristalino o raciocínio da Magistrada. E como ela diz, já se manifestaram sobre o tema instâncias superiores, como TRF e STF, todas reafirmando o caráter opinativo da recomendação. Não ficou de fora do debate também o CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Embora acatando uma reclamação do Ministério Público contra Juiz de Direito que recebera recomendação, firmou o CNJ que a mesma não tinha força de obrigar o Magistrado. [33]

Não acatar. Esta foi a posição da Agência Nacional de Petróleo (ANP), quando de recomendação do Ministério Público para suspensão de leilões para concessão de áreas de exploração de petróleo e gás. A intenção era obrigar que se aguardasse a revisão do marco regulatório. A notícia foi dada no informativo Brasil Energia Online. [34]

A Guarda Municipal de Goiânia foi outra entidade que não acatou a recomendação do Ministério Público. Em agosto de 2009 o parquet recomendou que "integrantes da corporação fiquem no quartel até que sejam providenciados equipamentos de trabalho, como cassetete e algemas, uniformes e curso de formação". Considerando os prejuízos da medida para a segurança pública e certa confusão criada entre os guardas, o Comandante da Guarda descumpriu-a, solicitando, ainda ao Ministério Público, a revogação da recomendação, o que foi obtido. [35]

Por todo o exposto, dito que a recomendação do Ministério Público não é vinculante, sendo apenas opinião – respeitável, é certo – pode equivocar-se ou precipitar-se, como qualquer opinião, temos que no caso do acordo pretendido da Comarca de Teresópolis, essa opinião merece mudança. Como bem disse o poeta Augusto Frederico Schmidt, no famoso discurso escrito para o Presidente Juscelino Kubistchek, há que abdicar de qualquer "compromisso com o erro". Assim parece ter feito, por exemplo, o Ministério Público de Goiânia, ao retirar a Recomendação que fizera à Guarda Municipal daquela cidade, como antes relatado.

E, novamente rogando todas as vênias, acho que há erro a ser reparado, na Resolução 003/2009, elaborada pelo Ministério Público, em Teresópolis. Principalmente quando examinamos o teor da proposta de minuta oferecida pela Vara da Infância e da Juventude daquela cidade.


O TEOR DO ACORDO PROPOSTO

Qual a grande "ameaça" combatida com tanta energia pelo Ministério Público? Não há ameaça. Há busca de consenso, solução e compromisso. O acordo proposto parte de algumas premissas:

1.É obrigação do Poder Público Municipal não só a execução das medidas socioeducativas em meio aberto, com ainda, dotar o Conselho Tutelar das condições e equipamentos necessários para a execução das medidas protetivas previstas no ECA;

2.O Município nunca realizou tais medidas, razão que obrigou o Juízo da Infância e da Juventude a criar diversos programas para aplicação daquelas medidas;

3.A Vara da Infância e da Juventude deseja e requer que o Município assuma seus encargos;

4.Como existem dificuldades práticas e orçamentárias que impedem que isso se realize de imediato, descabendo, por lógica e por princípio constitucional (serviço público essencial não pode ser interrompido ou descontinuado), a Vara da Infância de uma hora para outra, parar de executar as tarefas que vem cumprindo, se faz necessário um período de transição;

5.O período seria firmado por acordo em que houvesse o compromisso do Sr. Prefeito Municipal, do CMDCA, do Conselho Tutelar, das Secretarias envolvidas e da Vara da Infância e da Juventude, em torno da transferência, em prazos claramente demarcados, das tarefas mencionadas, do Juízo para o Conselho Tutelar e para os órgãos do Município;

6.Propôs-se que o Ministério Público compareça ao acordo, inclusive recebendo importante instrumento para sua ação fiscalizadora e para municiar as eventuais medidas que julgasse necessário.

Simples assim, é a proposta. Reconhece-se uma situação. Admite-se que há equívoco. Constata-se que a solução não é imediata. Contrata-se uma transição. Cria-se um instrumento de compromisso.

Por sinal, a proposta prevê, ainda, outras iniciativas que visam à harmonização de esforços de todos os agentes do Sistema de Garantias, dentre as quais:

1.Pretende-se a realização de reuniões de trabalho periódicas e colaborativas, com todos os atores da rede de garantias, sem hierarquias, numa espécie de Fórum Permanente, [36] para aferição de carências operacionais e otimização de providências;

2.Agenda-se a criação de portal na Internet, para unificação de todos os esforços e depósito de todos os arquivos e links necessários ao contato entre os agentes da rede protetiva e para informação à comunidade;

3.Estimula-se a adoção de uma agenda comum de eventos de conscientização e capacitação;

4.Busca-se comprometer a Câmara de Vereadores com o processo, de forma a que os edis elaborem leis municipais que melhorem a defesa dos direitos da criança e do adolescente;

5.Anota-se a urgência de elaboração de um mapeamento de recursos e carências na área infantojuvenil, por bairro e por segmento de direitos, de forma a nortear estudos e providências das organizações e poderes envolvidos.


CONCLUSÃO

Logo, com todo o exposto, pergunta-se: Se o instituto da Recomendação ministerial, como vimos, pretende, dentre outras coisas a melhoria dos serviços públicos e de relevância pública, que melhoria se tem em obstar o diálogo entre partes que – todas, é o reconhecimento da proposta! - prestam serviço precário muito frequentemente por falta de entendimento? Onde está a possível ilegalidade, ensejadora de recomendação – opinião - tão severa do Ministério Público? Desde quando o diálogo democrático é ilegal? Onde está a inconstitucionalidade, a motivar inclusive nos destinatários da Recomendação, o sentimento de terem sido ameaçados de sanções e punições? Com todo respeito a seus integrantes, onde esteve durante todo esse tempo o Ministério Público, que não tomou as providências indispensáveis, pleiteando, inclusive, junto ao próprio Juízo da Infância e da Juventude, as medidas judiciais necessárias?

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Partimos do princípio de que os agentes públicos agem de boa fé. Partimos do pressuposto de que o Ministério Público é protagonista essencial ao processo democrático. Mas, sabendo das limitações e equívocos com que se constrói a opinião humana, por mais técnica e informada que pareça, entendemos que se Juízes erram – e erram muito mais do que seria desejável! – Promotores de Justiça também erram.

E erram todos, muito mais, quando certas disputas passam a se preocupar mais com "a arte da guerra" do que com a construção da paz. Ou seja, muitas vezes, depois da refrega iniciada os combatentes seguem na arena movidos mais pela inércia do combate, pela adrenalina do esforço, pelo crescimento da habilidade no manejo de armamentos, pela competição entre a competência dos arsenais, esquecendo-se do principal objeto da luta, de há muito, perdido. Do nosso lado, não perdemos o foco: a criança e o adolescente.

É necessário construir a paz, em Teresópolis, e no Brasil, afirmo! Porque o caso é local, mas o problema é nacional! Homens e mulheres de bem, por suas instituições, devem pronunciar-se, com coragem e lucidez. O Presidente do CMDCA e diversos de seus integrantes já se manifestaram a favor das conversações visando ao acordo. Assim o fez, também, o Conselho Tutelar, embora reprimido severamente quando de tal intento. O Secretário de Desenvolvimento Social do Município quer o diálogo, até porque o entende como um dos caminhos para regularizar a atuação da sua Secretaria. O Prefeito Municipal, finalmente, em 24/11/09, pronunciou-se de forma taxativa, pela realização do acordo. Entretanto, parece que alguns de seus assessores ainda titubeiam, principalmente em face da Recomendação do Ministério Público.

Portanto, serve este artigo como reflexão teórica sobre o instituto da Recomendação ministerial, sobre o que parece ter sido um grave equívoco de avaliação na expedição da Recomendação nº 003/2009, em Teresópolis, mas, antes e acima de tudo, como apelo à reflexão democrática sobre a necessidade de menos discurso e mais harmonia efetiva e entendimento operacional urgente entre os atores do Sistema de Garantias dos Direitos de Crianças e Adolescentes.

Não tem cabimento médicos, anestesistas e enfermeiros entrarem em debates sobre mecanismos e modos de operação com o paciente fragilizado, com as vísceras expostas, aguardando, sob risco, em plena mesa de cirurgia. Que não cometamos essa maldade. Data maxima venia.

Uma recomendação que, mesmo que desavisadamente encaminha para isso, não pode ser recomendável, certamente. Daí, a necessidade da coragem democrática de exercer o direito de divergir do parquet. E, para o administrador público - também ele, numa sociedade aberta, um intérprete da Constituição - a necessidade de perceber, como em antiga frase de Francis Bacon que, como o jurista (apegado à letra) e o filósofo (buscando utopias) quando debatem o direito em geral divergem, a decisão deve ser necessariamente do político (o que conhece as pessoas e o mundo real).

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Sobre o autor
Denilson Cardoso de Araújo

Serventuário de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Escritor. Palestrante.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Denilson Cardoso. Quando pode não ser recomendável atender à recomendação do Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2350, 7 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13971. Acesso em: 26 abr. 2024.

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