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Redução da idade penal em face da Constituição Federal.

Apontamentos jurídicos acerca das tentativas de redução da idade para imputação criminal do menor de 18 anos

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30/12/2009 às 00:00
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Capítulo II

Comumente os escritos sobre direitos fundamentais, quando tratam da evolução histórica do tema, remontam à época das célebres cartas e estatutos assecuratórios de tais direitos, tais como a Magna Carta (1215-1225), a Petition of Rights (1628) e o Habeas Corpus Act (1679). Porém, como ressalta o Prof. José Afonso da Silva (2005, p.51), tais cartas não são tecnicamente declarações de direito no sentido moderno. Consoante ressalta o renomado autor, as verdadeiras declarações de direito só apareceram no século XVIII com as Revoluções americana e francesa, com a Virgínia Bill of Rights (1776) e a Declaration des Droit de l´Homme et du Citoyen (1789).

No entanto, sem desmerecer o significado de tais acontecimentos, a Professora Márcia Milhomens Corrêa (1998, pp. 37-38), em obra singular, traça um esboço histórico mais aprofundado de tais direitos, que, conforme a autora, remontam à Grécia antiga.

Para ela, na antiguidade clássica, não se aventava a idéia de existência de direitos do homem. A sociedade grega, além de escravocrata, fundava-se em uma moral coletiva e alargada. Apenas o cidadão grego gozava de liberdade, podendo participar dos assuntos públicos e da vida política. Na democracia ateniense - que alcança seu ápice por volta do século V a.C. - não se pode falar em verdadeira participação dos indivíduos no processo político; isso porque aqueles considerados cidadãos correspondiam apenas a 10% da população. Atenas possuía cerca de meio milhão de habitantes, dos quais trezentos mil eram escravos e cinqüenta mil eram estrangeiros. As mulheres e crianças também eram excluídas da vida pública.

Com a evolução do sofismo, verifica-se o que Márcia Milhomens Corrêa chama de "embrião dos direitos humanos"(1998, p. 39), dentro de uma perspectiva filosófica. A autora ensina que os sofistas eram uma espécie de professores viajantes, que iam de cidade em cidade ministrando aulas e seminários, com o escopo de oferecer bons conselhos em assuntos de família, ou seja, o trato competente da casa de alguém, e bons conselhos em assuntos públicos, isto é, contribuir com mais eficiência pela palavra e pela ação para o bom andamento dos assuntos da cidade. Os sofistas foram, para a autora, "representantes do humanismo grego"(1998, p. 39). Citando J, V. Luce, Milhomens (apud CORRÊA, p. 40) assevera que os sofistas, em seus melhores momentos, foram defensores dos direitos humanos, e alguns chegaram a questionar a validade da profundamente arraigada instituição social da escravidão.

Os sofistas Antifon e Alcidamas defendiam que "por natureza são todos iguais, quer sejam bárbaros ou helenos" e que "Deus Criou todos os homens livres e a nenhum fez escravo" (apud CANOTILHO, 1993, p. 501). Desta feita, o pensamento sofista proclama a igualdade entre os homens e lança a semente da idéia de direitos fundamentais.

Os estoicistas, por sua vez, dão um destaque ainda maior ao princípio da igualdade. Passa-se a considerar que os direitos do homem não estão adstritos ao espaço físico da polis e que as idéias de igualdade e dignidade referem-se a todos os homens, independentemente da qualidade de cidadão.

Fugindo da Grécia antiga e voltando os olhos ao mundo Romano, deparamo-nos com o deslocamento do princípio da igualdade para o âmbito da filosofia e da doutrina política, mas não ganha denotações tecnicamente jurídicas (CANOTILHO, 1993, p. 501).

O cristianismo propiciou uma mudança significativa à dimensão dada ao indivíduo. Ao preconizar que o homem é feito "à imagem e semelhança de Deus", esse sistema religioso sedimentou um entendimento antropocentrista que desencadeou diversas conseqüências no estudo da matéria.

A partir do século II, com a expansão do cristianismo e o declínio do Império Romano, os padres da Igreja, na tentativa de justificar a fé e converter pagãos, desenvolvem a corrente filosófica conhecida como patrística. A patrística procurou realizar uma síntese entre a filosofia platônica e a doutrina cristã, fazendo algumas adaptações à primeira. Seu principal expoente foi Santo Agostinho. O direito natural tomista distinguiu lex divina, lex natura e lex positiva e apontou a necessidade de submeter a lei positiva à lei natural, fundada na natureza dos homens.

Durante a Baixa Idade Média, o conceito de dignidade humana ganha nova semântica, sob a égide da escolástica (filosofia cristã que surge no século IX e perdura até o início do século XIV). A fé continua exercendo papel primordial na filosofia e a razão continua sendo firmada na figura divina, ligada mais ao transcendentalismo. O século XI, no entanto, é marcado por inúmeras manifestações consideradas "heréticas", seguidas pela implementação de diversas universidades na Europa. A partir do século XIII, é sentida a influência aristotélica no pensamento em virtude da difusão de traduções da autoria de São Tomas de Aquino diretamente do grego. A filosofia aristotélica tomista vem a ser uma síntese da escolástica (CORRÊA, 1998, p. 42).

A grande contribuição da corrente escolástica para a posterior fundamentação dos direitos humanos foi a combinação da teoria do direito natural com a teoria dos valores objetivos. Os espanhóis Francisco de Vitória, Gabriel Vásquez e Francisco Suarez preconizavam a substituição do conceito obscuro da "vontade divina" pela acepção da natureza ou "razão das coisas" (apud CANOTILHO, 1993, p. 502).

No sistema feudal, mais especificamente no período de transição do estado feudal da alta Idade Média para o estado territorial da Baixa Idade Média- os barões reivindicavam certos direitos, de cunho cooperativista, em face de seu susserano. A célebre Magna Carta Libertarum, de 1215, é freqüentemente aclamada como marco histórico nas modernas declarações de direitos humanos. Consoante já ressaltado acima, nos dizeres do prof. José Afonso da Silva (2005, p. 152), a Magna Carta e outras declarações que lhe foram contemporâneas, em países como Espanha, Portugal, Hungria, Polônia e Suécia, não abarcaram direitos individuais propriamente ditos, porquanto caracterizavam cunho meramente estamental. Sua importância reside no fato de haver ensejado, posteriormente, a transformação dos direitos estamentais em direitos do homem (CANOTILHO, 1993, p. 503).

Os documentos Petition of Rights, de 1628, Habeas Corpus Act, de 1679 e Bill of Rights, de 1688, incorporaram a individualização de direitos outrora estamentais. Esta individualização dos direitos estamentais está aliada à secularização do direito natural - com a teoria de valores objetivos da escolástica espanhola - e representa decisiva contribuição para a formação das garantias modernas dos direitos fundamentais.Todavia, como ressalta Márcia Milhomens Corrêa (1998, p. 44), não há que se falar, ainda, em direitos fundamentais tais como hoje os conhecemos.

A Idade Moderna acena com um certo deslumbramento do homem por sua própria natureza, sua própria razão. Esta razão secularizada situa o indivíduo como agente determinante da ordem sócio-política, como sujeito da história. A filosofia Renacenstista, ou seja, Humanista, é marcada pela revalorização da antiguidade clássica. O homem agora se reconhece capaz de determinar a validade autônoma do pensamento a partir de critérios racionais. Segundo a concepção jusnaturalista em vigor, todos os homens são naturalmente livres e possuem direitos inerentes, inatos, anteriores e superiores ao poder público. O objetivo da sociedade constituída é, portanto, conservar todos os diretos do indivíduo.

O liberalismo, marcado pela valorização do indivíduo em detrimento do Estado, e a concepção jusnaturalista trazem a possibilidade de juridicização dos direitos do homem e projetam-se nas Revoluções americana e francesa, dando surgimento às declarações de direitos "setecentistas" (CORRÊA, 1998, p. 47).

Produzida em nome da "Razão Universal", a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, adotada pela Assembléia Constituinte francesa em 27.08.1789, teve grande influência no desenvolvimento dos direitos fundamentais em todo o mundo. Ressalte-se que, ainda hoje, a Constituição francesa vigente, de 1958, a ela se remete em seu preâmbulo.

Todavia, como ressalta Márcia Milhomens Corrêa (1998, p. 48), os direitos assegurados até então eram de cunho eminentemente individualista. A autonomia privada consistia basicamente, nos direitos à vida, à liberdade e à propriedade, à segurança e à resistência. Por isso a teoria liberal dos direitos fundamentais os considera como direitos de defesa do cidadão perante o Estado.

Como ensina o professor José Afonso da Silva (2005, p. 167), as declarações do século XX, superando a proteção formal das declarações dos séculos XVIII e XIX, voltam-se para as desigualdades materiais (efetivas, substanciais) do ser humano concreto. Como pioneira no reconhecimento dos direitos sociais há que ser lembrada a Constituição Mexicana de 1917. Nas declarações de direitos hodiernas, busca-se assegurar ao homem (visto sem restrições discriminatórias) uma existência material digna, não só reconhecendo, mas, sobretudo, promovendo a concretização dos direitos econômicos, sociais e culturais.

Sobretudo a partir da II Grande Guerra Mundial, intensificou-se o movimento de universalização e internacionalização dos direitos fundamentais, com o desiderato de salvaguardar, além das fronteiras dos países, certos direitos de caráter fundamental. É de conhecimento geral os abusos cometidos pelos regimes totalitários (que integravam os chamados "países do eixo") durante a citada guerra e tais abusos reforçaram a necessidade de garantir a universalização de direitos mínimos de dignidade da pessoa humana. Surgiram, então, documentos como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, a Declaração dos Direitos da Criança, de 1959, a Declaração sobre a Eliminação da Discriminação à Mulher, de 1967, a Declaração dos Direitos do Deficiente Mental, de 1971, entre outros diversos tratados denominados por muitos de "humanistas".

Deveras didática é a lição do professor José Afonso da Silva (2005, p. 163) acerca da Declaração Universal dos Direitos do Homem, importante documento positivo dos direitos do homem. Eis a lição do insigne doutrinador:

A Declaração Universal dos Direitos do Homem contém trinta artigos, precedidos de um Preâmbulo com sete considerandos, em que reconhece solenemente: a dignidade da pessoa humana, como base da liberdade, da jstiça e da paz; o ideal democrático com fulcro no progresso econômico, social e cultural; o direito de resistência à opressão; finalmente, a concepção comum desses direitos.

Hodiernamente, malgrado as profundas celeumas na conceituação, no tratamento e na concretização dos direitos fundamentais (como veremos adiante), verifica-se uma sinalização de algumas tendências comuns, que são ressaltadas por Jorge Miranda (1998, pp. 24-25), dentre as quais destacam-se: a diversificação do catálogo, com a especificação de mais direitos; a acentuação da dimensão objetiva dos direitos, os quais passam a constituir princípios basilares da ordem jurídica; o reconhecimento de um conteúdo positivo até mesmo aos direitos de liberdade; a produção de efeitos também horizontais, isto é, em relação a particulares; e o desenvolvimento de meios e de garantias correlacionados ao controle de constitucionalidade para mantença desses pretensos direitos.

1.1.2- Semântica contemporânea dos chamados "direitos fundamentais".

Problemática e calorosa é a questão que trata da conceituação, delimitação e concretização dos chamados direitos fundamentais, a começar pela discussão terminológica que sempre é travada, mormente quando comparados os termos "direitos fundamentais", "direitos humanos" e direitos individuais".

Para início de discussão, mister ressaltar a diferenciação, se é que existe, entre direitos fundamentais e os chamados direitos humanos. Sobre o tema, o renomado jurista potiguar, Dr. Paulo Afonso Linhares (2002, p. 55), traça lição que, por seu caráter didático, merece ser repetida. Preceitua o respeitado doutrinador:

Ora, de princípio, vale ressaltar que, historicamente, os direitos fundamentais se situam no campo dos chamados direitos humanos, porém traduzidos em manifestações positivas de direito, enquanto aqueles genericamente não passam de consignas universais de cunho ético-político, de sorte a situá-las no plano da suprapositividade, numa dimensão eminentemente axiológica que transcende o mundo físico e na qual estão situados os direitos humanos, o direito natural, a idéia do direito, os princípios supremos da justiça, do direito justo (defendido por Stammler), da consciência, da moralidade, do bem comum, intuitivo, superior, ou como se queira chamar. (destaques no original)

Após traçar essa pretensa diferenciação, continua o ilustre professor (2002, p.56), asseverando:

Doutra parte, em linhas gerais, pode dizer-se que os direitos humanos se revestem de validade universal e intertemporal, enquanto os direitos fundamentais obedecem às limitações de tempo, espaço, e cuja existência depende essencialmente da sua inserção constitucional nos ordenamentos jurídicos dos diversos povos. Embora assentada essa distinção entre os direitos fundamentais e os direitos humanos, o fato é que, via de regra, ambos são tratados como uma só garantia de direitos. Em suma, os direitos fundamentais podem ser considerados como denominação genérica dos direitos humanos universais e dos direitos dos cidadãos nacionais (...)

Percebe-se que o citado jurista dá um caráter meramente didático à distinção entre direitos fundamentais e os direitos do homem, apesar de, inicialmente, tender por uma diferenciação terminológica. Para o autor, ao que parece, os "direitos humanos" seriam uma proposição genérica, axiológica (dever-ser), enquanto os "direitos fundamentais" seriam a positivação de tais preceitos naturais. Posteriormente, o autor tende a aceitar a distinção como de cunho didádito-filosófico.

Ainda acerca de distinções terminológicas, o mesmo autor, assevera a distinção entre direitos fundamentais e os chamados de direitos de personalidade. Para Paulo Afonso Linhares (2002, p. 56), seguindo idéias de Canotilho, enquanto os direitos de personalidade seguem uma ordem de direitos subjetivos que são traduzidos nos direitos de estado (direitos de cidadania, por exemplo), nos direitos sobre a própria pessoa (direito à intimidade, direito à vida, direito à integridade física e moral, etc.) e em muitos dos direitos à liberdade (livre expressão do pensamento), os direitos fundamentais se pautam por uma ordem objetiva, na medida em que são reconhecidos às pessoas coletivas, às instituições e, numa visão de maior apuro, às próprias coletividades de sujeitos indeterminados e não necessariamente ligadas por vínculo jurídico bem definido, ou seja, aquelas são portadoras dos chamados interesses difusos.

É bem verdade que a própria Constituição Federal brasileira não é uníssona no tocante as muitas definições e acepções dos chamados direitos fundamentais, refletindo a celeuma que atravessa a conceituação e contornos de tais direitos. A título de exemplo, encontramos na nossa Carta da República expressões como: a) direitos humanos (art. 4°, inciso II); b) direitos e garantias fundamentais (epígrafe do Título II, e art. 5°, § 1°); c) direitos e liberdades constitucionais (art. 5°, inc. LXXI) e d) direitos e garantias individuais (art. 60, § 4°, inc. IV).

Ingo Sarlet (2005, p. 35), em excelente trabalho sobre o tema, admite preferir o termo direito fundamental em detrimento aos demais. Explicita o autor que a Constituição Federal tendeu a adotar o termo, não obstante as críticas citadas nas linhas anteriores; para Sarlet, foi acertada a suposta escolha Constitucional ao termo "direitos fundamentais". Argumenta o autor que a epígrafe do Título II da Constituição se refere aos "Direitos e Garantias Fundamentais", consignando que o termo abrange todas as demais espécies ou categorias de direitos fundamentais, notadamente os direitos e deveres individuais e coletivos (Capítulo I), os direitos sociais (Capítulo II), a nacionalidade (Capítulo III), os direitos políticos (Capítulo IV) e o regramento dos partidos políticos.

Assevera o autor, ademais, que essas categorias englobam as diferentes funções exercidas pelos direitos fundamentais, de acordo com parâmetros desenvolvidos especialmente na doutrina e jurisprudência alemãs e recepcionadas pelo direito luso-espanhol, tais como os direitos de defesa (liberdade e igualdade), os direitos de cunho prestacional (incluindo os direitos sociais e políticos na sua dimensão positiva), bem como os direitos-garantia e as garantias institucionais, aspectos que ainda serão objeto de consideração.

O professor Ingo Sarlet (2005, pp. 35- 36) também não foge à diferenciação entre "direitos fundamentais" e "direitos humanos". A propósito do tema, profere:

Em que pese sejam ambos os termos ("direitos humanos" e "direitos fundamentais") comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo "direitos fundamentais" se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão "direitos humanos" guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional).

A posição do renomado jurista é amplamente aceita na seara jurídica, a qual nos filiaremos para delimitação da matéria a ser tratada no presente trabalho. Até para facilitar a proposição de critérios identificadores dos direitos fundamentais, utilizaremos, como regra, a expressão "direitos fundamentais" para designar o conjunto de normas aplicáveis aos regramentos objetivos e subjetivos assecuratórios de direitos inerentes ao indivíduo, vistos, eminentemente, sob ótica constitucional.

O jurista potiguar Paulo Afonso Linhares (2002, pp. 91-97), acerca dos direitos fundamentais, traça cinco escolas doutrinárias (denominadas por Canotilho de "teorias"), que serviriam para justificar os direitos fundamentais, quais sejam: a doutrina liberal, a doutrina da ordem de valores, a doutrina social, a doutrina democrática funcional e a doutrina socialista. Traçaremos em poucas linhas, consoante estudos do Professor Paulo Afonso Linhares (2002, pp. 91- 97), o que preconiza cada uma das doutrinas citadas.

a) Doutrina liberal - a mais antiga das doutrinas dos direitos fundamentais, centrada ideologicamente na visão privatístico-individualista que é o cerne mesmo da ideologia liberal, tendo sua visão dos direitos fundamentais, no tocante à finalidade e ao seu objeto, um caráter exacerbadamente individual. São direitos exercitáveis contra o Estado, traduzidos em direitos de autonomia e direitos de defesa face àquele, tendo-se presente tendência de ampliação da liberdade individual, por um lado, e a restrição às ações do Estado de interferência na esfera do indivíduo, por outro lado.

b) Doutrina da ordem de valores – substancialmente, essa doutrina busca a formulação de garantias baseadas tão-somente na objetivação dos direitos fundamentais; peca, porém, largamente, quando tende estabelecer uma ordem e uma hierarquia de valores de caráter subjetivo, desprezando inteiramente qualquer critério que tenha esteio na objetividade, daí tudo redundando na tendência de transformação dos direitos fundamentais em algo estanque e divorciado dos outros princípios e direitos de berço constitucional, em franca contradição com o relevante papel da teoria dos direitos fundamentais como pressuposto para qualquer interpretação da constituição.

c) Doutrina social - é a doutrina dos direitos fundamentais que se contrapõe de modo mais incisivo à doutrina liberal, embora, como esta, considere que a liberdade tem uma dimensão social paralelamente à outra, de cunho individual. É importante lembrar o relevante papel que reserva ao Estado na realização dos direitos fundamentais, mormente no tangente aos direitos sociais, sendo a intervenção estatal considerada não como um limite, mas como finalidade daquele, porquanto a socialidade se revela como elemento essencial da liberdade e não meramente como condição existencial desta.

d) Doutrina democrática funcional- Essa doutrina tem como fundamento a noção de "cidadania ativa" na realização do chamado princípio democrático. Essa doutrina preconiza que a liberdade individual não é posta em si mesma, como um direito em si, mas como meio de obter representatividade democrática no seio social. Isso conferia um caráter de funcionalidade ao direito exercido e torna indispensável a presença do Estado na harmonização do exercício dos direitos fundamentais. O equívoco dessa doutrina está na abertura da possibilidade de suspensão ou perda dos direitos fundamentais quando em contradição com o principio democrático, o que, na prática, inaugurou o conceito de "democracia combatente" (uma espécie de pseudo-democracia).

e) Doutrina socialista - é severamente reducionista em face da teoria tradicional dos direitos humanos, a partir de um corte antropológico que conduz a uma concepção marcada pela funcionalização dos direitos fundamentais e a tendência de sujeitar esses direitos às condições materiais de existência, de cunho social e econômico, em detrimento das garantias jurídicas. Parte da premissa de que os interesses da sociedade se sobrepõem aos do indivíduo, cuja liberdade em oposição ao Estado se constitui mera ficção burguesa, razão por que os direitos fundamentais prescindem de concretas garantias materiais para serem efetivados, o que somente se torna possível com a apropriação social dos meios de produção e gestão centralizada da economia.

1.2- Apontamentos específicos acerca dos direitos fundamentais

Nos tópicos anteriores do presente capítulo (tópicos 1.1.1 e 1.1.2), foram traçados alguns pontos fundamentais para delimitação do tema e contextualização da discussão, por meio de evoluções históricas e conceituais. Nas linhas que se seguem, serão apresentadas considerações acerca da estrutura dos direitos fundamentais, seus limites interpretativos, além de demonstrar, sucintamente, o sistema assecuratório de tais direitos.

1.2.1- Estruturas e limites dos direitos fundamentais.

O eminente constitucionalista Gilmar Ferreira Mendes (2004, p. 01), em excelente trabalho acerca dos direitos fundamentais, traça limites sobremaneira didáticos no que toca à temática. Para o insigne autor, a Constituição Federal de 1988 reconheceu que os direitos fundamentais "são elementos integrantes da identidade e da continuidade da Constituição, considerando, por isso, ilegítima qualquer reforma constitucional tendente a suprimi-los (art. 60, § 4º)".

Consoante o autor, a complexidade do sistema de direitos fundamentais recomenda que se envidem esforços no sentido de precisar os elementos essenciais dessa categoria de direitos, em especial no que concerne à identificação dos âmbitos de proteção e à imposição de restrições ou limitações legais (MENDES, 2004, p. 02).

Os direitos fundamentais são, a um só tempo, direitos subjetivos e elementos fundamentais da ordem objetiva, pois, como vimos, é praticamente uníssona a doutrina a delimitar o âmbito dos direitos fundamentais às normas constitucionalmente preconizadas, implícita ou explicitamente. Enquanto direitos subjetivos, os direitos fundamentais outorgam aos titulares a possibilidade de impor os seus interesses em face dos órgãos obrigados. Na sua dimensão como elemento fundamental da ordem constitucional objetiva, os direitos fundamentais – tanto aqueles que asseguram, primariamente, um direito subjetivo quanto aqueloutros, concebidos como garantias individuais – formam a base do ordenamento jurídico de um Estado Democrático de Direito (MENDES, 2004, p. 02).

Os direitos fundamentais possuem certas características particulares que os identifica e distingue dos demais direitos. A vinculação ao valor liberdade e, sobretudo, a dignidade humana conduzem-nos a sua universalidade. Se é certo que os aspectos culturais devem ser respeitados e preservados é também inegável a existência de um núcleo mínimo de proteção à dignidade da pessoa humana que deve estar presente em qualquer lugar.

Por encontrarem limitações em outros direitos constitucionalmente consagrados, os direitos fundamentais não podem ser considerados absolutos (juris et de júri), tendo em vista a necessidade de convivência das liberdades públicas (por isso veremos, adiante, os limites dos limites ou "limites imanentes", que está diretamente relacionado ao alcance de determinada norma de direito fundamental).

Reconhecendo a dificuldade de serem estabelecidos critérios apriorísticos para analisar o alcance das normas fundamentais, Gilmar Ferreira Mendes (2004, p. 14), primado como de costume, pela doutrina alemã, procura definir critérios iniciadores desse âmbito de aplicação. Para se conhecer o alcance de terminado direito fundamental, consoante o autor, faz-se mister "que se identifique não só o objeto da proteção (o que é efetivamente protegido?: was ist (eventuell) geschützt?), mas também contra que tipo de agressão ou restrição se outorga essa proteção (Wogegen ist (eventuell) geschützt?)".

Uma questão posta rotineiramente é a que trata dos limites de aplicação dos direitos fundamentais, mormente porque, como vimos, os direitos fundamentais não são absolutos. Um direito fundamental não pode, por exemplo, servir para salvaguardar a prática de atividades ilícitas. Como resolver, então, esse impasse? Não obstante ser um tema deveras complexo, a professora Márcia Milhomens Corrêa (1998, p. 61), em poucas linhas, parece contornar a questão. Eis o que diz a autora:

Sem pretender abordar o assunto com maior profundidade, há que se esclarecer que, de acordo com o princípio da proporcionalidade, eventuais limitações aos direitos fundamentais só podem chegar até onde seja apropriado, necessário e proporcional (em sentido estrito) para salvaguardar a realização de um fim justificável de interesse público formulado pela lei limitadora.

Em uma análise superficial sobre as palavras da autora, poderia se chegar à conclusão que decisões políticas que, a pretexto de serem legitimadas pela sociedade, poderiam indiscriminadamente mitigar os direitos fundamentais, o que não é verídico. Desde que legítima, para que seja mantida a unidade da constituição, os limites nucleares dos direitos fundamentais devem ser mantidos intocáveis. Profere a mestra (1998, pp. 61-62):

Resta-nos ainda a indagação sobre o conteúdo e os limites de cada direito fundamental. Para esclarecer esses pontos é imprescindível o exame de noções relacionadas ao núcleo essencial e aos limites imanentes dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais possuem um núcleo essencial, uma espécie de conteúdo mínimo que não pode em hipótese alguma, ser violado, sob pena de fazer perecer o próprio direito. A Lei Fundamental de Bonn é a primeira a admitir que a existência de um núcleo ou conteúdo essencial é inerente a qualquer direito fundamental, ao estabelecer, no parágrafo segundo do art. 19, que: "em nenhum caso um direito fundamental poderá ser afetado em sua essência".

Em tópico específico, a ser tratado posteriormente, especificaremos os pontos acerca dos limites de reforma constitucional, momento em que trataremos das correntes que negam a vigência desse chamado núcleo essencial do direito fundamental. Por enquanto, daremos atenção, especificamente, a estrutura e os limites de tais núcleos. Indaga-se, precipuamente, se a cláusula que garante a proteção nuclear destina-se à proteção do direito fundamental, visto como direito individual-subjetivo, ou à proteção da norma objetiva da Constituição que estabelece o direito fundamental. Canotilho (1993, p. 618)acrescenta outra questão à discussão: estabelecer qual seria o valor da proteção, isto é, se o núcleo essencial seria um valor absoluto ou se dependeria da confrontação com outros direitos.

No que concerne ao objeto de proteção, as muitas teorias que existem poderiam se resumir em dois grandes grupos, quais sejam: o das teorias objetivas e o das teorias subjetivas.

Importante é a lição de Márcia Milhomens Corrêa (1998, pp. 63- 64) sobre o tema. Reza a autora que:

Como se depreende por sua própria denominação, as teorias objetivas consideram que o objeto de proteção do preceito constitucional é a garantia geral e abstrata prevista na norma, em vez a posição jurídica concreta do particular (direito subjetivo individual). As teorias objetivas foram extraídas das primeiras sentenças do Tribunal Constitucional Alemão. (...) Já as teorias subjetivas dão ênfase à proteção do núcleo essencial do direito fundamental sob a ótica do direito subjetivo do indivíduo. Assim como sucedido na elaboração das teorias objetivas, a fundamentação das teorias subjetivas foi extraída de algumas sentenças do Tribunal Constitucional alemão.

Imprescindível na celeuma que concerne ao núcleo essencial dos direitos fundamentais está a questão dos chamados limites imanentes. Os limites imanentes são aqueles deduzidos do próprio âmbito de proteção constitucional, o qual exclui, por si, certos modos de exercício de direito. Simplificando, os limites imanentes partem da premissa de que não há direito absoluto, mormente se o limite for posto por norma de igual legitimidade. Estão, portanto, relacionados ao âmbito de proteção constitucional dos direitos fundamentais, sendo justificados pela existência de "limites originários ou primitivos" impostos a todos os direitos que colocassem em risco bens jurídicos necessários à existência da comunidade.

A questão objeto de debates reside em saber se tais limites podem ser determinados abstratamente, por meio da interpretação "apriorística" ou se apenas diante do caso concreto seria possível identificá-los por meio da ponderação (a posteriori).

José Carlos Vieira de Andrade (apud NOVELINO, 2008, p. 243) adota o entendimento de que é necessário distinguir, abstratamente, os "bens ou esferas de ação abrangidos e protegidos pelo direito" das demais "figuras e zonas adjacentes".

Faz-se necessário, pois, distinguir e delimitar o exato âmbito de proteção de determinado direito, bem como seus contornos, para verificar se ocorre um conflito entre bens ou valores constitucionalmente protegidos ou se o próprio preceito constitucional não protege a forma de exercício do direito. Didática é a lição de Márcia Milhomens Corrêa (1998, p. 68), que expressa:

"Nos casos, por exemplo, em que alguém, invocando a liberdade de expressão artística,resolve fazer uma obra de arte em pleno cruzamento de duas avenidas, ou assassinar outrem no decorrer de um espetáculo teatral, ou, ainda, invocar a liberdade religiosa para legitimar sacrifícios humanos, ou o direito de propriedade para eximir-se do pagamento de impostos, pergunta-se: estaremos diante de hipóteses de colisões entre direitos fundamentais? A resposta é obviamente não. Em todos os exemplos apontados inexiste qualquer colisão de direitos. A questão resolve-se pela simples evocação dos limites imanentes dos direitos cuja violação se alega. Assim, a liberdade de expressão artística não foi afetada pela proibição de assassinar alguém para enfatizar a dramaticidade de um espetáculo teatral, do mesmo modo que a liberdade religiosa não resta comprometida diante da impossibilidade de sacrifício humano, visto que o exercício do pretenso direito fundamental invocado não encontra proteção no respectivo preceito constitucional".

Percebe-se, portanto, que não se trata de conflito (ou antinomia, como preferem alguns), uma vez que a solução do problema não demanda o recurso ao direito invocado pelo simples motivo de que não existe tal direito naquela situação proposta por Márcia Milhomens Corrêa. A alternativa que se entende viável, considerando a impossibilidade lógica da adoção de uma teoria de valores, reside na admissão da existência de limites imanentes implícitos toda vez que, diante de um dado caso concreto, possa se imaginar que a Constituição não esteja acobertando determinadas situações ou fórmulas atípicas de exercício do pretenso direito invocado.

Desta feita, o hermeneuta jurídico, quando diante de uma situação na qual se pretenda dispor sobre determinado conteúdo essencial de outro direito, deverá concluir que a proteção constitucional do direito invocado não se estende a tanto, sob pena de fazer ruir a idéia de unidade de sentido da constituição. Não pode o intérprete sequer valer-se da técnica da ponderação de princípios, até porque esta só é válida para antinomias aparentes, em virtude da completude do ordenamento jurídico. [09] Não se pode, em suma, suprimir núcleo essencial de determinado princípio sobre o pretexto de defender outro núcleo essencial, posto que não é tecnicamente nem legitimamente possível tal colisão.

1.2.2- Princípio da não-tipicidade dos direitos fundamentais ou "cláusula materialmente aberta de direitos fundamentais".

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, § 2º, assevera que: "Os direitos e garantias expressos nessa Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte" (grifo nosso).

Uma singela interpretação gramatical sobre o parágrafo, insculpido no Título II da Carta Republicana já revela que o rol previsto no art. 5º, que trata dos direitos e garantias individuais, está longe de ser taxativo (numerus apertus), até porque o próprio parágrafo segundo do artigo preceitua que os direitos e garantias expressos nessa Constituição (reparemos que não se refere ao título ou artigo, especificamente, no qual está inserida a norma de extensão).

Todavia, nossa análise sobre tão importante matéria não poderia transitar por caminhos tão singelos e por tal motivo será necessária uma investigação mais aprofundada sobre o tema, o que se propõe a seguir.

A regra insculpida no art. 5°, §2°, da Constituição Federal de 1988, para o Dr. Ingo Sarlet (2005, p. 91), não é taxativo, ou seja, apesar de analítico, não se propõe a exaurir a matéria dos direitos fundamentais. Para ele, a CF de 1988 segue a tradição do nosso direito constitucional republicano, desde a Constituição de fevereiro de 1891, com alguma variação, mais no que diz com a expressão literal do texto do que com a sua efetiva ratio e seu telos. Inspirada na IX Emenda da Constituição dos EUA e tendo, por sua vez, posteriormente influenciado outras ordens constitucionais, a citada norma (art. 5°) traduz o entendimento de que, para além do conceito formal de Constituição (e de direitos fundamentais), há um conceito material, no sentido de existirem direitos que, por seu conteúdo, por sua substância, pertencem ao corpo fundamental da Constituição de um Estado, mesmo não constando no catálogo.

Em princípio, com base no entendimento exposto no art. 5°, § 2°, da CF, podemos, desde logo, cogitar de duas espécies de direitos fundamentais: a) direitos formal e materialmente fundamentais (ancorados na Constituição formal); b) direitos apenas materialmente constitucionais (sem amparo positivo na constituição). Encontrar os direitos formalmente constitucionais não parece ser tarefa das mais complicadas, porquanto, em suma, uma mera leitura gramatical de dispositivos constitucionais que tratam da matéria já se mostrará como arma razoável de sustentação teórica de tais direitos. Situação essa que não é repetida quando o tema é a definição de critérios subsuntivos que definam de forma plausível, sustentável, quais os direitos materialmente constitucionais.

Embora seja ponto pacífico na doutrina que os direitos fundamentais não se propõem a clausulas numerus apertus [10], é de se referir que a doutrina ainda não se encontra completamente pacificada no que diz com a posição assumida pelos direitos materialmente fundamentais (de modo especial os que não encontram amparo na Constituição formal) com relação aos direitos do catálogo, ou seja, se podem, ou não - e de que maneira -, ser equiparados no que tange ao seu regime jurídico. Outra questão crucial decorrente da abertura material do catálogo reside na dificuldade em identificar, no texto constitucional (ou mesmo fora dele), quais os direitos que efetivamente reúnem as condições para poder ser considerados materialmente fundamentais.

Passaremos, então, a propor alguns pontos que ajudarão a definir critérios para definição dos direitos materialmente fundamentais, mormente aqueles chamados "direitos de defesa", já que é esse ponto que especialmente interessa ao presente ensaio.

É inquestionável que a abertura material do catálogo do art. 5° abrange os direitos individuais (direitos de liberdade e de igualdade), dirigidos, precipuamente, à proteção do indivíduo (isolada ou coletivamente) contra intervenções do Estado. Não obstante a quase unanimidade doutrinária que milita favoravelmente pela abertura material do catálogo de direitos fundamentais na CF de 1988, constata-se a existência de uma autêntica lacuna, no sentido de uma ausência de propostas com relação à definição do conteúdo de um conceito substancial de direitos fundamentais calcado em nosso direito constitucional positivo.

Antes de adentrarmos o exame específico dos critérios de identificação da fundamentalidade material, mister uma breve análise do leque de opções que nos oferece o art. 5°, §2°, da nossa Carta Magna. Nesse contexto, há que levar em conta a categoria dos assim denominados "direitos implícitos", consoante a formulação consagrada pela nossa doutrina e que deve ser considerada em nossas considerações acerca do significado e alcance do art. 5°, §2°, da nossa Lei Fundamental.

Ao contrário da Constituição Portuguesa [11] (art. 16/1), que, no âmbito da abertura material do catálogo, se limita a mencionar a possibilidade de outros direitos fundamentais constantes das leis e regras de direito internacional, a nossa Carta Magna foi mais além, já que, ao referir os direitos "decorrentes do regime e dos princípios", evidentemente consagrou a existência de direitos fundamentais não-escritos, que podem ser deduzidos, por via de ato interpretativo, com base nos direitos constantes do "catálogo", bem como no regime e nos princípios fundamentais da nossa lei Suprema. Outrossim, é notório que o citado preceito abrange, além de direitos fundamentais escritos fora do catálogo, os direitos não-escritos, ou, se preferirmos a terminologia usual, os chamados direitos "implícitos" ou "decorrentes", com a ressalva de que estes devem ser considerados em sentido amplo, já que são direitos subentendidos nas normas definidoras de direitos e garantias e os decorrentes do regime e dos princípios (SARLET, 2005, p. 98).

Ainda a esse respeito, importa expor aquela que o Dr. Ingo Sarlet, declarou ser a transcrição mais contundente sobre o tema, em favor dessa tese; para Paulino Jacques (apud SARLET, 2005, p.99):

(...) o Legislador-Constituinte, ao referir os termos ''regime'' e ''princípios'', quis ensejar o reconhecimento e a garantia de outros direitos que as necessidades da vida social e as circunstâncias dos tempos pudessem exigir. É uma cláusula, por conseguinte, consagradora do princípio da ''equidade'' e da ''construção jurisprudencial, que informam todo o direito anglo-americano, e que, por via dele, penetram no nosso sistema jurídico. Também entre nós, não é a lei a única fonte de direito, porque o ''regime'', quer dizer, a forma de associação política (democracia social), e os ''princípios'' da Constituição (república federalista presidencialista) geram direitos.

A propósito do tema, arremata o Dr. Ingo Sarlet (2005, p.106- 107) :

O que se conclui do exposto é que o conceito materialmente aberto de direitos fundamentais consagrado pelo art. 5°, §2°, da nossa Constituição é de uma amplitude ímpar, encerrando expressamente, ao mesmo tempo, ao mesmo tempo, a possibilidade de identificação e construção jurisprudencial de direitos materialmente fundamentais não escritos (no sentido de não expressamente positivados), bem como de direitos fundamentais constantes em outras partes do texto constitucional e nos tratados internacionais. Tal constatação é, por outro lado, de suma relevância para viabilizar a delimitação de certos critérios que possam servir de parâmetro na atividade "reveladora" destes direitos. Neste sentido, o citado dispositivo reza que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

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Tarefa deveras importante para delimitação da matéria é a de realizar uma interpretação sistematizada do art.5°, §2°, da CF, especialmente no que toca ao significado e alcance das expressões "regime" e "princípios". Parece razoável o entendimento de que o citado preceito constitucional se refere às disposições contidas no Título I, arts. 1° a 4° (Dos Princípios Fundamentais), no qual também se encontram delineados os contornos básicos do Estado social e democrático de Direito que identifica a nossa República (SARLET, 2005, p. 107).

Desta feita, reputa-se que os direitos fundamentais decorrentes do regime e dos princípios, consoante denominação expressamente outorgada pelo art. 5°, § 2°, da CF, são posições jurídicas material e formalmente fundamentais fora do catálogo (Título II), diretamente deduzidas do regime e dos princípios fundamentais da Constituição, considerados como tais aqueles previstos no Título I (arts. 1° a 4°) de nossa Magna Carta, interpretação que se impõe até em homenagem necessária à especial dignidade dos direitos fundamentais na ordem constitucional pátria.

A Constituição de 1988 foi a primeira na história do constitucionalismo pátrio a prever um título próprio destinado aos princípios fundamentais, situado na parte inaugural do texto, logo após o preâmbulo e antes do direitos fundamentais. Mediante tal observância, o legislador Constituinte deixou transparecer de forma clara e inequívoca a sua intenção de outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional, inclusive dos direitos fundamentais, que também integram aquilo que se pode denominar de núcleo essencial da Constituição material. Inovadora, ademais, foi a inclusão no texto Constitucional do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1°, inc. III, da CF). [12] O princípio da dignidade humana foi, portanto, erigido à categoria de princípio fundamental da República Federativa do Brasil e deve servir de sustentação teórica para qualquer atividade Estatal.

A dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado brasileiro, constitui-se no "valor constitucional supremo" em torno do qual gravitam os direitos fundamentais. A exigência de cumprimento e promoção dos direitos fundamentais encontra-se estreitamente vinculada ao respeito à dignidade da pessoa humana, razão pela qual estes direitos "são os pressupostos elementares de uma vida humana livre e digna, tanto para o indivíduo como para a comunidade livre; a comunidade só é livre se for composta por homens livres e dignos" (NOVELINO, 2008, p. 243).

O reconhecimento de certos direitos fundamentais é uma manifestação necessária da primazia da dignidade da pessoa humana, núcleo axiológico da Constituição.

O ilustríssimo autor J.J. Canotilho (1993, p. 526), buscando um critério válido para determinar a fundamentalidade material de determinadas normas aponta as seguintes características inerentes à categoria dos direitos fundamentais:

a) de modo geral, as normas relativas aos direitos, liberdades e garantias revelam uma pretensão jurídica individual ou um direito subjetivo em favor de determinados sujeitos estabelecendo, em contrapartida, um dever jurídico aos destinatários passivos;

b) os direitos e liberdades e garantias são auto-executáveis, dispensando qualquer intermediação dos poderes públicos;

c) os direitos, liberdades e garantias têm função específica de defesa, auto-impondo-se como direitos negativos diretamente conformadores de um espaço subjetivo de distanciamento e autonomia com o correspondente dever de abstenção ou de proibição de agressão por parte dos destinatários passivos, públicos e privados.

Podemos ver que, para o saudoso autor, os direitos fundamentais são aqueles que conhecemos como direitos negativos, ou seja, aqueles integrantes da primeira geração (ou dimensão) de direitos. Independem de uma contraprestação do Estado e são auto-executáveis.

Vimos, então, que praticamente não é discutido na doutrina se as normas que declaram direitos fundamentais são exaustivas, porquanto tais normas, até por sua característica de fundamentalidade, não podem exaurir a matéria de forma casuística. A maior celeuma reside na delimitação de quais são os direitos que, não obstante fora do catálogo específico, são materialmente fundamentais e também merecem proteção jurídica. Ao longo do ensaio, verificaremos se o direito à liberdade do adolescente é materialmente fundamental e se tal direito merece ser garantido por cláusula de inimputabilidade.

O Supremo Tribunal Federal, em decisão que já se tornou célebre, decidiu a respeito da não-tipicidade dos direitos e garantias individuais, estendendo a fundamentalidade de determinados direitos a normas não catalogadas no Título II da Constituição Federal, que tratam dos "Direitos e Garantias Individuais". Tão importante decisão, em virtude de seu caráter didático, será retomada em tópico específico.

1.2.3- Sistema de Garantias dos Diretos Fundamentais

Não obstante o caráter auto-aplicável dos direitos fundamentais, não raramente, para efeito de proteção jurídica, os referidos direitos necessitam de ser assegurados por normas assecuratórias, garantidoras; verdadeiros instrumentos de efetividade Constitucional. Tais normas garantidoras são as chamadas pelos Constitucionalistas de "garantias individuais". [13]

A afirmação dos direitos fundamentais do homem no Direito Constitucional positivo reveste-se de indiscutível relevância, mas não basta que um direito seja reconhecido e declarado, é necessário garanti-lo, porque virão ocasiões em que será discutido e violado. A distinção entre direitos e garantias fundamentais, no Direito Brasileiro, remonta à Rui Barbosa (apud NOVELINO, 2008, p. 171), ao separar as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos; estas, as garantias, ocorrendo não raro juntar-se, na mesma disposição constitucional, ou legal, a fixação da garantia com a declaração do direito (MORAES, 2002, p. 171). A constituição, de fato, não consigna regra que separe as duas categorias (direitos e garantias), nem sequer adota terminologia precisa a respeito das garantias. Nesse aspecto, importante a lição de José Afonso da Silva (2005, pp. 186-187), que prescreve:

Assim é que a rubrica do Título II enuncia: "Dos direitos e garantias fundamentais", mas deixa à doutrina pesquisar onde estão os direitos e onde se acham as garantias. O Capítulo I deste título traz a rubrica: "Dos direitos e deveres individuais e coletivos", não menciona as garantias, ms boa parte dele constitui-se de garantias. Ela se vale de verbos para declarar direitos que são mais apropriados para enunciar garantias. Ou talvez melhor diríamos, ela reconhece alguns direitos garantindo-os. Por exemplo: "é assegurado o direito de resposta (...)" (art.5º, V). "é assegurada (...) a prestação de assistência religiosa (...)" (art. 5º, VII), "é garantido o direito de propriedade" (art. 5º, XXII), "é garantido o direito de herança" (art. 5º, XXX). Outras vezes, garantias são enunciadas pela inviolabilidade do elemento assecuratório. Assim, "a casa é o asilo inviolável do indivíduo" (art. 5º, XI), "é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telefônicas (...)" (art. 5º, XII); ora nesses casos, a inviolabilidade do lar e do sigilo constitui garantia do direito à intimidade pessoal e familiar e da liberdade de transmissão pessoal de pensamento, mas a Constituição mesma fala em direitos de sigilo de correspondência e de sigilo de comunicação (art. 136, § 1º, I, b e c). Já noutro dispositivo esta que "são invioláveis à intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (...)" (art. 5º, X); aqui o direito e a garantia se integram: inviolabilidade = garantia; intimidade, vida privada, honra, imagem pessoal = direito de privacidade. Temos ainda garantias expressas nesse artigo (art. 5º, §2º), garantias da magistratura (art. 95). O art. 138 menciona garantias constitucionais. Fica difícil distinguir as diferenças ou semelhanças entre o que sejam garantias fundamentais, garantias individuais e garantias constitucionais.

Em que pesem as discussões acerca da distinção entre garantias e direitos, bem como os vários aspectos que derivam daquelas, a este ensaio somente nos interessa as chamadas garantias dos direitos fundamentais, que serão distinguidas em dois grupos, quais sejam:

a) garantias gerais, destinadas a assegurar a existência e a efetividade daqueles direitos fundamentais; trata-se da estrutura de uma sociedade democrática, que conflui para a concepção do Estado Democrático de Direito, consagrada no art. 1º da CF. Na lição de Uadi Lamêgo Bulos (2005, p. 109), "consignam técnicas de limitação das arbitrariedades do Poder Público, contra toda e qualquer forma de discriminação à pessoa humana".

b) garantias constitucionais, que consistem nas instituições, determinações e procedimentos mediante os quais a própria Constituição tutela a observância ou, em caso de inobservância, a reintegração dos direitos fundamentais. São, por seu lado, de dois tipos: (a) garantias constitucionais gerais, que são instituições constitucionais que se inserem no mecanismo de freios e contrapesos dos poderes e, assim, obstam o arbítrio com o que constituem, ao mesmo tempo, técnicas de garantia e respeito aos direitos fundamentais; b) garantias constitucionais especiais, que são prescrições constitucionais estatuindo técnicas e mecanismos que, limitando a atuação dos órgãos estatais ou de particulares, protegem a eficácia, aplicabilidade e a inviolabilidade dos direitos fundamentais de modo específico, especial (SILVA, J. A., 2005, p. 188).

2- Limites à Reforma Constitucional

Trataremos nos tópicos seguintes de matérias imprescindíveis para compreensão sistemática do tema proposto; serão tecidas breves considerações acerca dos limites à reforma da Constituição, das cláusulas pétreas na Carta da Republica de 1988, bem como da posição do egrégio Supremo Tribunal Federal sobre a temática.

2.1- Limites ao poder de Reforma Constitucional.

2.1.1- Rigidez Constitucional como instrumento de estabilidade

A rigidez constitucional é o mais tradicional dos instrumentos jurídicos destinados a assegurar às constituições especial duração. Classicamente são consideradas rígidas as constituições que prevêem para cambiar suas normas, ou para a produção de normas adicionais com força constitucional, a adoção de um procedimento dificultoso em relação ao procedimento preconizado para a formação e/ou alteração de leis ordinárias. É importante salientar que, como reforça o Dr. Gustavo Just da Costa e Silva (2000, p. 62), "evidentemente que, para que a rigidez cumpra sua função, a maior dificuldade não se pode limitar a simples formalidades secundárias ou mesmo a uma pouco expressiva qualificação de quorum". Citando Constatino Mortati, assevera o autor que "a função do agravamento não se cumpre pelo simples fato de tornar mais difícil a formação da lei constitucional; resulta antes do recurso a certas particularidades dificuldades idôneas a conferir-lhe um cunho de maior autoridade ou a formar em torno de si um consenso mais amplo, ou atestar a existência de uma vontade mais consolidada" (2000, p. 62). No Direito alienígena, encontramos muitos exemplos de Constituições rígidas, mas aquela que mais perdurou no tempo (e justamente a mais rígida de todas): a Constituição Americana de 1787 [14]. O papel dessa acentuada rigidez na longevidade da Constituição Americana não pode ser desprezado. A última emenda (a 27ª em 211) foi aprovada em 1992, tendo sido proposta em março de 1971. Evidentemente, como vimos, a aferição do grau de rigidez constitucional não depende apenas da configuração normativa do procedimento reformador.

Em suma, pode-se reputar que, consoante lição de Gustavo Just da Costa e Silva (2000, p. 67), a instituição da rigidez relaciona-se, em primeira linha, com os usualmente chamados limites formais e circunstanciais da reforma constitucional, isto é, com as condições – positivas e negativas – de validade do procedimento reformador, e em segunda linha, pelos chamados limites materiais de reforma.

Enfim, o fator tempo é imprescindível para a concretização do sistema jurídico implementado e sustentado pela Constituição. Nesse sentido, é absolutamente essencial que a Constituição se mantenha em vigor durante um período suficiente para interferir na realidade social, em respeito ao princípio da segurança jurídica.

Não se discute, todavia, a necessidade de reforma constitucional, até porque a sociedade hodierna se movimenta em um ritmo acelerado e deveras mutável. Tão fortes quanto as razões que justificam a busca da estabilidade da constituição são aquelas que exigem a sua aptidão à mudança. A mobilidade da constituição é assim necessária até mesmo ao desempenho de seu mister de conformação do Estado; tarefa que implica a obtenção da unidade política da comunidade, e com isso o aprimoramento da forma e do controle; função portanto, racionalizadora e estabilizadora. Essa questão está atrelada à questão sociológica da constituição e se prende ao âmbito de legitimidade e eficácia constitucional, tão defendida por Ferdinand Lassale (apud NOVELINO, 2008, p. 39).

É claro que a constituição deve atender à realidade política de um Estado e às aspirações da sociedade que nela convive [15], todavia, deve assegurar que sejam salvaguardadas limitações protetivas da própria sociedade. Apesar da aparente contradição, não há que se confundir mutação constitucional, que se faz necessária, desde que não seja de forma substancial, de implementação de nova ordem constitucional, que se faz com a violação de conteúdos essenciais, que se ligam à unidade da Constituição. Como salienta a professora Márcia Milhomens Corrêa (1998, p. 131):

(...) sem dúvida, o sentido a conferir aos limites está intimamente ligado à noção de identidade constitucional. Se admitirmos que toda Constituição possui um núcleo constitutivo de identidade e que este núcleo é formado pelos princípios constitucionais fundamentais, obviamente a alteração desses princípios não implicaria modificação da Constituição, mas sim criação de uma nova Constituição. Seria, por assim dizer, um golpe dissimulado, já que o poder revisional, extrapolando suas atribuições, por meio da supressão de princípios fundamentais e, conseqüentemente, da identidade constitucional, estaria, na verdade, elaborando uma nova Constituição.

2.1.2- Limites ao poder de Reforma - considerações gerais.

O poder de reforma é exercido pelo poder constituinte derivado e, por ser derivado, sujeita-se a determinados limites impostos pela Constituição. A celeuma a respeito da possibilidade jurídica de restrições ao poder de reforma, mormente no que concerne à intangibilidade deste ou daquele preceito constitucional, rende, entre diversos doutrinadores de peso, intensos debates.

Vários autores, dentre os quais se inclui Laferrière – intenso defensor da impossibilidade de imposição de restrições ao poder de reforma-, não encontram fundamento lógico para aceitar as limitações impostas às gerações futuras pelo legislador constituinte, vedando a supressão de certos dispositivos constitucionais. Para o autor francês (apud CORRÊA, p. 97), as disposições que instituem as limitações são como simples moções ou manifestações políticas despidas de qualquer valor jurídico ou obrigatoriedade para os futuros constituintes. Carl Schimitt (apud CORRÊA, pp. 97-98), defensor da concepção política da Constituição, assevera que cláusulas limitativas são legítimas para o próprio poder constituinte que as criou, no entanto, não seria seriam coercitivas aos poderes vindouros, por não serem dotadas de sanção para o caso descumprimento.

É óbvio que qualquer Constituição não se pode prestar a "engessar" a marcha do processo histórico, porquanto sua eficácia está diretamente relacionada à realidade constitucional. No entanto, o processo de concretização da Constituição, ligado diretamente ao princípio da segurança jurídica, requer certa durabilidade, absolutamente incompatível com a total disponibilidade do texto por parte do denominado constituinte derivado. Desta feita, urge que sejam implementados mecanismos que limitem o poder revisional e/ou reformador [16].

Questão preliminar de incidência na discussão é a que concerne à diferenciação entre Poder Constituinte Derivado e Poder Constituinte Reformador. Em enxutos comentários, podemos dizer que, enquanto o poder Constituinte Originário é o responsável pela elaboração de uma Constituição, ao poder Constituinte Reformador incube a tarefa de alterá-la. O poder Constituinte Originário costuma ser caracterizado como incondicionado, autônomo e ilimitado; o poder Constituinte Reformador, por sua vez, revela-se como juridicamente limitado, distinguindo-se pelo seu caráter derivado, condicionado e sujeito às restrições previstas pelo Constituinte original [17]. É justamente a existência de normas limitativas da reforma constitucional que demonstra o fato de que mesmo após a entrada em vigor da Constituição o Poder Constituinte Originário continua a se fazer presente, já que, do contrário, poderia vir a depender do Legislador. Importa ter sempre presente.

O Dr. Ingo Sarlet (2005, pp. 386- 387) ensina que:

(...) importa ter sempre presente a noção de que também no direito constitucional pátrio o Legislador, ao proceder à reforma da Constituição, não dispõe de liberdade de conformação irrestrita, encontrando-se sujeito a um sistema de limitações que objetiva não apenas a manutenção da identidade da Constituição, mas também a preservação da sua posição hierárquica decorrente de sua supremacia no âmbito da ordem jurídica, de modo especial para evitar a elaboração de uma nova Constituição pela via da Reforma Constitucional.

Há quem defenda, tanto na doutrina pátria como na alienígena, que até mesmo o poder Constituinte Originário se limita a determinados critérios materiais. Argumentam que o poder Originário está balizado pelos valores aceitos pela sociedade, assim como pela conjuntura política, social e econômica desta mesma sociedade [18]. Todavia, esses mesmos autores são uníssonos quando o tema é limitação do poder Constituinte derivado, posto que, sendo poder constituído, "o poder derivado esbarra nos limites postos pelo poder constituinte originário.

Desta feita, não obstante os bons argumentos daqueles que defendem a limitação do poder originário às questões sócio-políticas, entendemos ter a razão aqueles que defendem ser o poder constituinte (originário) ilimitado, o que não ocorre, por via óbvia, com o poder constituído (derivado). Referindo-se ao poder constituinte derivado como um poder limitado e contido juridicamente na Constituição, Paulo Bonavides (1997, p. 198) assevera que o mesmo não pode sobrepor-se ao texto cosntitucional:

É óbvio pois que a reforma da Constituição nessa última hipótese só se fará segundo os moldes estabelecidos pelo próprio figurino constitucional; o constituinte que transpuser os limites expressos e tácitos de seu poder de reforma estaria usurpando competência ou praticando ato de subversão e infidelidade aos mandamentos constitucionais, desferindo, em suma,verdadeiro golpe de Estado contra a ordem constitucional.

A própria denominação "poder derivado" já denota a limitação que esse poder se submete. Ao contrário do que pensam muitos, essa limitação, ao invés de afrontar o princípio da soberania popular, confirma-o. A Constituição, expressão máxima do exercício da soberania do povo, deve prevalecer e reger o funcionamento dos poderes instituídos, sob pena de ruptura com a ordem Constitucional (CORRÊA, 1998, p. 103).

As limitações ao poder de reforma podem ser explícitas ou implícitas. As limitações explícitas (ou expressas), por óbvio, estão figuradas no texto constitucional e prestam-se a resguardar a identidade da Constituição e determinados princípios que o legislador constituinte originário julgou primordiais à configuração de determinado ordenamento jurídico. A doutrina hodierna costuma dividir as limitações expressas em limitações temporais, limitações circunstanciais e limitações materiais. As limitações implícitas, como veremos, estão mais condicionadas aos princípios substanciais da Constituição.

A limitação temporal é uma proibição de reforma de determinados dispositivos durante um certo período de tempo após a promulgação da Constituição, com a finalidade de assegurar a sua estabilidade e evitar alterações precipitadas e desnecessárias. A Constituição Imperial brasileira de 1824 vedava qualquer modificação em seu texto nos quatro anos seguintes à data de sua promulgação. A atual Constituição brasileira não prevê esta espécie de limitação para o poder reformador. Em relação ao poder revisor, havia uma limitação temporal de cinco anos (ADCT, art. 3º), conforme ressalta Marcelo Novelino (2008, p. 04).

As limitações circunstanciais, por sua vez, são normas aplicáveis a situações excepcionais, nas quais a livre vontade do poder reformador possa estar ameaçada. Enquanto perdurarem tais situações, é vedada qualquer modificação no texto constitucional, tal como ocorre durante o período de intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio (art. 60, §1º, CF).

As limitações circunstanciais e temporais, embora importantes, não serão estudadas a fundo, porquanto, diante do proposto no presente trabalho, somente as limitações materiais interessam ao debate epigrafado [19].

2.1.3- Limites Materiais ao Poder de Reforma.

A primeira Constituição a fazer referência aos limites materiais de revisão foi a norte-americana, ao dispor, nos artigos V e IV, nº 3, respectivamente, que nenhum Estado poderia ser privado, sem o seu consentimento, do direito de voto no Senado em igualdade com os outros Estados e que os Estados Unidos garantiriam a todos os Estados da União a forma republicana de governo. Mais tarde, em 1814, a Constituição Norueguesa, em seu artigo 21, título V, estabeleceu que as modificações constitucionais não deveriam ser contrárias aos princípios da Constituição, limitando-se às disposições particulares que não importassem alteração do espírito constitucional. Hodiernamente, os limites materiais ao poder de revisão encontram guarida em diversas Constituições do mundo, entre elas, por exemplo, a Constituição da Suíça (arts. 118 a 123), a Lei Fundamental da Holanda (arts. 210 a 215), a Lei fundamental de Bonn (art. 79), a Constituição Francesa (art. 89), a Constituição Italiana (arts. 138 e 139), a Constituição Portuguesa (art. 288) e a Constituição Brasileira (art. 60, §4º), consoante assevera Márcia Milhomens Corrêa (1998, p. 105).

Os limites materiais à reforma constitucional, em apertada síntese, almejam assegurar a permanência de determinados conteúdos da Constituição tidos como essenciais, ao menos de acordo com o entendimento do Constituinte Originário. Já foi asseverado em linhas anteriores que em virtude da ausência de uma fonte jurídico-positiva, a vedação de certas alterações da Constituição tem suas intenções normativas voltadas para o futuro, já que o núcleo da Constituição atual passa, de certa forma (adquirindo permanência), a ser vigente também no futuro. Alexandre Pasqualini (2000, p. 80) sustenta que todo o sistema jurídico "reclama um núcleo de constante fixidez (cláusulas pétreas), capaz de governar os rumos legislativos e hermenêuticos não apenas dos poderes constituídos, mas da própria sociedade como um todo".

A existência de limitações materiais (substanciais) justifica-se, então, em face da necessidade de preservar as decisões sedimentares do Constituinte, evitando que uma reforma ampla e ilimitada possa acarretar na destruição da ordem constitucional, já que no âmago da previsão destes limites se encontra a tensão dialética e dinâmica que caracteriza a relação entre a necessidade de preservação da Constituição e os reclamos no sentido de sua alteração. O reconhecimento de limitações materiais significa que o conteúdo da Constituição não se encontra à disposição plena do legislador constitucional e de uma maioria qualificada, sendo necessário, por um lado, que se impeça uma vinculação inexorável e definitiva das futuras gerações às concepções do Constituinte, ao mesmo tempo em que se garanta às Constituições a realização de seus desideratos (SARLET, 2005, p. 390).

Com efeito, consoante a lição de Hesse (apud SARLET, 2005, p. 391), se é certo que uma ordem constitucional não pode continuar em vigor por meio da vedação de determinadas reformas, caso ela já tiver perdido a sua força normativa, também é verdade que ela não poderá alcançar as sua metas caso estiver à disposição plena dos poderes constituídos. Os limites à reforma constitucional, notadamente os de cunho material, traçam a distinção entre o desenvolvimento constitucional (no sentido de fazê-la vigente, potente) e a ruptura da ordem constitucional por métodos ilegais, inconstitucionais, ilegítimos. Desta feita, sustenta-se que uma reforma constitucional jamais poderá ameaçar a identidade e continuidade da Constituição, de tal maneira que a existência de limites materiais expressos exerce função de âmbito protetivo, obstando não apenas a destruição da ordem constitucional, mas, além disso, vedando também a reforma de seus elementos essenciais (SARLET, 2005, p. 391).

Além dos limites expressamente positivados na Constituição, a melhor doutrina se posiciona pela existência de limites não elencados expressamente no texto, mas que derivam da própria ordem principiológica da Constituição; seriam os limites materiais implícitos [20]. O publicista lusitano Canotilho (1993, pp. 1136- 1137) chama a atenção para o risco de as Constituições, especialmente as que não contém limitações expressas (cláusulas pétreas), se transformarem em Constituições provisórias, verdadeiras Constituições em branco, à mercê da discricionariedade e eventuais abusos do poder reformador.

Dentre os limites implícitos que harmonizam com o direito constitucional pátrio há que ser frisado, precipuamente, a impossibilidade de reforma total ou, pelo menos, que tenha por objeto os princípios fundamentais de nossa ordem constitucional, já que resultaria na sua destruição (BONAVIDES, 1997, p. 178).

Para aqueles que aceitam a existência dos limites implícitos à reforma, que entendemos estar com a razão, seria possível inferir que todos os princípios fundamentais do Título I da nossa Carta Republicana de 1988 (arts. 1º a 4º) integram o elenco dos limites materiais implícitos, ressaltando-se, entretanto, que boa parte deles já foi contemplada no rol das "cláusulas pétreas" do art. 60, §4º, da CF. Não nos pareceria razoável o entendimento de que a Federação e o princípio da separação dos poderes se encontrem protegidos contra o Poder Constituinte Reformador, e o princípio da dignidade da pessoa humana não (SARLET, 2005, p. 393).

Quanto à abrangência do rol dos limites materiais explícitos (art. 60, §4º, da CF), verifica-se um avanço relacionado ao direito constitucional pátrio anterior, já que é relevante o número de princípios e decisões fundamentais protegidos (princípio federativo, democrático, separação de poderes e direitos e garantias fundamentais). No que toca ao tratamento dado às "cláusulas pétreas" pela Constituição de 1988, consideradas por muitos como os limites materiais explícitos constitucionais (SARLET, 2005, pp. 397 e ss), serão explicitadas algumas considerações no tópico seguinte [21]

2.2- Cláusulas Pétreas na Constituição Federal de 1988

2.2.1- Questões preliminares

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada no ano de 1988, em seu art. 60, § 4º, consagra os limites materiais explícitos de revisão constitucional. Reza o preceito que:

"§ 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I- a forma federativa de Estado;

II- o voto direto, secreto, universal e periódico;

III- a separação dos poderes;

IV- os direitos e garantias individuais".

É possível concluir que o constituinte de 1988 identificou os elementos constantes do §4º do art. 60 como integrantes da identidade constitucional, ou seja, caracterizou tais elementos como sendo elementares, fundamentais, imutáveis; tal escolha deveu-se, certamente, a problemas que o país enfrentou em tempos pretéritos. Há que se ter em conta que a Carta de 1988 foi fruto de uma época de transição da ditadura para a democracia e os elementos expostos no citado art. 60, § 4º caracterizam o modelo democrata adotado pelo Estado brasileiro. Evita-se, em última análise, que o país volte a ser governado por regimes autoritaristas, que não respeitam a soberania do povo.

Em virtude do proposto no presente ensaio bibliográfico, dedicaremos atenção específica ao inciso IV do citado parágrafo, que tornam insuscetíveis de mudança os direitos e garantias individuais. Primeiramente, cumpre lançar um olhar sobre o termo direitos e garantias "individuais" exposto no texto da Constituição Federal para extrairmos seu significado e abrangência. Tomando como partida o enunciado literal do inciso IV (direitos e garantias individuais), poder-se-ia afirmar que apenas os direitos e garantias individuais (art. 5º da CF) se encontram incluídos no rol das "cláusulas pétreas" de nossa Constituição. É preciso ter extremo cuidado ao fazer tão equivocada inferência, pois, se caso fôssemos nos agarrar a essa interpretação de cunho estritamente literal, teríamos de reconhecer que não apenas os direitos sociais (art. 6º a 11), mas também os direitos de nacionalidade (arts. 12 e 13), bem como os direitos políticos (arts. 14 a 17) fatalmente estariam excluídos da proteção outorgada pela norma contida no art. 60,§ 4º, inc. IV, de nossa Carta Republicana. A propósito, como argumenta Ingo Sarlet (2005, p. 401) "por uma questão de coerência, ate mesmo os direitos coletivos (de expressão coletiva) constantes no rol do art. 5º não seriam merecedores dessa proteção". Seria impossível, por exemplo, suprimir o mandado de segurança individual, mas o mandado de segurança coletivo (que é até mais democrático), por não ser uma "garantia individual", poderia ser suprimido. Tal conclusão, data venia aos que pensam de maneira contrária, é inaceitável.

Ingo Sarlet (2005, p. 402-403), criticando a corrente defensora da tese de que os direitos e garantias individuais a que se refere o art. 60, § 4, inc. IV, da CF, somente se dirigem aos direitos propriamente individuais, se pronuncia da seguinte maneira:

No direito pátrio, há quem sustente que os direitos sociais não podem, em hipótese alguma, ser considerados como integrando as "cláusulas pétreas" da Constituição, isso pelo fato de não poderem (ao menos na condição de direitos a prestações) ser equiparados aos direitos de liberdade do art. 5º. Para além disso, argumenta-se que, se o Constituinte efetivamente tivesse tido a intenção de gravar os direitos sociais com a cláusula da intangibilidade, ele o teria feito, ou nominando expressamente esta categoria de direitos no art. 60, § 4º, inc. IV, ou referindo-se de forma genérica a todos os direitos e garantias fundamentais, mas não apenas aos direitos e garantias individuais. Tal concepção e todas aquelas que lhe podem ser equiparadas esbarram, contudo, nos seguintes argumentos: a) a Constituição brasileira não traça qualquer diferença entre os direitos de liberdade (defesa) e os direitos sociais, inclusive no que diz com eventual primazia dos primeiros sobre os segundos; b) os partidários de uma exegese conservadora e restritiva em regra partem da premissa de que todos os direitos sociais podem ser conceituados como direitos a prestações materiais estatais, quando, em verdade, já se demonstrou que boa parte dos direitos sociais são equiparáveis, no que diz com sua função precípua e estrutura jurídica, aos direitos de defesa; c) para além disso, relembramos que uma interpretação que limita o alcance das "cláusulas pétreas" aos direitos fundamentais elencados no art. 5º da CF acaba por excluir também os direitos de nacionalidade e os direitos políticos, que igualmente não foram expressamente previstos no art. 60, § 4º, inciso IV, de nossa lei Fundamental.

Patente foi a falta de técnica do legislador, porquanto deveria utilizar a expressão direitos e garantias fundamentais como sucedânea da expressão limitativa "individuais", já que tal escolha apontaria para o mesmo norte axiológico previsto sistematicamente pelos princípios constitucionais. Aliás, o pouco critério na adoção de expressões distintas, ao que parece empregadas como sinônimas, aparece também, somente como um dos muitos exemplos que poderiam ser citados, no art. 34, in. VII, item b, que prevê a intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal para assegurar a observância dos direitos da pessoa humana (CORRÊA, 1998, p. 128).

Essas considerações demonstram que apenas por meio de uma interpretação sistemática se poderá encontrar uma resposta satisfatória no que toca à celeuma da abrangência do art. 60, §4º, inc. IV, da CF. Já no preâmbulo de nossa Constitucional, em pese a sua falta de normatividade, encontramos referência expressa no sentido de que a garantia dos direitos individuais e sociais, da igualdade e da justiça constitui objetivo permanente do nosso Estado.

Verifica-se que todos os direitos fundamentais consagrados em nossa Constituição (mesmo aqueles que não pertencem ao Título II) são, na verdade e em última análise, direitos de titularidade individual, ainda que alguns sejam de expressão coletiva. É o indivíduo que tem assegurado o direito de voto, assim como é o indivíduo que tem direito à saúde (imagine não mencionar a saúde como direito individual/fundamental), assistência social, etc. Até mesmo o direito a um meio ambiente saudável e equilibrado (art.225 da CF), em que pese seu enquadramento como direito de terceira geração (ou dimensão), pode ser encaminhado a uma dimensão individual, pois mesmo um dano ambiental que venha a atingir um grupo dificilmente quantificável e delimitável de pessoas (indivíduos) gera um direito à reparação para cada prejudicado pelo dano macro-social (SARLET, 2005, p. 404).

A função precípua das "cláusulas pétreas" é a de impedir a destruição ou mitigação dos elementos essenciais da Constituição, encontrando-se a serviço da preservação, como já asseverado, da identidade constitucional, formada justamente pelas decisões fundamentais tomadas pelo Constituinte. Isso se manifesta com particular agudeza no caso dos direitos fundamentais, já que sua supressão, ainda que tendencial, fatalmente implicaria agressão (em maior ou menor grau) ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, da CF). Assim, uma interpretação restritiva da abrangência do art. 60, §4º, inciso IV, da CF não nos parece ser a melhor solução, mormente quando os direitos fundamentais indubitavelmente integram o cerne da nossa ordem constitucional (SARLET, 2005, p. 406).

2.2.2- Semânticas axiológica e interpretativa do art. 60, § 4º, inciso IV, da Constituição Federal.

Não é motivo de questionamentos que o preceito incurso no art. 60, § 4°, inciso IV da Constituição Federal é um limite material expresso que veda reforma in pejus, porquanto tal especificação está declarada gramaticalmente no dispositivo. Porém, reside uma dúvida plausível acerca do sentido de tal norma e da interpretação que dela se pode extrair; busca-se, então, a ontologia e a exegese dessa proposição normativa.

Na doutrina Constitucional, como ressalta Márcia Milhomens Corrêa (1998, p. 130), existem duas posições bastante diferenciadas no que toca ao sentido dos limites materiais ou cláusulas pétreas: uns entendem que os limites implicam vedações de ruptura da Constituição (proibições de golpes ou revoluções); outros entendem que os limites constituem regras de proibição de ruptura de determinados princípios constitucionais.

Canotilho e Vital Moreira (1991, p. 294) parecem adotar o último entendimento, ou seja, de que as cláusulas pétreas almejam assegurar a mantença de certos princípios essenciais, os quais são responsáveis pela identidade da Constituição. Os autores ressaltam que "os limites não fazem os preceitos constitucionais intocáveis, mas sim os princípios neles contidos".

Então, consoante os renomados autores, seria inadmissível mudanças substanciais nas normas que ferissem princípios fundamentais. Não se veda a alteração do dispositivo em si (do preceito positivado); o que se veda, de certo, é a alteração significativa que suprima ou diminua o princípio essencial que nele está contido, tal alteração, se intentada, será considerada afrontosa à identidade de uma ordem histórico constitucional concreta.

Não devemos olvidar, ademais, que o sentido a ser conferido à redação do dispositivo vedatório de reforma é muito mais amplo do que se imagina; o Constituinte originário vedou qualquer proposta tendente a abolir (após, cita expressamente as inviolabilidades). Da expressão "proposta tendente a abolir" podem ser abstraídos, pelo menos, dois comandos de abstenção imediata e de clara interpretação: 1°) qualquer proposta (uma mera proposição que seja) que intente ferir substancialmente uma das cláusulas pétreas deverá ser expurgada, rejeitada de pronto pelos constituintes derivados; pela necessidade premente de se assegurar a Ordem Constitucional, vê-se o caráter preventivo dado à referida norma (caracterizado o periculum in mora); 2°) a proposta modificadora não precisa abolir totalmente para se restar comprovado o atentado à ordem Constitucional; para tanto, basta que seja tendente a abolir determinado princípio, ou seja, basta que a mudança seja de tal forma que mitigue ou dificulte a plenitude de um dado princípio fundamental.

Outra questão que paira sobre o tema das cláusulas de petrificação, é acerca da hermenêutica que se deve estender a elas, sobretudo no que toca ao grau de liberdade de que dispõe o intérprete na busca da sua ontologia e abrangência. Por serem cláusulas excepcionais, limitativas do exercício do constituinte derivado, parte-se da premissa, preconizada por Klaus Stern (apud CORRÊA, 1998, p. 130), de que devem ser interpretadas restritivamente. Já que o Constituinte derivado é representante da soberania popular e responsável pela atualização Constitucional, é verdade que não poderia ser limitado completamente de modificar a Lei Fundamental de um Estado; todavia, consoante já demonstrado, para que seja mantido o núcleo essencial da Constituição – como corolário do princípio da segurança jurídica -, é necessário que se imponha limites a esse poder de reformar, já que o poder de reforma não implica poder implícito de destruir e recriar a ordem constitucional pré-estabelecida.

Desse aparente dilema surge um papel fundamental do intérprete Constitucional que, mediante processo dialético de exegese, deve verificar com cautela a exata extensão de determinado princípio para que não se proponha a transitar entre os dois extremos interpretativos, quais sejam: "engessamento" Constitucional ou sua face oposta, que é fragilidade da Constituição.

Parece-nos que o melhor norteador para o estabelecimento de parâmetros para tal ponderação está na própria Constituição Federal da República Federativa do Brasil, que, em seu artigo 1°, estabelece quais são os princípios fundamentais do nosso Estado; notadamente no inciso III desse mesmo artigo verifica-se a valoração máxima do Estado à dignidade da pessoa humana. Daí inferirmos que toda a árvore interpretativa de que deve se valer o constitucionalista deve trilhar pelos parâmetros estabelecidos no art. 1° da Carta Magna, homenageando a melhor e sistemática interpretação.

Márcia Milhomens Corrêa (1998, p. 137), ao abordar essa problemática questão, expõe que:

Deparamo-nos aqui com um sério problema, que aponta para uma incongruência a ser sanada: se, de um lado, é certo que o objetivo das cláusulas pétreas é justamente a preservação da força normativa dos princípios fundamentais, de outro, esta tarefa mostra-se incompatível com uma interpretação restritiva desses mesmos princípios. Para resolução desse aparente conflito, há que se traçar uma diferença entre interpretação das cláusulas pétreas e interpretação dos princípios por elas protegidos; apenas as cláusulas pétreas devem ser interpretadas restritivamente e não os princípios por ela protegidos.

O conteúdo dos princípios que constituem o objeto das cláusulas pétreas não comporta restrições a priore. Márcia Milhomens Corrêa, nesse sentido, explica que seria impossível, por exemplo, estabelecer de antemão e em definitivo quais são os preceitos que estabelecem garantias individuais. Este elenco, conforme a autora, possui caráter histórico [22], resultando de um processo permanente de densificação, mediante a incorporação de novos e sucessivos conteúdos ao núcleo essencial de cada direito(1998, p. 137). Seria possível, por exemplo, positivar de forma extremamente casuísta, quais seriam os preceitos que abarcariam o princípio da dignidade humana? A resposta a esse questionamento há de ser negativa, já que tais princípios somente devem ser mensurados com adequados modelos interpretativos de caráter sistemático.

Há que se ter em mente, de qualquer maneira, que a defesa normativa deve recair sobre o princípio implícito na norma positiva e não na norma em si. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI – 2024/DF, manifestando-se sobre a constitucionalidade de emenda versando sobre a reforma previdenciária, entendeu que a forma federativa de Estado, elevada à condição de princípio intangível por todas as Constituições brasileiras, não pode ser conceituada a partir de um modelo ideal e apriorístico de Federação, mas sim, aquele concretamente adotado pelo Constituinte originário. Para além disso – ainda de acordo com o STF – as limitações materiais ao poder de reforma constitucional, não significam uma intangibilidade literal, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação é assegurada pelas "cláusulas pétreas" (SARLET, 2005, p. 410).

2.3- ADI n°: 939/DF - Supremo Tribunal Federal X Direitos Substancialmente Fundamentais e Limites à Reforma Constituição

A Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 939/DF foi proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio – CNTC – em face da Emenda Constitucional n°: 03, de 17.03.1993, e da Lei Complementar n°: 77/93, que implementaram o Imposto Provisório sobre a Movimentação Financeira – IPMF (que deu a origem à extinta CPMF). Discutiu-se, in casu, se seria possível uma norma constitucional inconstitucional [23].

O texto da emenda constitucional n°: 03/93 preceituava que:

Art. 2°. A União poderá instituir, nos termos de lei complementar, com vigência até 31 de dezembro de 1994, imposto sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira.

§1°. A alíquota do imposto de que trata este artigo não excederá a vinte e cinto centésimos por cento, facultado ao Poder Executivo reduzi-la ou restabelecê-la, total ou parcialmente, nas condições e limites fixados em lei.

§2°. Ao imposto de que trata este artigo não se aplica o art. 150, III, b, e VI, nem o dispositivo do §5° do art. 153 da Constituição Federal.

§3°. O produto da arrecadação do imposto de que trata este artigo não se encontra sujeito a qualquer modalidade de repartição com outra entidade federada.

§4°. Do produto da arrecadação do imposto de que trata este artigo serão destinados vinte por cento para custeio de programas de habitação popular.

O Tribunal não acatou o argumento de que a Emenda seria constitucional por apenas criar uma nova exceção a uma regra que já possui várias [24]. Nesse ponto específico,o raciocínio prevalecente foi de que, se existe uma regra com previsão das respectivas exceções, a ampliação destas põe em risco aquela. Se fosse permitida a ampliação das exceções constitucionalmente previstas, a tendência seria de abolir a própria regra, pois as exceções suplantariam a regra.

No mesmo julgamento, o Supremo Tribunal Federal considerou também inconstitucional a previsão de que o novel Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira não seria sujeito à imunidade tributária recíproca, que impede a União, os Estados, o DF e os Municípios instituam impostos sobre patrimônio, renda ou serviços uns dos outros (CF, art. 150, VI, a). Entendeu, nesse tocante, que a regra que concede imunidade é verdadeiro corolário do princípio federativo e norma que tendesse a abolir tal princípio seria inconstitucional por ferir o previsto no art. 60, § 4º, inciso I, da Constituição Federal, que trata das chamadas "cláusulas pétreas".

Ademais, se considerou inconstitucional a previsão de que o IPMF não obedecesse à imunidade dos templos de qualquer culto (CF, art. 150, VI, b). A imunidade, denominada religiosa, protege a liberdade de culto, que é um direito individual.

Na mesma linha, também foram consideradas protegidas por "cláusulas de eternidade", a imunidade dos livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão (protegendo a livre manifestação do pensamento e barateando o acesso à informação, garantias individuais), bem como a proteção a diversas instituições cujas atividades são consectários de outras garantias constitucionalmente protegidas, tais como a liberdade sindical, liberdade de criação e filiação a partidos políticos (ALEXANDRE, 2007, pp. 93- 94).

Quanto a Lei Complementar nº 77/93, o Tribunal, por maioria, declarou a inconstitucionalidade do art. 28, no ponto específico em que permitiu a cobrança do tributo no ano de 1993 (por ferir a anterioridade), e a inconstitucionalidade, sem redução dos textos, dos artigos 3º, 4º e 8º, por deixarem de excluir, da incidência do IPMF, as pessoas Jurídicas de Direito Público (ferir o pacto federativo) e as demais entidades e empresas referidas nas alíneas a, b, c e d, do inciso VI, do art. 150 da Constituição da República (defesa à liberdade de pensamento, liberdade de culto, entre outras proteções violadas).

Importa notar que a mais alta corte do país, competente para julgar, em via concentrada, a constitucionalidade ou não de lei (em sentido amplo) em face da Constituição Federal, já se manifestou acerca da existência de garantias individuais fora do rol do artigo 5º da Lei Fundamental e declarou que os direitos e garantias individuais previstos no art. 5º da Constituição Federal não exaurem o âmbito de proteção constitucional assegurado a outras garantias previstas na própria Lei Magna ou mesmo decorrente de princípios e regimes por ela adotados (art. 5º, §2º, da CF) . Em outras palavras, o Supremo Tribunal Federal sedimentou o entendimento que defendíamos acerca da não-taxatividade dos direitos e garantias individuais.

Para melhor elucidar a questão, a fim de dirimir eventuais questionamentos, daremos atenção especial ao princípio da anterioridade como garantia individual e passaremos a transcrever trechos de alguns dos votos nos quais esta questão foi especificamente abordada com maior profundidade [25]. Ressalte-se, de antemão, com a devida vênia, que os então Ministros Sepúlveda Pertence e Octavio Gallotti, votos vencidos em parte, não consideraram o princípio da anterioridade como uma garantia acobertada pela proteção conferida às cláusulas pétreas.

O Ministro Sidney Sanches, relator do processo, em voto deveras didático, assim se manifestou:

(...) O constituinte originário, ou melhor a Constituição Federal de 05-10-1988, no Título II, dedicado aos direitos e garantias fundamentais, destinou o capítulo I aos direitos e deveres individuais e coletivos.

Enunciou-os no art. 5º e seus setenta e sete incisos. E no § 2º desse único artigo do Capítulo I, aduziu:

§2º. Os direitos e garantias expressamente expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados..."

Já no Título VI, destinado à tributação e orçamento, e no Capítulo I, dedicado ao Sistema Tributário Nacional, mais precisamente na Seção II, regulou a Constituição "as limitações ao poder de tributar", estabelecendo, desde logo, no art. 150:

"Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

III- Cobrar Tributos:

b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou."

Trata-se, pois, de garantia outorgada ao contribuinte, em face do disposto nesse art. 150, III, b, em conjugação com o § 2º, do art. 5º, da Constituição Federal.

Ora, ao cuidar do processo legislativo e, mas especificamente, da emenda à Constituição, esta, no §4º do art. 60, deixa claro:

"Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

IV- os direitos e garantias individuais".

Entre esses direitos e garantias individuais, estão pela extensão contida no § 2º do art. 5º e pela especificação feita no art. 150, II, b, a garantia ao contribuinte de que a União não criará nem cobrará tributos "no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou".

No caso, o art. 2º da EC nº 3/93, permitindo a instituição do tributo em questão, no mesmo ano de 1993, o que se consumou com o advento da Lei Complementar nº 77, de 13- 7- 1993. parece, assim a um primeiro exame, para efeito de medida cautelar, haver afrontado o disposto nos referidos § 2º, do art. 5º, art. 150, III, b, e § 4º, do art. 60, da Constituição Federal".

11. Agora, já ao ensejo do julgamento do mérito, não estou convencido do contrário, sobretudo depois da leitura dos votos dos eminentes ministros Ilmar Galvão, Marco Aurélio, Carlos Veloso, Celso de Melo, Paulo Bossard e Néri da Silveira, que, mesmo para efeito de medida cautelar de suspensão da cobrança do tributo, em 1993, não deixaram de vislumbrar, desde logo, a violação, quanto a esse ponto, ao princípio da garantia individual do contribuinte, que nem por Emenda Constitucional se pode afrontar, ainda que temporariamente, em face dos referidos § 2º do art. 5º, artigos 150, III, b, e 60, parágrafo 4º, inciso IV, da Constituição Federal.

12. Nem me parece que, além das exceções ao princípio da anterioridade, previstas expressamente no §1º do art. 150, pela Constituição originária, outras pudessem ser estabelecidas por emenda constitucional, ou seja, pela Constituição derivada.

13. Se não se entender assim, o princípio e a garantia individual tributária, que ele encerra, ficariam esvaziados, mediante novas e sucessivas emendas constitucionais, alargando as exceções, seja para impostos previstos no texto originário, seja para os não previstos."

O ministro Marco Aurélio, igualmente, considerou o princípio da anterioridade como garantia constitucional:

Senhor Presidente, em primeiro lugar, registro minha convicção firme e categórica de que não temos, como garantias constitucionais apenas o rol do art. 5º da Lei Básica de 1988. Em outros artigos da Carta, encontramos, também, princípios e garantias do cidadão, nesse embate diário que trava com o Estado, e o objetivo maior da Constituição é justamente proporcionar uma certa igualação das forças envolvidas – as do estado e as de cada cidadão considerado per se.

"§2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte."

Veja V. Exa. que o Diploma Maior admite os direitos implícitos, os direitos que decorrem de preceitos nela contidos e que, portanto, não estão expressos.

(...) De início, Senhor Presidente, vemos o afastamento da anterioridade, e creio que posso deixar de discorrer a respeito. A Corte, ao enfrentar o pedido de concessão de liminar, teve presente que a anterioridade encerra uma garantia constitucional, e não vejo, em face apenas da Carta conter algumas exceções a esse princípio, como esvaziá-lo, como colocá-lo em plano secundário a ponto de dizer da impertinência do inciso IV, do § 4º. Do art. 60, ou até mesmo, num passo um pouco mais largo, assentar que não se está diante de uma garantia constitucional, como está previsto, com todas as letras, na alínea b, do inciso III, do art. 150 da Carta.

O Ministro Carlos Velloso, em seu voto, relembrou as considerações feitas no julgamento da medida cautelar requerida na ADin n º 939:

Senhor presidente, examino a questão posta na Emenda Constitucional nº 3, de 1993. Tenho como relevante, no ponto, a argüição, no sentido de que a Emenda Constitucional nº 3, desrespeitando ou fazendo tabula rasa do princípio da anterioridade, excepcionando-o, viola limitação material ao poder constituinte derivado, a limitação inscrita no art. 60, § 4º, IV, da Constituição.

(...) Sr. Presidente, o que entendo relevante, no caso, é a questão da anterioridade. Na verdade, o princípio da anterioridade, inscrito no art. 150, inciso III, letra b, da Constituição, a exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, é uma garantia individual, uma garantia do contribuinte; é a própria Constituição que deixa expresso que o princípio da anterioridade é uma garantia do contribuinte: no caput do art. 150 da Constituição está escrito que "sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios", e seguem-se as vedações estabelecidas como garantias do contribuinte.

Ora, a Constituição, no seu art. 60, § 4º, inciso IV, estabelece que "não será objeto de deliberação a proposta tendente a abolir os direitos e garantias individuais". Direitos e garantias individuais não são apenas aqueles que estão inscritos nos incisos do art. 5º. Não. Esses direitos e essas garantias se espalham pela Constituição. O próprio art. 5º, no seu § 2º, estabelece que os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República do Brasil seja parte.

É sabido, hoje, que a doutrina dos direitos fundamentais não compreende, apenas, direitos e garantias individuais, mas também, direitos e garantias sociais, direitos atinentes à nacionalidade e direitos políticos. Este quadro todo compõe a teoria dos direitos fundamentais. Hoje não falamos, apenas, em direitos individuais, assim direitos de primeira geração. Já falamos em direitos de primeira, de segunda, de terceira e até de quarta geração.

(...) Sr. Presidente, retomo o fio do raciocínio anterior: a Emenda Constitucional nº 3, ao estabelecer, no § 2º, do art. 2º, que ao imposto de que trata este artigo não se aplica o art. 150, inciso III, letra b, incorreu em inconstitucionalidade. É o que me parece, pelo menos ao primeiro exame. É que, assim procedendo, a Emenda suprime, suspende e afasta garantia do contribuinte derivado ou de revisão. Tenho, portanto, como relevante o fundamento da inicial, quando sustenta que não poderia a lei – e o Tribunal já entendeu que está compreendida a Emenda Constitucional n 3 – excepcionar, suspender ou suprimir garantia de direito individual garantia do contribuinte.

Com essas considerações, Sr. Presidente, meu voto é no sentido de, deferindo a medida cautelar, suspender, no § 2º, do art. 2º, da Emenda Constitucional nº 3, de 1993, a expressão "não se aplica o art. 150, inciso III, letra b".

Na oportunidade do julgamento da ação principal, o Ministro Carlos Velloso reforçou o entendimento adotado em linhas pretéritas:

(...) No que tange ao princípio da anterioridade, deixei expresso meu pensamento de que as garantias dos contribuintes, inscritas no art. 150 da Constituição, são intangíveis à mão do constituinte derivado, tendo em vista o disposto no art 60, § 4º, IV, da Constituição.

O Ministro Celso de Melo, em brilhante explanação, seguindo o raciocínio anterior, afirmou:

(...) Dentro desse contexto, tenho por irrecusável que a norma inscrita no art. 2º, §2º, da Emenda Constitucional nº 3/93 – ao reduzir, ainda que temporariamente, a abrangência da cláusula de proteção representada pelo princípio da anterioridade – vulnera, nas múltiplas dimensões jurídico-constitucional dos direitos e garantias individuais do contribuinte.

A norma questionada desconsidera – ante o que prescreve, cogentemente, o art. 60, § 4º, IV, da Constituição- o fato de que a anterioridade tributária, traduzindo limitação constitucional ao poder impositivo das pessoas políticas, constitui direito público subjetivo oponível ao Estado pelos contribuintes que dela se beneficiam.

Dentro dessa perspectiva, o ato normativo em causa efetivamente agride e afronta o regime dos direitos fundamentais dos contribuintes, na medida em que viabiliza a imediata exigibilidade desse novo imposto – típico e nominado – incluído, mediante emenda à Constituição, na esfera de competência impositiva ordinária da União Federal.

Nessa mesma esteira, o Ministro Néri da Silveira pronunciou que:

No que concerne ao princípio da anterioridade, considerado pelo Tribunal, ao conceder a medida cautelar, para que o IPMF não fosse exigido até 31-12-93, penso que, efetivamente, a disposição que determinou sua não aplicação à espécie tributária, conforme previsto na Emenda Constitucional nº 3/1993, art. 2º, fere a cláusula pétrea prevista no art. 60, § 4º, inciso IV, da Lei Maior.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade de nº 939/DF é de significativa importância para a história da jurisprudência constitucional do Brasil porque é considerada a primeira ação que questionou a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de uma Emenda à Constituição (CORRÊA, 1998, p. 146). Ademais, como visto, esse julgamento solidificou o entendimento na Corte Constitucional acerca da cláusula aberta dos direitos fundamentais, ou seja, o Supremo Tribunal assentou entendimento de que o rol previsto no art. 5º da Constituição Federal não é exaustivo, até mesmo por força de expressão contida no §2º desse mesmo artigo.

Passemos agora a externar a argumentação dos votos vencidos que, a despeito de não concordarmos, são plausíveis e merecem respeito. O Ministro Sepúlveda Pertence, que, tendo em vista a contextualização do tema no Estado brasileiro, sustenta a incompatibilidade entre a exigência da anterioridade no caso concreto e a dinâmica contemporânea administrativa e financeira:

3. Creio que na demarcação de qual seja a extensão da limitação material ao poder de reforma constitucional, que proíbe a deliberação sobre propostas tendentes a abolir direitos e garantias individuais, o intérprete não pode fugir a uma carga axiológica a atribuir, no contexto da Constituição, a eventuais direitos ou garantias nela inseridos. E não consigo, por mais que me esforce, ver, na regra da anterioridade, recortada de exceções no próprio texto de 1988, a grandeza de cláusula perene, que se lhe quer atribuir, de modo a impedir ao órgão de reforma constitucional a instituição de um imposto provisório que a ela não se submeta.

4. Com todas as vênias – não estive presente ao julgamento da medida cautelar – da maioria que se formou pela concessão da liminar, diria que a grandeza atribuída à regra da anterioridade, no contexto da Constituição vigente, é fruto mais de uma interpretação retrospectiva a que há dias aludia, citando Luiz Roberto Barroso e Barbosa Moreira (v. MS 21.689), de uma interpretação nostálgica: o que se quer, à força, é ver na anterioridade o velho princípio da anualidade, da exigência da prévia autorização orçamentária anual para cobrança de cada imposto, que, esse sim – não é preciso repetir a História a partir de João Sem Terra -, teve uma carga histórica e política de grande relevo. Mas a verdade é que a dinâmica da administração financeira do contemporâneo Estado intervencionista a superou, mal ou bem, no constitucionalismo brasileiro.

O voto do ilustre jurista Sepúlveda Pertence, que já não integra mais o quadro de Ministros do Supremo Tribunal Federal, com a devida vênia, não merece total arrimo. É certo que a interpretação hermenêutica não pode se desvincular de uma certa carga axiológica, até porque a própria Constituição Federal integra valores de toda a sociedade. No entanto, não podemos utilizar a axiologia para restringir, por meio de exegese, direitos fundamentais protegidos positivamente na Constituição Federal. A abolição ou mitigação de um determinado direito fundamental abre um precedente perigoso para que a exceção se torne regra. Em outras palavras, se permitida uma "pequena" violação a um direito fundamental, outros vilipêndios "maiores" certamente virão, o que restaria por desestabilizar a Ordem Constitucional e, por conseguinte, a segurança jurídica.

3- Os menores de dezoito anos como sujeitos de direitos e garantias fundamentais: imputabilidade penal x garantia individual.

Nesse ponto da discussão, faz-se mister que sejam retomados algumas colocações especificadas ao longo do presente ensaio, para efeito de contextualização do que já foi exposto.

No Capítulo I desta obra, tecemos algumas considerações acerca da evolução histórica do Direito da Criança e do Adolescente, dando ênfase à evolução da idade penal. Vimos, naquele capítulo, que as crianças e os adolescentes eram tratados como objeto de direitos e não como sujeitos de direitos. Com a evolução histórica pela qual passou o Direito da Criança e do Adolescente (nacional e internacionalmente), esses seres humanos passaram à condição de sujeitos de direito e gozaram, a partir de então, de especial atenção do Estado, sobretudo porque sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento assim exigia. Foi constatado, ademais, que o princípio da proteção integral , preconizado em tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário, foi encampado pela Constituição Federal da República (art. 227, CF).

No capitulo II, expusemos, em vários tópicos, temas relacionados aos Direitos Fundamentais (teoria, abrangência, limites e interpretação), aos Limites à Reforma Constitucional (rigidez constitucional e limites materiais à reforma) e às chamadas "cláusulas pétreas" (semântica, interpretação e entendimento do Supremo Tribunal Federal).

Observamos, em suma, nesses vários tópicos, que a disciplina dos direitos fundamentais é de suma importância para o desenvolvimento social, porquanto o Estado é feito de pessoas e não o contrário. Daí a necessidade perene de respeitar e salvaguardar os direitos fundamentais do homem. Vimos que na ótica Constitucional pátria, os direitos fundamentais são integrantes do regime geral da Constituição (asseguram o princípio basilar do Estado brasileiro que é o da dignidade da pessoa humana). Observamos, outrossim, que os direitos fundamentais não estão sujeitos a tipicidade exaustiva (cláusula aberta dos direitos fundamentais) e não podem ser posicionados somente no artigo 5º da Constituição Federal, até por disposição expressa do § 2º do mesmo artigo.

Quanto aos Limites de Reforma à Constituição, vimos que a rigidez constitucional existe para que haja uma certa segurança jurídica nas relações sociais, para que o amanhã não seja algo incerto na sociedade, pois tal incerteza certamente traria gravíssimos entraves em termos de pacificação social. Asseveramos que, por óbvio, uma Constituição positivada não pode ser totalmente imutável, sob pena de total falta de eficácia por ilegitimidade. No entanto, verificamos que a mudança de núcleos essenciais na Constituição viola o que chamamos de "identidade constitucional"; tal modificação, por conseguinte, não significaria uma alteração propriamente dita, mas sim, a criação de uma nova Ordem Constitucional. Observamos que a nossa Lei Fundamental de 1988 expressou alguns limites materiais à mudança constitucional, especialmente no art. 60, § 4, da CF. Porém, acentuamos que existem, ainda, limites implícitos ao poder de reforma que são derivados dos fundamentos e do regime constitucional pátrio.

No que concerne ao Supremo Tribunal Federal, verificamos que o egrégio tribunal, de forma adequada, sistematizou a interpretação constitucional e pacificou entendimento de que os direitos e garantias individuais não são somente aqueles elencados no art. 5º da Carta da República, porquanto derivam de seu regime e princípios fundamentais (numerus clausus); na mesma oportunidade, o colendo Tribunal também asseverou que a reforma constitucional está expressamente limitada pelo art. 60, § 4º, da Lei Fundamental, pelas chamadas "cláusulas pétreas".

Nos tópicos que seguem, verificaremos se é possível afirmar que os menores de dezoito anos são sujeitos de direitos e garantias fundamentais; se a resposta for positiva, analisaremos se a inimputabilidade penal dos referidos sujeitos de direito constitui um garantia individual contra a restrição de liberdade.

3.2- Isonomia e Inimputabilidade Penal do menor de dezoito anos.

A discussão acerca da inimputabilidade penal do menor de dezoito anos passa, ao nosso ver, necessariamente, por uma discussão acerca da semântica ontológica do princípio da isonomia, ou seja, qual seria o fundamento, a natureza jurídica e a aplicação da isonomia a casos específicos.

Como relacionar o princípio da isonomia ao tratamento diferenciado dado pela Constituição Federal àqueles que se encontram em peculiar condição (no caso do menor, como pessoa em singular condição de desenvolvimento)? Tentaremos responder a esse questionamento no decorrer desse tópico.

Antes de aprofundar a discussão, mister seja citado o preceito que consagra, mas não exaure, o princípio da isonomia (ou igualdade) na Constituição Federal. Reza o art. 5°, caput, da Constituição Federal que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza(...).

Uma leitura rápida do dispositivo acima poderia induzir um leitor desatento ao erro, acreditando que qualquer tratamento diferenciador seria inconstitucional, por exemplo, tratar desigualmente a Criança e o Adolescente com relação àqueles maiores de 18 anos. Veremos, a seguir, que tal premissa é falha. Em verdade, tratar igualmente aqueles que são desiguais acentuaria ainda mais a desigualdade entre eles (NOVELINO, 2008, p. 292).

Na verdade, a expressão "sem distinção de qualquer natureza" não impede a lei de estabelecer distinções. Apesar de parecer contraditório, somente no plano da aparência tal paradoxo existe. Essencialmente, "o papel da lei não é outro senão o de implantar diferenciações" (BASTOS, 1995, p. 169).

O que se deve analisar é "se o elemento discriminador, cuja adoção exige uma justificativa racional, está em harmonia com um fim constitucionalmente consagrado, devendo o critério utilizado na diferenciação ser objetivo, razoável e proporcional" (NOVELINO, 2008, p. 292).

Há que distinguir, portanto, a igualdade formal (aquela que não prevê distinções para aqueles que se encontram em situação "igual") da igualdade material (que busca desigualar os desiguais para tratá-los efetivamente de forma "igual") [26]. A igualdade formal "é um princípio de ação, segundo o qual os seres humanos de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma. Porque existem desigualdades, é que se aspira à igualdade real ou material que busque realizar a igualização das condições desiguais, do que se extrai que a lei geral, abstrata e impessoal que incide em todos igualmente, levando em conta apenas a igualdade dos indivíduos e não a igualdade dos grupos, acaba por gerar mais desigualdades e propiciar a injustiça"(SILVA, 2005, p. 214).

Acerca do princípio da isonomia, salutar é a lição do professor José Afonso da Silva (2005, p. 215):

(...) o princípio não pode ser entendido em sentido individualista, que não leve em conta as diferenças entre grupos. Quando se diz que o legislador não pode distinguir, isso não significa que a lei deva tratar todos abstratamente iguais, pois o tratamento igual – esclarece Petzold – não se dirige a passoas integralmente iguais entre si, mas àquelas que são iguais sob os apectos tomados em consideração pela norma, o que implica que os "iguais" podem diferir totalmente sob outros aspectos ignorados ou considerados como irrelevantes pelo legislador. Este julga, assim, como "essenciais" ou "relevantes", certos aspectos ou características das pessoas, das circunstâncias ou das situações nas quais essas pessoas se encontram, e funda sobre esses aspectos "essencias" previstos por essas normas são consideradas encontrar-se nas "situações idênticas", ainda que possam diferir por outros aspectos ignorados ou julgados irrelevantes pelo legislador; vale dizer que as pessoas ou situações são iguais ou desiguais de modo relativo, ou seja, sob certos aspectos.

Ainda sobre a essência do princípio isonômico, Uadi Lamêgo Bulos (2005, p. 120) profere que:

Os homens nunca foram iguais e jamais o serão no plano terreno. A desigualdade é própria da condição humana. Por possuírem origem diversa, posição social peculiar, é impossível afirmar-se que o homem é totalmente idêntico ao seu semelhante em direitos, obrigações, faculdades e ônus. Daí se buscar uma igualdade proporcional, porque não se pode tratar igualmente situações provenientes de fatos desiguais. O raciocínio que orienta a compreensão do princípio da isonomia tem sentido objetivo: aquinhoar igualmente os iguais e desigualmente as situações desiguais. Dessa maneira, atribui-se ao princípio sentido real e não nominal, igualdade material e não incidental ou particular, porquanto a igualdade consiste em assegurar aos homens que estão equiparados os mesmos direitos, benefícios e vantagens, ao lado dos deveres correspondentes. O mesmo ocorre em relação àqueles que estiverem desequiparados, os quais deverão receber o tratamento que lhes é devido à medida de suas desigualdades.

Percebe-se que a doutrina é uníssona no que concerne à necessidade de se empregar um teor axiológico ao princípio da isonomia, dando-lhe um caráter de realização da "justiça social" ou eqüidade Aristotélica (SILVA, 2005, p. 215).

Entretanto, também é ponto pacífico que não se pode definir casuisticamente quais seriam casos de isonomia material ou mesmo casos em que a substancial igualdade fosse desrespeitada, em virtude da relatividade e abstração de tal conceito (LENZA, 2006, p. 532).

Para ajudar a mitigar a celeuma da relatividade do princípio da isonomia, mormente no campo pragmático, Celso Antônio Bandeira de Melo (1995, p. 21), em obra monográfica sobre o tema, propôs alguns critérios que almejam delimitar, ou pelo menos, extrair limites à aplicação da isonomia ao caso concreto, os quais ajudariam a verificar se o princípio está sendo desrespeitado ou não. Conforme o autor, os critérios norteadores seriam basicamente três, quais sejam: "a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação; b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados".

Para verificarmos a validade da diferenciação proposta pela Constituição no que toca aos menores de 18 anos com relação aos indivíduos que não mais pertencem a tal faixa etária, analisaremos, em poucas linhas, os critérios traçados pelo ilustre Celso de Mello, trazendo a discussão para o tema em apreço.

O primeiro critério proposto diz respeito ao elemento tomado com fator de discriminação. Em se tratando da diferenciação do menor de dezoito anos com relação aos maiores de dezoito anos, a delimitação do elemento distintivo salta aos olhos: no caso, é o elemento "idade". O legislador Constituinte de 1988 seguiu uma tendência internacional de adotar o critério da idade para delimitar o teor da diferenciação entre crianças e adolescentes com relação aos "adultos".

Definido o primeiro critério, tomamos para análise a segunda proposição, que é a "correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado"(MELO, 1995, p. 21). Nesse critério, busca-se a relação lógica que fundamentou a adoção de um fator de discriminação, ou seja, o motivo que ensejou a diferenciação. No caso específico da criança e do adolescente, a fundamentação lógica que torna premente a distinção com relação aos adultos é a condição daqueles de "pessoas em desenvolvimento".

É indubitável que a condição peculiar das crianças e dos adolescentes no que diz respeito à formação (tanto no seio social, como educacional, cultural, familiar, etc) exige um tratamento diferenciado com relação a outras pessoas que se encontram em idade mais avançada. É óbvio que os menores de 18 anos, mesmo para aqueles que defendem sua total emancipação psíquica, não é dotado de plena formação social e necessita de tratamento diferenciado do legislador e dos aplicadores da lei de maneira geral (CORRÊA, 1998, p. 194).

O terceiro critério diferenciador, no dizer de Celso Antônio Bandeira de Mello (1995, p. 21), "atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados", ou seja, o terceiro âmbito norteador diz respeito ao sistema constitucional de um determinado Estado e ao regime que ele adota no tocante à justiça social. A principiologia adotada pela Constituição Federal de 1988, consoante assevera Pedro Lenza (2006, p. 532) encampa a possibilidade de aplicar critérios de "diferenciação positiva" (affirmatives actions)?

O artigo 3º, inciso I, da Lei Fundamental, traça as primeiras linhas para responder à indagação. Reza o artigo que "constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I- construir uma sociedade livre, justa e solidária. II- erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais" (grifos nossos).

Ademais, no art. 227, § 3º, inciso V, encampando positivamente a doutrina da proteção integral da criança e do adolescente no que toca à restrição da liberdade, reza que:

"Art. 227- É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar (...) §3ºO direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: V- obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento(...)

Assim, é possível inferir que a sistemática Constitucional, até pela evolução histórica do Direito da Criança e do Adolescente (como visto no capítulo I), adotou o princípio da proteção integral e permitiu diferenciações que mitigassem as desigualdades existentes entre os menores de 18 anos e aqueles que não se encontrem nessa peculiar condição. Reputa-se, ademais, que a diferenciação proposta pelo Constituinte originário está respaldada por critérios de validade que torna a totalmente legítima. Portanto, a inimputabilidade penal do menor de 18 anos é corolário mediato do princípio da isonomia em sua semântica efetiva, material, substancial.

3.3- Inimputabilidade penal como garantia individual (fundamental)?

Vimos no item anterior que o tratamento Constitucional dado à inimputabilidade penal do menor de 18 anos é perfeitamente harmônico com o princípio da igualdade ou isonomia encampado pela Constituição Federal de 1988.

Ademais, no Capítulo I dessa obra, consoante já asseverado, constatamos que as Crianças e os Adolescentes são sujeitos de direito, portanto, não há dúvida de que toda a legislação constitucional aplicável aos indivíduos em geral, por óbvio, também lhes é aplicável. Aliás, em virtude de sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, a proteção constitucional dedicada às Crianças e aos Adolescentes é mais ampla.

A Constituição Federal trata, especificamente, da Criança e do Adolescente no Título VIII (Da Ordem Social), Capítulo VII (Da família, da criança, do adolescente e do idoso). É possível inferir, após leitura sistêmica desses preceitos Constitucionais à luz da principiologia adotada pela própria Lei Fundamental, que a Criança e o Adolescente são sujeitos de Direito, e como tais, merecem proteção legal contra constrição da liberdade (em sua acepção mais ampla). A própria evolução histórica do Direito da Criança e do Adolescente corrobora com o entendimento de que, hodiernamente, vigora o princípio da proteção integral desses indivíduos.

À criança e ao adolescente, portanto, é assegurado o direito à liberdade [27] (manutenção do status libertatis).

Quanto à aplicabilidade dos direitos à liberdade, ensina José Afonso da Silva (2005, p. 269) que:

As normas constitucionais que definem as liberdades consideradas neste capítulo são, via de regra, daquelas que denominamos de eficácia plena e aplicabilidade direta e imediata, porque o legislador constituinte deu normatividade suficiente aos interesses vinculados à matéria de que cogitam.Vale dizer, não dependem de legislação nem providência do Poder Público para serem aplicadas. Algumas normas podem caracterizar-se como de eficácia contida, mas sempre de aplicabilidade direta e imediata, caso em que a previsão de lei não se destina a integrar-lhes a eficácia (que já têm amplamente), mas visa restringir-lhes a plenitude desta, regulando os direitos subjetivos que delas decorrem para os indivíduos ou grupos. Enquanto o legislador, neste caso, não produzir a normatividade restritiva, sua eficácia será plena.

Parece óbvio, então, que os menores de 18 anos (crianças e adolescentes na acepção legal [28]) merecem proteção contra a restrição de liberdade. Quando tal restrição for necessária, conforme legislação específica, deverá seguir o preceituado no inciso V do art. 227 da Carta Republicana de 1988, que determina "obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade".

A liberdade de locomoção pode, é claro, ser restringida por lei ordinária (caso do Código Penal, por exemplo) em casos excepcionais (em respeito ao princípio da intervenção mínima no direito de liberdade), mas o direito à liberdade, abstratamente considerado, não pode ser suprimido, e se for mitigado, deverá se adequar aos ditames Constitucionais (NOVELINO, 2008, p. 307). À guisa de exemplo, não seria possível, do ponto de vista jurídico, uma lei ordinária que permitisse a aplicação de pena cruel (de acoites diários, por exemplo) àquele indivíduo condenado pelo crime de latrocínio, porquanto o art. 5°, inciso, XLVII, alínea e, da Constituição Federal, reza que "não haverá penas cruéis". Ressalte-se que, nem mesmo uma emenda à constituição seria idônea a criar tal sanção, já que existe limitação expressa de reforma, como vimos, no art. 60, § 4°, inc. IV, da Lei Máxima, que erigiu os direitos fundamentais à categoria de "cláusula pétrea".

Consoante já asseverado quando da distinção entre direitos e garantias fundamentais, os direitos subjetivamente considerados podem possuir pouca eficácia se não forem dotados de garantias que os assegurem. Portanto, em regra, os direitos fundamentais constitucionais, até mesmo aqueles negativos (ou de defesa), possuem regras garantidoras de tais direitos, como forma de assegurá-los e efetivá-los (SILVA, 2005, pp. 186 e ss).

Devemos nos lembrar, ademais, da lição de José Afonso da Silva (2005, pp.186- 187) (citada no item 1.2.3 desta obra), ao classificar as garantias fundamentais (individuais) na Constituição da República. O autor expressa que algumas vezes as garantias são explícitas por meio de verbos seguidos das medidas assecuratórias, como por exemplo: "é assegurado o direito de resposta (...)" (art.5º, V). "é assegurada (...) a prestação de assistência religiosa (...)" (art. 5º, VII), "é garantido o direito de propriedade" (art. 5º, XXII), "é garantido o direito de herança" (art. 5º, XXX).

Outras vezes, no entanto, conforme o autor, as garantias são enunciadas pela inviolabilidade do elemento assecuratório. Assim, "a casa é o asilo inviolável do indivíduo" (art. 5º, XI), "é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telefônicas (...)" (art. 5º, XII); ora nesses casos, a inviolabilidade do lar e do sigilo constitui garantia do direito à intimidade pessoal e familiar e da liberdade de transmissão pessoal de pensamento, mas a Constituição mesma fala em direitos de sigilo de correspondência e de sigilo de comunicação (art. 136, § 1º, I, b e c). Já noutro dispositivo esta que "são invioláveis à intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (...)" (art. 5º, X); aqui o direito e a garantia se integram: inviolabilidade = garantia.

O constitucionalista (SILVA, 2005, p. 187) afirma ainda que há outras garantias individuais não expressas exatamente no art. 5º da Constituição Federal, como por exemplo, aquelas que atinem à magistratura (art. 95, CF).

Diante do exposto, é possível questionar, então, se a imposição constitucional expressa no artigo 228 da Constituição Federal que, com a utilização de um verbo ("são") seguido de uma inviolabilidade ("inimputáveis") seria ou não uma garantia individual (fundamental) expressa em favor da criança e do adolescente.

Em se tratando do direito à liberdade (lembrando que aqui se fala somente na acepção "negativa" da liberdade) do menor de 18 anos, a Constituição Federal de 1988 pareceu expressar garantia fundamental no art. 228 de seu corpo. Preceitua o citado dispositivo que "são penalmente inimputáveis os menores de 18 (dezoito) anos, sujeitos às normas da legislação especial".

Parece-nos, portanto, que a Constituição Federal de 1988 expressou uma garantia individual do menor de 18 anos de não sofrer persecução penal comum, ou seja, de ser inimputável, sendo-lhe aplicável, no que couber, a legislação especial adequada (no caso, a lei 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente [29]).

Nesse sentido, o ilustre jurista Alexandre de Moraes, na obra Constituição do Brasil Interpretada (2005, p. 2176) expressa que "a Constituição brasileira seguiu a tendência internacional consagrada no art. 1° da Convenção dos Direitos da Criança, que estabelece ser criança todo ser humano com menos de 18 anos".

Continua, então, o constitucionalista (2005, p. 2176, grifo nosso), asseverando que:

(...) a Constituição Federal de 1988, expressamente em seu art. 228, previu, entre os vários direitos e garantias específicos das crianças e dos adolescentes, a seguinte regra: são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.

Essa previsão transforma em especialíssimo o tratamento dado ao menor de 18 anos em relação à lei penal. Dessa forma, impossível a legislação ordinária prever responsabilidade penal aos menores de 18 anos. A questão, todavia, deve ser analisada em seu aspecto mais complexo, qual seja,, a possibilidade de alteração constitucional que possibilitasse uma redução da idade geradora da imputabilidade penal. Seria possível uma emenda constitucional, nos termos do art. 60 da Constituição Federal, para alteração do art. 228?

Entende-se impossível essa hipótese, por tratar-se a inimputabilidade penal, prevista no art. 288 da Constituição Federal, de verdadeira garantia individual da criança e do adolescente em não serem submetidos à persecução penal em Juízo, tampouco poderem ser responsabilizados criminalmente, com conseqüente aplicação de sanção penal. Lembremo-nos, pois, de que essa verdadeira cláusula de irresponsabilidade penal do menor de 18 anos enquanto garantia positiva de liberdade, igualmente transforma-se em garantia negativa em relação ao Estado, impedindo a persecução penal em juízo.

Inferência tão brilhante de tão respeitado autor seria digna de unânimes elogios, não fosse a necessidade de se fazer um registro no que toca especificamente a um termo utilizado, ao nosso ver, equivocadamente, qual seja "irresponsabilidade penal". O referido termo foi mencionado pelo autor para se referir à inimputabilidade penal do menor de 18 anos, posto que inimputabilidade, como veremos no Capítulo III, não se confunde com irresponsabilidade. Essa falsa impressão do senso comum de que o menor de 18 anos é um "irresponsável penal" será refutada adiante.

No mesmo sentido, o Magistrado Eugênio Couto Terra (apud SARAIVA, 2005, pp. 78- 79) preceitua que:

O art.228, ao estabelecer a idade mínima para a imputabilidade penal, assegura a todos os cidadãos menores de dezoito anos uma posição jurídica subjetiva, qual seja, a condição de inimputável diante do sistema penal. E tal posição, por sua vez, gera uma posição jurídica objetiva: a de ter a condição de inimputável respeitada pelo Estado.

Num enfoque do ponto de vista individual de todo cidadão menor de dezoito anos, trata-se de garantia asseguradora, em última análise, do direito de liberdade. É, em verdade, uma explicitação do alcance que tem o direito de liberdade em relação aos menores de dezoito anos. Exerce uma típica função de defesa contra o Estado, que fica proibido de proceder a persecução penal.

Trata-se, portanto, de garantia individual, com caráter de fundamentalidade, pois diretamente ligada ao exercício do direito de liberdade de todo cidadão menor de dezoito anos. E não se pode olvidar que a liberdade sempre está vinculada ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, especialmente em relação às crianças e adolescentes, pois foram reconhecidos como merecedores de absoluta prioridade da atenção da família, da sociedade e do Estado, em face da peculiar condição de seres humanos em desenvolvimento.

É notório, portanto, que o art. 228 da Constituição Federal encerra garantia individual (fundamental) em favor da criança e do adolescente contra a persecução penal geral, sendo-lhes aplicável, no que couber, a legislação específica.

Digna de registro, mas não de arrimo, a posição daqueles que entendem que o art. 228 da Constituição não abarca garantia fundamental do menor de 18 anos, portanto, suprimível por emenda à Constituição. Possui como principal defensor no direito pátrio o jurista Guilherme de Souza Nucci (2000, p. 109), o qual observa:

(...) uma tendência mundial na redução da maioridade penal, pois não mais é crível que menores de 16 ou 17 anos, por exemplo, não tenham condições de compreender o caráter ilícito do que praticam, tendo em vista que o desenvolvimento mental acompanha, como é natural, a evolução dos tempos, tornando a pessoa mais precocemente preparada para a compreensão integral dos fatos da vida.

Conclui o autor que:

(...) não podemos concordar com a tese de que há direitos e garantias fundamentais do homem soltos em outros trechos da Carta, por isso também cláusulas pétreas, inseridas na impossibilidade de emenda constitucional suprimindo ou modificando o art. 228 da Constituição.

Malgrado o referido autor ser de indiscutível saber jurídico, ousamos discordar de seu entendimento, por dois motivos: 1°- porque a conclusão de que o menor de 16 ou de 17 anos, por exemplo, seria capaz de entender o ilícito não pode servir de justificativa para redução da idade penal, consoante veremos no Capítulo III dessa obra; 2°- porque a inferência de que os direitos e garantias individuais não se encontram em "outros trechos da Carta" não se coaduna com uma interpretação sistemática da Constituição, como já demonstrado.

Para aqueles que entendem que os direitos e garantias individuais não se encontram ao longo de todo o texto da Constituição Federal, seria constitucional, somente como um dos muitos exemplos possíveis, a edição de uma emenda à Constituição que alterasse o artigo 231 [30] da lei Fundamental, determinando que não mais seriam reconhecidos aos índios os seus costumes, línguas, crenças e tradições, acarretando, por óbvio, uma total aculturação daquela etnia e posterior extinção. Outro exemplo seria a supressão da garantia dos magistrados de irredutibilidade de subsídios (expressa no art. 95 da CF). Parece claro que tal entendimento não pode prevalecer, em homenagem ao princípio da manutenção da identidade constitucional (manutenção de núcleos essenciais), corolário do primado da segurança jurídica.

Sobre a vedação ao retrocesso, ou seja, de violar núcleos essenciais da Constituição adquiridos ao longo de um dificultoso processo histórico, assinala o Doutor Ingo Sarlet (2005, p. 412) que:

Convém relembrar que, havendo (ou não) menção expressa no âmbito do direito positivo a um direito à segurança jurídica. De há muito, pelo menos no âmbito do pensamento constitucional contemporâneo, se enraizou a idéia de que um autêntico Estado de Direito é sempre também – pelo menos em princípio e num certo sentido – um Estado da segurança jurídica, já que, do contrário, também o "governo das leis" (até pelo fato de serem expressão da vontade política de um grupo) poderá resultar em despotismo e toda a sorte de iniquidades. Com efeito, a doutrina constitucional contemporânea tem considerado a segurança jurídica como expressão inarredável do Estado de Direito, de tal sorte que a egurança jurídica passou a ter o status de subprincípio concretizador do princípio fundamental e estruturante do Estado de Direito.

Não podemos, como já verificado, desrespeitar núcleos essenciais de direitos fundamentais erigidos à categoria de núcleos intangíveis e identificadores da identidade Constitucional, sob pena de retroceder ao estado de total desordem jurídica (SARLET, pp. 412 e ss.).

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Sobre o autor
Evaldo Dantas Segundo

Servidor Público Federal, Bacharel em Direito pela Faculdade Mater Christi, pós-graduando em Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DANTAS SEGUNDO, Evaldo. Redução da idade penal em face da Constituição Federal.: Apontamentos jurídicos acerca das tentativas de redução da idade para imputação criminal do menor de 18 anos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2373, 30 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14105. Acesso em: 24 dez. 2024.

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