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Comentários acerca da natureza da ação penal no crime de injúria qualificada por preconceito à luz da alteração da Lei nº 12.033/2009

13/01/2010 às 00:00
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A honra, bem jurídico tutelado nos crimes previsto nos arts. 138 a 140 da Lei Material Penal, possui uma alta carga de disponibilidade e possibilidade de perdão e conciliação entre ofensor e ofendido, razão pela qual a regra da ação penal nesses crimes é a propositura mediante queixa, ação penal privada, consoante o disposto do art. 145.

Todavia, a injúria qualificada por preconceito, introduzida no ordenamento jurídico através da Lei n. 9.459/97, fruto de política criminal repressora contra atos de racismo e outras espécies de preconceito, sofria de um forte paradoxo: tinha seu ius persequendi realizado através do exercício do direito de queixa, embora proteja um bem indisponível, uma vez que a Lei de 1997 não trouxe qualquer alteração acerca da regra acerca da ação penal nos crimes contra a honra.

É notório e inconteste que a tutela jurídica nesta modalidade qualificada do crime de injúria vai além da honra subjetiva. Busca-se também tutelar o respeito à raça, cor, etnia, origem, liberdade religiosa e a condição de idoso e portador de deficiência, bens inegavelmente indisponíveis e objetivo da República Federativa do Brasil a redução do preconceito, nos termos da CF/88, art. 3º, IV.

Nesse sentido, o Senador Romeu Tuma, opinando pela aprovação do Projeto de Lei da Câmara 37/09 [01]: "É que no caso da injúria racial, embora a doutrina tradicional continue a apontar a pessoa física determinada como único sujeito passivo do crime, dado que a honra constitui direito personalíssimo, vislumbramos em tal conduta também alguma lesão aos direitos dos demais indivíduos da mesma raça, religião ou origem, que figurariam como espécie de sujeitos passivos mediatos."

Por tais razões, a doutrina criticava com propriedade a natureza da ação penal do crime de injúria preconceituosa, como pode ser visualizado a partir do magistério de Cezar Roberto Bittencourt [02]: "Sem pretender constranger o Estado, a política criminal adotada, no particular é preconceituosa, para usar um trocadilho, pois trata de um tema tão relevante, causador de tantas injustiças às minorias que menciona, e, no entanto, deixa a ação penal, isto é, o uso do aparato estatal, à mercê da exclusiva iniciativa privada, como se o Estado não se tratasse de um assunto relevante e se o bem jurídico não justificasse a movimentação oficial da máquina judiciária."

Diante das críticas doutrinárias, entrou em vigor na data de sua publicação a Lei 12.033/2009, que alterou o Código Penal nos seguintes termos: "Art. 2º O parágrafo único do art. 145 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, passa a vigorar com a seguinte redação: art. 145 (..) Parágrafo único. Procede-se mediante requisição do Ministro da Justiça, no caso do inciso I do caput do art. 141 deste Código, e mediante representação do ofendido, no caso do inciso II do mesmo artigo, bem como no caso do § 3º do art. 140 deste Código."

Percebe-se, da leitura da norma acima exposto, que a natureza da ação penal em decorrência do cometimento do tipo previsto no art. 140, §3º, do CP foi alterada, excepcionando a regra de ação penal privada, para ser de natureza pública condicionada à representação do ofendido ou requisição do Ministro da Justiça.

Esta modalidade de ação penal busca ser uma solução aos interesses da vítima, temendo uma retaliação maior em decorrência da instauração de inquérito ou processo criminal e a tutela de bem jurídico que possua relevância suficiente para justificar a feitura pública da ação penal.

Segundo Fernando Capez [03]: "O Ministério Público, titular dessa ação, só pode a ela dar início se a vítima ou seu representante legal o autorizarem, por meio de uma manifestação de vontade. Nesse caso, o crime afeta tão profundamente a esfera íntima do indivíduo, que a lei, a despeito de sua gravidade, respeita a vontade daquele, evitando, assim, que o strepitus judicii (escândalo do processo) se torne um mal maior para o ofendido do que a impunidade dos responsáveis."

A novel norma penal, excepcionando a regra da ação penal privada para os casos de injúria racial, demonstra ser a opção mais acertada à luz da relevância do bem jurídico tutelado, bem como eventuais interesses do ofendido em não haver a apuração da infração penal, temendo por um mal maior que as conseqüências da infração penal.

A relevância social da proteção à raça, cor, etnia, origem ou religião e ao idoso e portador de deficiência é bastante para justificar a atuação dos órgãos com atribuição para a investigação criminal e persecução penal. Trata-se de nítidos direitos fundamentais, os quais são indisponíveis, não coadunando com a ação penal privada, a qual tem como sua principal característica os princípios da oportunidade e conveniência para o exercício do direito de queixa, bem como ser uma ação penal de natureza disponível.

Quanto à opção pela natureza condicionada da ação pública, demonstra ser a mais adequada. Concilia-se o interesse do ofendido com a oficialidade da tutela penal dos bens indisponíveis, in casu o combate à não-discriminação e ao preconceito. Cabe ao ofendido, fazer o juízo de valor ao oferecer a representação com o fim de instauração de inquérito policial e oferecimento de denúncia pelo órgão do Ministério Público.

Importante também frisar o acerto do legislador ao estatuir a condição de procedibilidade ao exercício da ação penal pública no caso de cometimento de crimes em estudo. Em determinados casos infelizmente as vítimas desse tipo de violação à honra subjetiva qualificada pelo preconceito são pessoas que possuem uma relação de dependência ou hierarquia com o sujeito ativo do crime, razão pela qual a instauração de processo criminal poderá trazer consequências graves ao ofendido.

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Para melhor visualizar o argumentado, apresenta-se exemplo hipotético no qual um empregador qualifica sua empregada doméstica, pessoa humilde, idosa e sem perspectiva de arranjar novo emprego, de "velha burra". No exemplo exposto, evidencia-se que eventual persecução penal incondicionada poderia ir de encontro com os interesses da ofendida, uma vez que poderia até acarretar em uma demissão e permanecer desempregada. A nova lei demonstrou ser sensata à realidade fática, ao estabelecer a autorização do ofendido, mediante representação ou requisição do Ministro da Justiça para o exercício da ação penal pública.

Diante de todo o exposto, a alteração ocasionada pela Lei 12.033/2009 mostra-se acertada em virtude da grande relevância social de combater o preconceito. A escolha de condicionar a ação penal à representação do ofendido ou à requisição do Ministro da Justiça mostra-se imprescindível diante da realidade da sociedade brasileira, cabendo à vítima, ao avaliar se eventual processo criminal não irá acarretar prejuízos e males, representar na forma e prazo dos arts. 38 e 39 do Código de Processo Penal, provocando a atuação oficial do Estado para apurar o eventual cometimento de crime de injúria preconceituosa, a qual apenas poderá ser interrompida antes do oferecimento da denúncia, em hipótese de retratação da representação.


REFERÊNCIAS:

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal; Parte Especial. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 2.

BRASIL. Senado Federal. Comissão de Constituição e Justiça. Parecer opinando pela aprovação do Projeto de Lei iniciado na Câmara dos Deputados n. 37/09. In: http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/64253.pdf. Acesso em 23 de Novembro de 2009, às 10:30.

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.


Notas

  1. BRASIL. Senado Federal. Comissão de Constituição e Justiça. Parecer opinando pela aprovação do Projeto de Lei iniciado na Câmara dos Deputados n. 37/09. In: http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/64253.pdf. Acesso em 23 de Novembro de 2009, às 10:30.
  2. BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal; Parte Especial. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 2. p. 408.
  3. CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 120.
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Sobre o autor
Rafael Lins Bertazzo

Advogado e Pós graduando em Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERTAZZO, Rafael Lins. Comentários acerca da natureza da ação penal no crime de injúria qualificada por preconceito à luz da alteração da Lei nº 12.033/2009. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2387, 13 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14184. Acesso em: 22 dez. 2024.

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