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A imparcialidade do juiz no contexto do Estado Democrático de Direito.

Uma reconstrução possível?

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Resumo:


  • O conceito de imparcialidade do juiz evoluiu ao longo dos paradigmas constitucionais, passando pelo Estado Liberal, Estado Social e chegando ao Estado Democrático de Direito.

  • No Estado Liberal, a imparcialidade do juiz era associada à segurança jurídica, sendo esperado que o juiz fosse um mero aplicador da lei, sem discricionariedade.

  • No paradigma do Estado Social, a atuação do juiz passou a ser mais ativa, visando a justiça social, o que influenciou a Teoria Instrumentalista do Processo, levando a uma reavaliação do conceito de imparcialidade.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4 A RELAÇÃO ESTADO SOCIAL E DIREITO PROCESSUAL: A SUPERVALORIZAÇÃO DA FIGURA DO JUIZ

No Estado Social, através da democracia social, os direitos coletivos ficam em primeiro plano, evidenciando-se a preocupação do Estado em reverter a crise social causada pelo liberalismo.

Neste contexto, o Estado passa a intervir diretamente na sociedade, com isso exigindo uma participação maior do juiz no processo.

Com o surgimento da democracia social, intensifica-se a participação do Estado na sociedade e, por conseqüência, a participação do juiz no processo, que não deve mais apenas estar preocupado com o cumprimento das "regras do jogo", cabendo-lhe agora zelar por um processo justo, capaz de permitir (a) a justa aplicação das normas de direito material, (b) a adequada verificação dos fatos e a participação das partes em um contraditório real e (c) a efetividade da tutela dos direitos, pois a neutralidade é mito, e a inércia do juiz, ou o abandono do processo à sorte que as partes lhe derem, não é compatível com os valores do Estado atual (MARINONI, 1996, p. 66).

No campo da Hermenêutica Jurídica, o juiz também assume outro posicionamento após a crise do Liberalismo. Esse é o entendimento de Menelick de Carvalho Netto.

O juiz agora não pode ter a sua atividade reduzida a uma mera tarefa mecânica de aplicação silogística da lei tomada como a premissa maior sob a qual se subsume automaticamente o fato. A hermenêutica jurídica reclama métodos mais sofisticados como as análises teleológica, sistêmica e histórica capazes de emancipar o sentido da lei da vontade subjetiva do legislador na direção da vontade objetiva da própria lei...Aqui o trabalho do juiz já tem que ser visto como algo mais complexo a garantir as dinâmicas e amplas finalidades,sociais que recaem sobre os ombros do Estado. (CARVALHO NETTO, 1999, p. 108)

Tais ideais de participação ativa do juiz norteiam as Teorias do processo surgidas no período do Estado Social.

Primeiramente, tem-se a Teoria da Relação Jurídica, que tem como pioneiro Von Bülow. Concebe-se o processo como uma relação jurídica de direito público, a qual envolve juiz, autor e réu, se diferenciando da relação de direito material, tendo em vista que necessita da existência prévia dos chamados pressupostos processuais.

Verifica-se a inserção desta Teoria no Estado Social na medida em que, na relação jurídica processual, o interesse público prevalece sobre o individual.

[...] a relação jurídica que se estabelece no processo não é uma relação de coordenação, mas, como já vimos, de poder e sujeição, predominando sobre os interesses divergentes dos litigantes, o interesse público na resolução (processual e, pois, pacífico) dos conflitos e controvérsias (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 1999, p. 90).

Tendo como inspiração a Teoria da Relação Jurídica, mais precisamente os estudos de Liebman, é também no paradigma do Estado Social que surge a Teoria Instrumentalista do Processo, criada por Cândido Rangel Dinamarco e seguida por doutrinadores como Ada Pelegrini Grinover, Luiz Guilherme Marinoni, Antônio Carlos de Araújo Cintra e Humberto Theodoro Júnior.

O processo é tido como meio, método ou mero instrumento do exercício da jurisdição, estando a serviço da paz social.

Falar em instrumentalidade do processo, pois, não é falar somente nas suas ligações com a lei material. O Estado é responsável pelo bem-estar da sociedade e dos indivíduos que a compõem: e, estando o bem-estar social turbado pela existência de conflitos entre pessoas, ele se vale do sistema processual para, eliminando os conflitos, devolver à sociedade a paz desejada. O processo é uma realidade desse mundo social, legitimada por três ordens de objetivos que através dele e mediante o exercício da jurisdição o Estado persegue: sociais, políticos e jurídico. A consciência dos escopos da jurisdição e sobretudo do seus escopo social magno da pacificação social(v. supra, n. 4) constitui fator importante para compreensão da instrumentalidade do processo, em sua conceituação e endereçamento social e político. (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2000, p. 41)

Com relação à atuação do juiz no processo, os instrumentalistas defendem que a participação do magistrado deve ser efetiva, garantindo um processo a rigor democrático, não devendo o julgamento da lide ser prejudicado pela má ingerência das partes na instrução do processo. Assim Marinoni disserta:

O processo, como é obvio, exige que os fatos sejam verificados de forma adequada, ou melhor, para a jurisdição dos nossos dias não é concebível que os fatos não sejam devidamente verificados em razão da menor sorte econômica ou da melhor astúcia de um dos litigantes (MARINONI, 1996: 66).

Somado a isso, Marinoni afirma que "na ideologia do Estado social, o juiz é obrigado a participar do processo, não estando autorizado a desconsiderar as desigualdades sociais que o próprio Estado visa a eliminar. Na realidade, o juiz imparcial de ontem é justamente o juiz parcial de hoje" (MARINONI, 1996, p. 67).

Nota-se, portanto, que, no Estado Social, o juiz passa a ser o disseminador da justiça social, já que representando o Estado, agia de acordo com o interesse estatal. Essa nova postura do magistrado segundo Marinoni não feria os princípios da imparcialidade, tão pouco do contraditório.

O princípio da imparcialidade do juiz não é empecilho para a participação ativa do julgador na instrução; ao contrário, supõe-se, na fase atual, é o juiz, que sabendo que uma prova é fundamental para a elucidação da matéria fática, queda-se inerte. Nem mesmo o contraditório é arranhado pela nova postura assumida pelo juiz. O principio do contraditório, por ser informado pelo principio da igualdade substancial, na verdade é fortalecido pela participação ativa do julgador, já que não bastam oportunidades iguais àqueles que são desiguais. Se não existe paridade de armas, de nada adianta igualdade de oportunidades, ou um mero contraditório formal. (MARINONI, 1996: 66)

Ainda neste sentido, Marinoni afirma que o princípio da proporcionalidade deve ser trabalhado pelo magistrado na medida de cada caso concreto, já que é necessário uma "ponderação" dos direitos ou bens jurídicos invocados de acordo com a importância de cada um. Assim dispõe:

O principio da proporcionalidade, é claro, pressupõe um juiz aberto aos valores do seu tempo. Aliás, e aqui nos encontramos diante de outro ponto, é fundamental que os textos legais sejam lidos de acordo com os valores da Constituição e que o juiz se convença, definitivamente, de que a neutralidade é um mito. O juiz deve atuar a vontade da lei, diz Chiovenda. Mas, atuando a vontade da lei, o juiz atua, também, a sua vontade. Atua a sua vontade, compreenda-se, quando aplica a forma adequando-se aos novos tempos e aos valores, fundamentos e princípios contidos na Constituição. Na verdade, esse conjunto de idéias que decorrem da Constituição é que indica o conteúdo do direito determinado tempo e lugar. O juiz que aprende o conteúdo do direito do seu momento histórico sabe reconhecer o texto de lei que não guarda ligação com os anseios sociais, bastando a ele, em tal situação, retirar do sistema, principalmente da Constituição, os dados que lhe permitem decidir de modo a fazer valer o conteúdo do direito do seu tempo (MARINONI, 2000, p. 107-108)

Desta forma, o juiz é visto como um sujeito capaz de assegurar às partes uma decisão justa, baseando-se em suas convicções, já que está acima das partes. Defende-se que o magistrado chega a uma melhor análise da forma de condução, para que ao final a decisão justa seja tomada, decisão esta que deverá, acima de tudo, visar a vontade do Estado.

Diante disso, Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Quinaud Pedron tecem uma crítica à ideologia dos instrumentalistas:

Nunca é demais lembrar que a teoria axiológica, ora criticada, busca fugir da discricionariedade, mas acaba por se afundar ainda mais na mesma. Isto ocorre na medida em que, se as normas são tratadas como valores, elas viram questões de preferências (o que é preferível ao invés do que seja devido), ficando atreladas a uma racionalidade meramente INSTRUMENTAL. Portanto, a fundamentação das decisões judiciais pautada em argumentos jurídico-normativos (com vistas a um "acesso à Justiça" qualitativo) cai por terra, já que questões politicas (ou éticas, ou morais ou pragmáticas) podem sobrepor-se a questões jurídicas, no momento de aplicação do direito.(FERNANDES; PEDRON, 2008, p.168)

Coadunando com este entendimento, Oliveira critica todo este "poder" que foi colocado sob responsabilidade do magistrado:

[...] o direito, ao contrário do que defende a jurisprudência dos valores, possui um código binário, e não um código gradual: que as normas posam refletir valores, no sentido de que a justificação jurídico-normativa envolve questões não só acerca do que é justo para todos(morais), mas também acerca de o que é bom, no todo e a longo prazo, para nós (éticas) não quer elas sejam ou devam ser tratadas como valores. (...) as normas- quer como princípios, quer como regras – visam ao que é devido, são enunciados deontológicos: à luz de normas, posso dizer qual é a ação ordenada. Já os valores visam ao que é bom, ao que é melhor; condicionados a uma determinada cultura, são enunciados teleológicos: uma ação orientada por valores preferível. Ao contrario das normas, valores não são aplicados, mas priorizados. (OLIVEIRA, 1997, p.137)

Sendo assim, mostrou-se claramente frágil essa teoria na medida em que o juiz considerado como um "ser superior", capaz de identificar a melhor maneira para condução do processo, mostrava-se tendencioso a um pré-julgamento, retirando a segurança jurídica, tão importante para alcançar uma efetiva e justa decisão.

Verifica-se que a Teoria da Relação Jurídica e a Teoria Instrumentalista foram concebidas tomando como referência o falido paradigma do Estado Social, o que as tornaram falhas também. A necessidade da busca da paz social através da discricionariedade do juiz demonstra o paternalismo, comprovando-se a relação entre referidas teorias e o paradigma do Estado Social.

Destarte, necessita-se de uma nova visão do processo adequada ao novo paradigma constitucional trazido como solução para a crise do Estado Social: o Estado Democrático de Direito.

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5 TEORIA NEOINSTITUCIONALISTA: UMA ALTERNATIVA PARA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A crise do Estado Social exigiu o surgimento de um novo paradigma. A solução proposta foi o Estado Democrático de Direito, o qual foi apresentado formalmente no Brasil na Constituição da República de 1988.

A adequação de todos os ramos do direito ao novo modelo constitucional é indispensável. Por isso, o Direito Processual contemporâneo necessita de uma nova visão a respeito do processo compatível com o Estado Democrático de Direito.

Defendendo uma nova releitura do Direito, Menellick de Carvalho Netto assim dispõe:

Em qualquer tema que formos abordar no Direito, a questão da interpretação, sobretudo a da interpretação constitucional, é sempre uma questão central. Isso porque estaremos sempre falando da reconstituição do sentido de textos e, desse modo, uma noção básica é hoje requerida: a noção de paradigma, que abre inclusive a nossa Constituição, a do Estado Democrático de Direito. (CARVALHO NETTO, 2001, p. 220)

Uma alternativa trazida foi a Teoria Neoinstitucionalista do Processo formulada pelo Professor Rosemiro Pereira Leal. Trata-se, segundo o autor, de um entender pós-moderno sobre o instituto do processo.

Na pós-modernidade, o conceito de PROCESSO, como instituição, não se infere pelas lições de Maurice Harriou ou dos administrativistas franceses do século XIX ou posições sociológicas de Guasp e Morel, mas pelo grau de autonomia jurídica como se desponta no discurso de nosso texto constitucional. Trata-se de conquista histórica da cidadania juridicamente fundamentada em princípios e institutos de inerência universalizante e ampliativa, em réplica ao colonialismo dos padrões repressores de ‘centração psicológica e política’ dos chamados Estados hegemônicos (LEAL, 1999, p. 49).

Segundo a Teoria Neoinstitucionalista, o processo não pode ser concebido como mero instrumento, combatendo a Teoria Instrumentalista de Cândido Rangel Dinamarco surgida no contexto do Estado Social. A relação entre processo e jurisdição, para Rosemiro Pereira Leal, se estabelece de outra maneira.

[...] a jurisdição, face ao estágio da Ciência Processual e do Direito Processual, não tem qualquer valia sem o PROCESSO, hoje considerado no plano do direito processual positivo, como complexo normativo constitucionalizado e garantidor dos direitos fundamentais da ampla defesa, contraditório e isonomia das partes e como mecanismo legal de controle da atividade do órgão-jurisdicional (juiz) que não mais está autorizado a utilizar o PROCESSO como método, meio, ou mera exteriorização instrumental do exercício da jurisdição. (LEAL, 1999, p. 42)

O processo não é tido somente como procedimento em contraditório, consoante ao disposto pela Teoria de Fazzalari. Ressalte-se, inclusive, que Rosemiro Pereira Leal formula um novo conceito para o princípio do contraditório.

[...] o contraditório há de ser princípio regente (direito-garantia constitucionalizado) do procedimento e não atributo consentido por leis ordinárias processuais (codificadas ou não) ou dosado pela atuação jurisdicional em conceitos e juízos personalistas de senso comum, conveniência ou de discricionariedade (LEAL, 1999, p. 52).

O processo, segundo a Teoria Neoinstitucionalista, é um direito-garantia constitucional, balizado pelos princípios institutivos da ampla defesa e da isonomia, além do princípio do contraditório trazido pela Teoria Fazzalariana.

A elevação do processo a instituto constitucional demonstra a aproximação entre a Teoria de Leal e a Teoria Constitucionalista do Processo, desenvolvida no Brasil pelo professor José Alfredo de Oliveira Baracho.

No entanto, a Teoria Constitucionalista ainda não está ligada ao Estado Democrático de Direito, diferentemente da Teoria de Leal, sendo que esta última possui como característica peculiar a participação do povo.

O que distingue a teoria neo-institucionalista do processo que estamos a desenvolver da teoria constitucionalista que entende o processo como modelo construído no arcabouço constitucional pelo diálogo de especialistas (numa Assembléia ou Congresso Constituinte representativo do povo estatal) é a proposta de uma teoria da constituição egressa de uma consciência participativa em que o povo total da sociedade política é, por autoproclamação constitucional, a causalidade deliberativa ou justificativa das regras de criação, alteração e aplicação de direitos (LEAL, 2001, p. 95).

Diante do exposto, constata-se que a Teoria Neoinstitucionalista é a mais adequada ao Estado Democrático de Direito, sendo que Rosemiro Pereira Leal formulou o seu próprio conceito para esse paradigma constitucional.

Ora, se objetiva-se reformular o conceito de imparcialidade do juiz no contexto do Estado Democrático de Direito, a Teoria do Processo utilizada como referência também deve estar de acordo com os elementos desse paradigma.

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Sobre os autores
Diogo Henrique Dias da Silva

Pós-Graduado em Processo Civil no CEAJUFE. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais em Belo Horizonte. Advogado.

Thiago Gomes Coelho

Graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Bolsista do PROBIC (Programa de de Bolsas de Iniciação Científica) financiado pela FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Diogo Henrique Dias ; COELHO, Thiago Gomes. A imparcialidade do juiz no contexto do Estado Democrático de Direito.: Uma reconstrução possível?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2392, 18 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14200. Acesso em: 22 dez. 2024.

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