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A inconstitucionalidade do artigo 273 do Código Penal

24/01/2010 às 00:00
Leia nesta página:

Sumário:1. Introdução; 2. Princípio da Proporcionalidade; 3. O artigo 273 do Código Penal; 4. Considerações Finais; 5. Bibliografia.

Palavras-chave: Constituição; Princípios; Crimes; Proporcionalidade.


1 . Introdução.

Há vários anos, o Congresso Nacional vem legislando de acordo com a ocasião e freqüentemente de acordo com a mídia; exemplos claros foram a Lei nº 8.072/90 e a Lei nº 8.930/94 [01], leis do chamado "populismo judicial".

O mesmo fenômeno ocorreu com a Lei nº 9.677/98 [02]. Diante dos vários casos de falsificação de remédios ocorridos no ano de 1998 e do forte apelo da mídia, o Congresso Nacional, mais uma vez sem a necessária discussão, aprovou o absurdo jurídico que se transformaria no artigo 273 do Código Penal.

Transcorridos dez anos da edição da Lei nº 9.677/98, várias são as vozes que ecoam, requerendo que o Poder Judiciário declare inconstitucional o artigo 273 do Código Penal por contrariar o princípio constitucional da proporcionalidade.

A ofensa ao princípio da proporcionalidade não é o único problema do artigo 273 do Código Penal, pois a deficiência das configurações criminosas e o mau uso dos verbos são latentes. Porém, o estudo deste trabalho restringir-se-á tão-somente a ofensa ao princípio da proporcionalidade.

Antes de ser analisada a questão da inconstitucionalidade do citado diploma legal, faz-se necessária uma rápida explanação sobre o princípio já mencionado.


2 . Princípio da Proporcionalidade.

O princípio da proporcionalidade repousa implicitamente na Constituição Federal, art. 5º, inc. LIV, que cuida do devido processo legal.

Luiz Flavio Gomes, ao comentar o princípio da proporcionalidade, informa que este princípio implica que:

Toda intervenção penal, na medida em que constitui uma restrição da liberdade, só se justifica se: (a) adequada ao fim a que se propõe (o meio tem aptidão para alcançar o fim almejado); (b) necessária, isto é, toda medida restritiva de direitos deve ser a menos onerosa possível; (c) desde que haja proporcionalidade e equilíbrio na medida ou na pena. Impõe-se sempre um juízo de ponderação entre a restrição à liberdade que vai ser imposta (os custos disso decorrente) e o fim perseguido pela punição (os benefícios que se pode obter). Os bens em conflito devem ser sopesados [03].

Para o citado jurista, "tanto o legislador como o juiz acha-se limitado pelo princípio da proporcionalidade. E sempre que o legislador não cumpre referido princípio, deve o juiz fazer os devidos ajustes" [04].

Continuando a explanação sobre o princípio da proporcionalidade, o doutrinador Edson Ristow ensina que:

A proporcionalidade, como espécie do gênero Razoabilidade, constitui-se em princípio fundamental ou mesmo em elemento essencial no ordenamento jurídico brasileiro, pois que implica em interpretar e aplicar o Direito para fins de estabelecer proporções, no sentido de moderação. Deve-se compreender, igualmente, que a Proporcionalidade é um dos pilares do controle da constitucionalidade das leis em que qualquer limitação a direitos deve ser apropriada e exigível na justa medida [05].

Finalizando, importante lição é dada por Alberto Silva Franco, quando diz que:

O princípio da proporcionalidade, em sentido estrito, obriga a ponderar a gravidade da conduta, o objeto da tutela e a conseqüência jurídica. Trata-se, para empregar expressões próprias da análise econômica do Direito, de não aplicar um preço excessivo para obter um benefício inferior: se se trata de obter o máximo de liberdade, não poderão ser cominadas penas que resultem desproporcionadas com a gravidade da conduta [06]. Grifo nosso.

Diante do que foi exposto sobre o princípio da proporcionalidade, pode-se concluir que ele é essencial no momento de se analisar a constitucionalidade de qualquer norma jurídica.


3. O artigo 273 do Código Penal.

Antes da edição da Lei nº 9.677/98, o art. 273 do Código Penal tinha a seguinte redação: "Alterar substância alimentícia ou medicinal: Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa".

Com a modificação imposta pela citada lei, o artigo em questão prescreve o seguinte: "Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais. Pena - reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa".

Não bastasse isso, a Lei nº 9.695/98 incluiu o art. 273 do Código Penal no rol dos crimes hediondos, ou seja, o agente que alterar substância alimentícia ou medicinal agora passou a ter o mesmo tratamento dado a homicidas, traficantes, estupradores, entre outros.

Na verdade, o problema vai mais adiante. A Lei nº 9.677/98, além de aumentar desproporcionalmente a pena, incluiu os § 1º-A e o §1º-B ao artigo 273 do Código Penal. Estes parágrafos prevêem que está sujeito às mesmas penas do caput (reclusão, de 10 [dez] a 15 [quinze] anos, e multa) o agente que venha a importar, vender, expor a venda, ter em depósito para vender ou, de qualquer forma distribui ou entregar a consumo, produtos incluídos nos incisos do citado artigo.

Para se ter uma idéia do absurdo jurídico criado com o advento da Lei nº 9.677/98, hoje, se o agente introduzir (importar) produto destinado a fim medicinal sem o devido registro estará sujeito a uma pena de no mínimo dez anos de reclusão. Importante ressaltar que neste caso, o produto não precisa ter sido adulterado, pode estar em perfeitas condições, basta introduzi-lo sem o devido registro.


4. Conclusões.

Tendo sido feita uma pequena explanação sobre o princípio da proporcionalidade e sobre o artigo 273 do Código Penal, passar-se-á analisar a sua inconstitucionalidade.

Levando-se em consideração de que o princípio da proporcionalidade está previsto de forma implícita no art. 5º, inc. LIV, da Constituição Federal, conclui-se que todas as normas jurídicas no ordenamento jurídico brasileiro devem respeitar ao citado princípio, sob pena de serem consideradas inconstitucionais.

Para se ter uma idéia da desproporção entre a pena e o bem jurídico tutelado no art. 273 do Código Penal, será feita uma rápida análise de alguns dos piores crimes existentes no ordenamento jurídico brasileiro.

a) - homicídio simples. Para o crime previsto no art. 121 caput do Código Penal, cujo bem jurídico tutelado é a vida, a pena é de reclusão, de seis a vinte anos, ou seja, a pena mínima para este crime é quase a metade da pena mínima prevista para o crime do art. 273;

b) – roubo. Para o crime previsto no art. 157 caput do Código Penal, a pena é de reclusão, de quatro a dez anos, e multa, ou seja, a pena mínima para este crime é menor que a metade da pena mínima prevista para o crime do art. 273. Não bastasse, a pena máxima prevista para o crime do art. 157 é igual a mínima prevista para a do art. 273. Importante ressaltar que caso o agente seja primário e de bons antecedentes, mesmo que o roubo seja qualificado pelo emprego de arma de fogo (157, §2º, inc. I do CP), a pena máxima continuará sendo inferior a mínima prevista para a do art. 273.

c) – estupro. Para o repugnante crime previsto no art. 213 do Código Penal, a pena é de reclusão, de seis a dez anos, ou seja, mais uma vez, a pena mínima é menor que a prevista para o crime do art. 273, e a máxima, é igual a mínima prevista para a do art. 273.

d) – tráfico de drogas. Para o crime previsto no art. 33 da Lei nº 10.826/03, a pena é de reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos, ou seja, a pena mínima prevista para este crime, é metade da pena mínima prevista para o crime do art. 273.

Fazendo-se uma análise dos crimes acima descritos e o do art. 273 do Código Penal, percebe-se que um homicida, um assaltante (com emprego de arma de fogo) e um estuprador podem ser condenados a uma pena média de seis anos de reclusão; um traficante, a uma pena de cinco anos de reclusão; já a um comerciante que traga do exterior uma cartela de algum remédio para gripe (sem qualquer tipo de adulteração), sem o devido registro, a pena mínima imposta será de 10 anos de reclusão. Ademais, de acordo com o art. 273 do Código Penal, o comerciante que, no intuito de auferir mais lucro, altera quimicamente um frasco de xampu, será condenado à mesma pena de 10 anos de reclusão, o que se constitui num verdadeiro absurdo.

Ao comentar a "Lei dos Remédios", Miguel Reale Junior ensina o seguinte:

Não há interpretação que possa ser feita para conformar a norma aos valores e princípios constitucionais. A interpretação congruente com a Constituição tem limites, pois deve-se neste esforço, para salvar a norma, analisar as possibilidades de ambos os textos, o constitucional e o a ser conservado, de acordo com o tê-los de ambos. Com relação à norma do inc. I do §1º-B do art.273, bem como referentemente aos demais incisos, frustra-se a tentativa de conservação dos dispositivos, porque para tanto seria necessário impedir a realização absoluta dos valores e princípios constitucionais [07].

E continua o Autor.

A aberrante desproporção entre a gravidade do fato de vender (...) saneante sem registro e a gravidade da sanção cominada impõe que se reconheça como inafastável a inconstitucionalidade da norma penal do artigo 273, §1º-B, I, do CP, introduzido pela Lei 9.677/98 e do art. 1º da Lei 9.695/98, em virtude de lesão a valores e princípios fundamentais da Constituição. O mesmo ocorre com relação aos demais incisos, excetuando o já aludido inc. IV [08].

É importante deixar bem claro que não se defende a atipicidade das condutas previstas no art. 273 do Código Penal; porém, jamais o Direito pode permitir que uma conduta como a de alterar um xampu, ou importar um remédio sem registro, tenha como conseqüência uma pena maior que a de um homicídio, cujo bem jurídico tutelado é o maior de todos, a vida.

Além da farta doutrina, a jurisprudência também já vem dando sinais de que o art. 273 do Código Penal é inconstitucional.

De uma decisão monocrática do Estado do Paraná colhe-se o seguinte:

"Entendo que a Lei 9.677/98 padece do vício de inconstitucionalidade no ponto que cominou pena de reclusão de 10 (dez) a 15 (quinze) anos para a hipótese do §1º-B, inciso I, por violação ao princípio da proporcionalidade que exige que se faça um juízo de ponderação sobre a relação existente entre o bem que é lesionado ou posto em perigo (gravidade do fato) e o bem de que pode alguém ser privado (gravidade da pena). (...) Dessume-se que é inarredável a declaração de inconstitucionalidade da Lei 9.677/98 no que se refere ao também inconstitucional artigo 273, §1º-B, inciso I do Código Penal, por violação ao princípio da proporcionalidade e ofensividade, declaração esta que ora se faz" [09].

Da mesma forma, importante decisão foi dada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que em manifestação inédita, reconheceu que o art. 273 do Código Penal ofende o princípio da proporcionalidade.

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Naquela oportunidade o TRF4 não declarou inconstitucional o citado artigo, mas substituiu a pena do art. 273 pela do crime de tráfico de drogas, usando como fundamentação a analogia in bonam partem, pois este, assim como o do art. 273, tem como objeto jurídico tutelado a saúde pública, colhendo-se daquele julgado o seguinte.

"EMENTA. PENAL. FALSIFICAÇÃO, CORRUPÇÃO, ADULTERAÇÃO OU ALTERAÇÃO DE PRODUTO DESTINADO A FINS TERAPÊUTICOS OU MEDICINAIS. FORMA EQUIPARADA. ART. 273, § 1º-B, I, V E VI, DO CP. COMPETÊNCIA FEDERAL. INTRODUÇÃO EM TERRITÓRIO NACIONAL DE COMPRIMIDOS DE CYTOTEC. PENA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. REDUÇÃO. PARÂMETRO. DELITO DE TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. POSSIBILIDADE DE SUBSTITUIÇÃO". (Apelação Criminal nº 2001.72.00.003683-2/SC. Relator: Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz. Órgão Julgador. 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Porto Alegre-RS, 09 de fevereiro de 2005). Grifo nosso.

Desta forma, conclui-se que o crime descrito no art. 273 do Código Penal fere o princípio constitucional da proporcionalidade, sendo, portanto inconstitucional, já que "a desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, pois representam insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais" [10].

Finalizando, Aristóteles já dizia que "julgamento é a aplicação do que é justo", e certamente condenar alguém a uma pena de dez anos de reclusão por ter importado um medicamento sem o devido registro não é a melhor forma de se aplicar justiça [11].


5. Bibliografia.

ARISTÓTELES. A Política. Trad. Nestor Silveira Chaves, Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1987, 154 p.

BRASIL. Apelação Criminal nº 2001.72.00.003683-2/SC. Relator: Des. Federal Paulo Afonso Brum Vaz. Órgão Julgador. 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Porto Alegre-RS, 09 de fevereiro de 2005.

FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. São Paulo: RT, 2005, 668 p.

GOMES, Luiz Flávio. Limites do "Ius Puniendi" e Bases Principiológicas do Garantismo Penal. Material da 1ª aula da Disciplina Teoria do Garantismo Penal, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais - UNISUL – IPAN – REDE LFG. 21 p.

LEAL, João José. Crimes Hediondos. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2006, 621 p.

MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. 13 ed. São Paulo: Malheiros, 2001. 870 p.

NETO, Geraldo Dutra de Andrade. Juiz de Direito Substituto. Sentença proferida em 13 de Julho de 2004, autos 216/2004 da Comarca de Pato Branco-PR.

REALE, Miguel Jr. A Inconstitucionalidade da Lei dos Remédios. Revista dos Tribunais 763, São Paulo: RT, 1999.

RISTOW, Edson. Ética Função Jurisdicional Due Process Of Law e o Princípio da Razoabilidade. Itajaí: S&T Editores, 2007, 198 p.


Notas

  1. "Já mencionamos o fato de que a Lei 8.072/90 é filha natural da onda de seqüestros ocorrida no final dos anos 80, e a gota d’água para a sua aprovação pelo Congresso Nacional foi o seqüestro do empresário carioca Roberto Medina. Posteriormente, pressionado pelo movimento que se formou em torno do assassinato da atriz Daniela Perez, o legislador votou de afogadilho a Lei nº 8.930/94, que incluiu o homicídio no rol das infrações hediondos. (LEAL, João José. Crimes Hediondos. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2006 p. 164/165).
  2. Lei nº 9.677 de 02 de Julho de 1998. Modificou o artigo 273 do Código Penal.
  3. GOMES, Luiz Flávio. Limites do "Ius Puniendi" e Bases Principiológicas do Garantismo Penal. Material da 1ª aula da Disciplina Teoria do Garantismo Penal, ministrada no Curso de Especialização TeleVirtual em Ciências Penais - UNISUL – IPAN – REDE LFG. p. 20/21.
  4. Op. cit. p. 21.
  5. RISTOW, Edson. Ética Função Jurisdicional Due Process Of Law e o Princípio da Razoabilidade.. Itajaí/SC: S&T Editores, 2007 p. 88.
  6. FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. São Paulo: RT, 2005, p. 364.
  7. REALE, Miguel Jr. A Inconstitucionalidade da Lei dos Remédios. Revista dos Tribunais 763, São Paulo: RT, 1999, p.426.
  8. Op. Cit. p. 427.
  9. NETO, Geraldo Dutra de Andrade. Juiz de Direito Substituto. Sentença proferida em 13 de Julho de 2004, autos 216/2004 da Comarca de Pato Branco-PR.
  10. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. 13 ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p.230.
  11. A Política. Trad. Nestor Silveira Chaves, Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1987, p. 14 e 65.
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Sobre o autor
Wendel Laurentino

Advogado Criminalista, atuante na Comarca de Brusque-SC. Formado em direito pela Unifebe e Pós-Graduado no Curso de Especialização em Ciências Penais - UNISUL - REDE LFG – IPAN.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LAURENTINO, Wendel. A inconstitucionalidade do artigo 273 do Código Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2398, 24 jan. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14232. Acesso em: 18 abr. 2024.

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