Nos dias atuais, acirrou-se o debate acerca dos limites impostos ao uso de algemas no cotidiano policial. Tal discussão, em razão da recente edição, pelo Supremo Tribunal Federal, da Súmula Vinculante nº 11, extrapolou o meio policial e jurídico, ao repercutir amplamente na mídia.
Embora sejam objetos de uso corriqueiro das forças policiais, é inegável que, em muitos casos, lamentavelmente as algemas são empregadas com o intuito de expor o indivíduo detido a um constrangimento que vai além daquele naturalmente causado pela própria prisão. O instrumento, cuja função precípua é o de garantir a efetividade e segurança da medida privativa de liberdade, foi desvirtuado e passou a servir como fomentador da execração pública do preso, que, sabemos, deve ser considerado inocente até o trânsito em julgado de eventual sentença criminal condenatória.
Em casos recentes, restou evidente a utilização das algemas como forma de constrangimento moral, para exibição de presos como verdadeiros troféus ou meio de propaganda da eficiência policial, principalmente por tratar-se de investigações que obtiveram grande repercussão nos meios de comunicação e envolveram nomes de destaque.
A edição da Súmula teve como precedentes, também, casos de anulação de julgamentos pelo Tribunal do Júri, em que considerou-se que a opinião dos jurados, pessoas leigas, foi influenciada negativamente pela exibição do réu em plenário algemado, importando em uma espécie de "antecipação de culpa".
Evitando a polêmica em torno dos fatos motivadores da edição referida Súmula, apontada por muitos como instrumento de defesa de elites criminosas, pretende-se, com o presente trabalho, expor a fundamentação jurídica relativa ao uso das algemas, bem como orientar os colegas policiais quanto ao emprego legal das mesmas, sob a ótica do permanente respeito aos direitos humanos e primando pela lisura da atividade policial.
O legislador, na redação do art. 199 da Lei de Execuções Penais (Lei n.º 7.210/84), sinalizou para a necessidade de regulamentação expressa do uso de algemas, ao dispor:
"Art. 199 – O emprego de algemas será disciplinado por decreto federal."
E ressaltou no art. 40 daquele diploma legal:
"Art. 40 – Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios."
No entanto, em que pese a necessidade de diploma jurídico que regulamente expressamente o tema, passados quase trinta anos da entrada em vigor da LEP, referido decreto ainda não foi editado.
De qualquer forma, ao contrário do que se possa pensar, a edição da Súmula nº 11, cuja análise faremos ao final deste trabalho, não trouxe maiores inovações no tocante ao regramento do uso de algemas no País. Isto porque, de uma análise histórica e sistêmica do ordenamento jurídico pátrio, bem como da legislação internacional relativa aos direitos humanos, já se podia depreender a excepcionalidade desta medida contendora, senão vejamos.
O Código de Processo Penal atualmente em vigor, datado de 1941, prevê (grifos nossos):
"Art. 284 - Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso."
"Art. 292 - Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas."
Da simples leitura dos referidos artigos já é possível depreender o caráter de excepcionalidade da contenção por meio de algemas e do emprego da força, reservadas, segundo o CPP, apenas às hipóteses de resistência e tentativa de fuga do preso.
A seu turno, a Lei n.º 4.898, de 1965, que trata do abuso de autoridade, dispõe:
"Art. 4º Constitui também abuso de autoridade:
a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder;
b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei;" (grifos nossos).
Por óbvio, a prisão de qualquer indivíduo não pode causar-lhe mais constrangimento que o naturalmente inerente àquela medida. Assim, qualquer força empregada, inclusive por meio do uso de algemas, que extrapole a estritamente necessária a garantir segurança e a efetividade da prisão, torna-se ilegal, e sujeita seu executor às sanções pelo dano moral causado.
O Código de Processo Penal Militar, regulamentado pelo decreto-lei nº 1.002, de 1969, assim expõe (grifos nossos):
"Art. 234. O emprego de força só é permitido quando indispensável, no caso de desobediência, resistência ou tentativa de fuga. Se houver resistência da parte de terceiros, poderão ser usados os meios necessários para vencê-la ou para defesa do executor e auxiliares seus, inclusive a prisão do ofensor. De tudo se lavrará auto subscrito pelo executor e por duas testemunhas.
1º O emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido, nos presos a que se refere o art. 242.
2º O recurso ao uso de armas só se justifica quando absolutamente necessário para vencer a resistência ou proteger a incolumidade do executor da prisão ou a de auxiliar seu."
Aqui, o legislador voltou a ressaltar o caráter de excepcionalidade do emprego de algemas, subsistindo a legalidade da medida quando empregada para proteger a incolumidade física do executor da prisão.
Importante destacar, neste ponto, que as garantias consagradas no art. 5º da Constituição de 1988, bem como aquelas constantes em Tratados e normas internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário, estende-se também aos policiais em suas funções, visto a sua condição inerente de "humanos".
Embora tal assertiva seja aparentemente óbvia, cumpre esclarecer que ainda prevalece, principalmente entre as classes mais conservadoras e reacionárias da sociedade, a noção de que os direitos humanos só "servem" para proteger os "bandidos". Trata-se de uma visão deturpada, que estereotipa os defensores dos direitos humanos como defensores dos criminosos em detrimento dos cidadãos "de bem", inclusive dos policiais.
Ora, não é exigido que o policial, ao cumprir seu dever executando uma medida privativa de liberdade legalmente emanada, suporte agressões ou resistência por parte daquele que deve ser preso, legitimando-se perfeitamente, nestes casos, o emprego de algemas, como se verá adiante, quando da análise da Súmula nº 11.
Voltando aos instrumentos jurídicos pertinentes à matéria, vemos que a Declaração dos Direitos Humanos, assinada em 1948, já dispunha, ainda que de forma implícita, sobre o emprego de algemas, ao consagrar o princípio da dignidade e da presunção de inocência:
"Artigo V. Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante."
"Artigo XI. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa."
Vários outros Tratados internacionais consagram os referidos princípios, tais como o Pacto de San José da Costa Rica e a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, depreendendo-se de todos estes diplomas, por interpretação sistêmica, a excepcionalidade do uso da força e do emprego de algemas na execução de medida privativa de liberdade.
Como é sabido, a Carta Magna de 1988 abraçou tais princípios, erigindo-os à categoria de cláusulas pétreas, em razão de sua relevância. Assim temos (grifamos):
"Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
III – ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
[...]
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
[...]
XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
[...]
LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória."
Feitas estas considerações acerca da legislação vigente, voltemos à redação da Súmula nº 11, editada em 13/08/2008, para que esclareçamos as hipóteses em que o emprego das algemas será admitido:
"Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado" (grifos nossos).
Conforme se vê, o teor da súmula não guarda maiores discrepâncias com a legislação já vigente no país por ocasião de sua edição. Continuam previstos, como requisitos à utilização das algemas, a resistência, a possibilidade de fuga do preso e o risco à integridade física do executor ou do próprio preso.
A dificuldade maior que se vislumbra no subjetivismo contido na expressão "fundado receio" de fuga. Tanto aqui, quanto na expressão "perigo" à integridade física, está latente a idéia de previsibilidade da reação do preso, seja para fugir à medida, seja para resistir a ela agredindo o executor.
É claro que há casos em que essa previsão torna-se mais difícil, até porque não há como afirmar categoricamente que o indivíduo de perfil violento vá reagir à prisão, e nem que o indivíduo em tese mais pacífico, que praticou crime sem violência, não vá reagir, até porque o momento da prisão, invariavelmente, encerra grande carga de estresse, tanto para o executor quanto para o preso.
Certamente há situações no cotidiano policial em que o risco da não utilização de algemas é premente, como ocorre, por exemplo, na transferência de presos de um estabelecimento prisional a outro, bem como na condução dos presos até o Fórum por ocasião das audiências. Neste último caso, especialmente, a condução do preso sem algemas pode importar em sérios riscos às pessoas que transitam diariamente naquele local. Diante desses casos, digamos, limítrofes, espera-se que os julgadores tenham mais flexibilidade na análise da legalidade ou não da medida.
De qualquer forma, é importante que o policial, fazendo uso da discricionariedade – que não se confunde com arbitrariedade –, aja com bom senso, sempre pautado na observância dos direitos humanos. Conforme visto, não se exige do policial que tolere a fuga do preso e nem agressões a sua integridade física sem agir para contê-las. No entanto, não se pode admitir que a prisão de qualquer indivíduo seja pretexto para constrangê-lo moralmente, a ponto de fazer com que o preso se torne um objeto, e não sujeito de direitos. A Súmula foi editada com este fim, e sob esta ótica espera-se que os juízes decidam se houve abuso ou não.
Analisando a questão sob o prisma da técnica que deve nortear qualquer ação policial, mormente nas orientações relativas ao uso progressivo da força, podemos concluir que, muitas vezes, o mero comando verbal impositivo é suficiente para gerar a obediência do indivíduo que se pretende deter, principalmente quando há relevante superioridade numérica do grupo dos executores da medida. Portanto, se o comando verbal já gerou a obediência, e a possibilidade de fuga está minimizada, o emprego das algemas será abusivo.
Cumpre ressaltar que, conforme previsto pela Súmula, de nada adiantará que o policial, para satisfazer interesses pessoais ou institucionais, empregue indevidamente as algemas, uma vez que a própria prisão efetuada nessas condições poderá ser declarada nula, sem excluir a responsabilidade pelo dano moral causado e pelo abuso de autoridade cometido.
Em suma, se houver, dentro de uma análise discricionária pautada pelo bom senso e pela razoabilidade, sempre com o respeito aos direitos humanos, justificativas para o emprego das algemas, está autorizada a adoção da medida, que deverá ser justificada por escrito tão logo seja possível (no Boletim de Ocorrência ou na Comunicação de Serviço relativos à prisão).
Fora desses casos, a utilização de algemas constitui ilegalidade, que pode contaminar o próprio ato (prisão), bem como sujeitar o policial a sanções civis e criminais em razão do abuso.