5 - Taxa de Saúde Suplementar: Criptoimposto sobre
contrato de assistência à saúde.A doutrina e a jurisprudência brasileiras, admitindo a dificuldade prática de avaliar o real custo das diligências ou do serviço para a Administração, optam pela teoria da "razoável equivalência" entre o valor do tributo cobrado e o custo da atividade estatal. Por este raciocínio, há margem de liberdade deixada pelo constituinte ao legislador ordinário para escolher o critério de cálculo da taxa, desde que não se torne flagrantemente desproporcional ou desarrazoado. A este conceito, que limita a decisão política do instituidor do tributo, parte da doutrina dá o nome Princípio da Modicidade, expressão aplicável às taxas do Princípio da Capacidade Contributiva, que decorre, por sua vez, da Isonomia de todos os particulares perante o Estado. Não obstante, os tribunais superiores têm reiteradamente julgado a inconstitucionalidade de taxas que, nas palavras de Misabel Derzi: "constituem-se em criptoimpostos, disfarçados como pseudotaxas, sempre que essas forem estabelecidas com base de cálculo em metros, hectares, toneladas ou outras unidades que procurem medir a produção, renda ou patrimônio do contribuinte" (10). Expomos abaixo exemplos de julgados que repeliram taxas quando estas procuravam invadir competência própria de impostos:
"Impossibilidade de a taxa de conservação e serviços de estradas municipais ter como base de cálculo o número de hectares e outros fatores básicos usados para o cálculo do Imposto Territorial Rural." (RE 180.280)
"Taxa de conservação de estradas de rodagem. Município de Ibirá. Lei Municipal 570/77. Inconstitucionalidade. Base de cálculo divorciada do fato gerador de taxa, qual seja, o critério de mensuração do serviço prestado com exclusivo índice em áreas imóveis rurais importa o desvirtuamento daquele tributo, transformando-o em verdadeiro imposto sobre o patrimônio. " (RE 92.142-7/SP, 1ª turma)
"Tributário. Taxa de Licenciamento de Importação. Leis ns. 2.145/73 E 7.690/88. DL n. 37/66 (art. 2.).1 - A Taxa de emissão de guia de importação, cuja cobrança e exigida pelo art. 1. da Lei n. 7.690/89, tem a mesma base de calculo de imposto de importação, isto é, o valor do produto ou mercadoria importada.
2 - A referida exigência tributaria, alem de se apresentar absolutamente inadequada a sua finalidade de cobrar exercício de poder de policia, não tendo o seu valor fixado com base no custo do serviço, não pode ter como base de calculo o valor de guia de importação, em razão do teor do art. 77, do CTN.(...)"
(Resp 82.390/ES, DJ 01/04/96)
Fica mais evidente a inconstitucionalidade de taxas quando a base de cálculo escolhida é idêntica à de imposto já existente. Todavia, a inconstitucionalidade deve ser repelida não só nestes casos, mas também quando o Estado, inovando em suas técnica de arrecadação, cria tributo inusitado, de validade duvidosa ainda se estabelecido como imposto, sobremaneira quando disfarçado em pele de taxa. Ao julgar taxa de renovação de licença para localização, estabelecida pela Municipalidade de São Paulo, o Supremo Tribunal Federal considerou que a base de cálculo elegida afrontava o CTN e a Constituição, por ser absolutamente alheia à atividade de fiscalização:
"TAXA DE LICENÇA DE RENOVAÇÃO. BASE DE CÁLCULO: NÚMERO DE EMPREGADOS. DESCABIMENTO. Tem sido decidido no Supremo Tribunal Federal que não é cabível a cobrança de taxa de renovação de localização tendo como base de cálculo o número de empregados da empresa." (RE 109941-1/SP; DJU 27/06/86)
Ao relatar Recurso Extraordinário contra a cobrança do mesmo tributo, o Ministro Marco Aurélio de Mello expôs com cristalina clareza o cerne da questão:
"(...) Em se tratando de taxa, a base de cálculo há de estar ligada ao custo operacional da administração. O fato de contribuinte ter número maior ou menor de empregados não é molde de oscilação, à fixação valorativa do tributo. Descabe emprestar à taxa contornos que a transmudem em verdadeiro imposto, e, o que é pior, considerado o número de empregados deste ou daquele estabelecimento. A experiência que me vem de longos anos na Justiça do Trabalho revela que não se chegou ainda à criação deste imposto que é alusivo à manutenção, em si, do liame empregatício com variação de valor, segundo o número de contratos existentes. Possível pragmatismo, facilidade para o fisco, não pode levar à descaracterização do tributo, emprestando-lhe parâmetros de todo impróprios.
(...) O que exsurge, a mais não poder, é a capacidade criativa, na busca de receita, do fisco. Glosada a forma de cálculo a partir da metragem quadrada do estabelecimento, engedrou, de maneira no entanto discrepante da ordem jurídico-constitucional, o cálculo a partir do número de empregados do contribuinte. Indaga-se, qual a relação entre este fato e o custo da renovação de licença de um certo estabelecimento? A resposta é, desenganadamente, negativa." (RE nº 196922-9 /SP; DJ 20/06/97)
Como bem indica o precedente, a tributação por taxa em função do número de contratos firmados, afronta a Teoria do Direito Tributário (o que por si só não quereria dizer nada) e, principalmente, a Constituição Federal. Pela sua característica de retributividade, as taxas (em especial as taxas de serviço) são instituídas como tributo fixo, pois é possível a priori estimar qual o custo que aquela atividade estatal trará. Por sua vez, os impostos, com raríssimas exceções, são tributos proporcionais, com alíquota ad valorem, pois esta forma de apuração do montante devido se adequa melhor ao Princípio da Capacidade Contributiva.
Ao instituir modalidade de Taxa de Saúde Suplementar como um tributo proporcional de alíquota técnica, o legislador tentou esconder, sob o manto de taxa, um novo e inusitado imposto, incidente sobre às atividades dos planos de saúde. Ora, tributar pelo número de associados eqüivale a onerar a operadora para cada contrato firmado (ressalvadas as exclusões da base de cálculo mencionadas no § 1º do artigo 20), o que não lhe permite a Constituição.
A destinação do novo tributo seria "formar o caixa" das despesas genéricas da autarquia, mesmo estando tal receita absolutamente em desacordo com o Poder de Polícia que a justifica, prática que, infelizmente, se verifica com freqüência na legislação de órgãos de fiscalização.
6 - Conclusão
As operadoras de planos de saúde, como bem colocado na legislação, oferecem "produtos de assistência à saúde", e contratam, ou com o público em geral, ou na forma de planos decorrentes de cláusula do contrato de trabalho, restrito aos empregados de determinada empresa. Em ambos os casos, o produto oferecido (plano de saúde) é um negócio jurídico, onde a operadora recebe recursos para que mantenha a estrutura necessária a prestação de assistência à saúde, existindo ou não finalidade de lucro.
A ação da ANS destina-se a definir normas globais para a atividade de assistência suplementar à saúde, e garantir seu cumprimento pelas operadoras. Os objetos de fiscalização da ANS, listados anteriormente, podem assim resumir-se: a qualidade dos serviços de assistência à saúde oferecidos; a estrutura de atendimento ao segurado; e as práticas contratuais de cobertura e de preços pelas operadoras, em relação aos associados como um todo, ou em relação a categorias destes, agrupados pelas cláusulas contratuais (produtos) a eles aplicáveis. Em nenhum momento está entre suas atribuições fiscalizar individualmente o tratamento dado a cada um dos segurados, o que não seria sequer possível. O papel da ANS é o de fiscalização global da conduta das empresas de assistência suplementar à saúde, visando, em particular, o cumprimento da Lei 9.656/98.
A Taxa de Saúde Suplementar, portanto, não pode eleger como base de cálculo o número de associados, pois não é esta a forma que tomam as diligências que precedem os atos de polícia praticados que ensejam a cobrança de taxa. O tributo que se pretende cobrar não encontra fundamento de validade no ordenamento brasileiro, podendo os contribuintes valerem-se da via judicial para ver resguardado o direito de não se submeter a exação abusiva.
NOTAS
1 - A lei 9.961/00 está disponível no site da Presidência da República, no endereço: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Leis/L9961.htm; a lei 9.656/98 está disponível no endereço http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Leis/L9656.htm.
2 - "Taxa pelo exercício de Poder de Polícia - Fato Gerador - base de cálculo" (in Revista de Direito Administrativo nº 102, p. 474).
3 - Curso de Direito Tributário, p. 208; Ed. Saraiva, 1985.
4 - Celso Antônio Bandeira de Mello, ao discorrer sobre as formas de intervenção estatal, afirma que: (O Poder de Polícia) "É negativo no sentido de que através dele o Poder Público não pretende uma atuação do particular; pretende uma abstenção. Por meio dele não se exige nunca uma facere , mas um non facere . Por isso mesmo, (...) deve-se dizer que a utilidade pública é conseguida de modo indireto pelo poder de polícia, em contraposição à obtenção direta de tal utilidade, obtida pelos serviços públicos."
"O que os aparta nitidamente, então, é, de um lado, o alcance direto ou indireto da utilidade coletiva, e, de outro lado, a circunstância, de que enquanto os serviços públicos se traduzem em prestações de utilidade ou comodidade oferecidas pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, o Poder de Polícia corresponde a uma prestação estatal que não corresponde a outra coisa senão uma abstenção de particulares." (Apontamentos sobre o Poder de Polícia, in Revista de Direito público nº 9, p. 55)
5 - Curso de Direito Constitucional Tributário, p. 367, 12ª edição; Malheiros, 1999.
6 - Enciclopédia Saraiva do Direito, p. 8, vol. 62; Saraiva, 1976 (em texto formulado em conjunto pela comissão redatora da obra ).
7 - Idem, Ibidem.
8
- Antônio Maurício da Cruz, na obra IPI - Limites Constitucionais (Ed. Revista dos
Tribunais, 1984), afirma:
"Cumpre desvendar, pois, o conceito jurídico de produto
industrializado, que não pode ser um bem qualquer, uma simples mercadoria, já que
isto esvaziaria o adjetivo industrializado."
"Não pode se confundir com produto natural, isto é, com
algo construído apenas pela força da natureza, simplesmente colhido pelo homem em
qualquer dos reinos, mineral, animal, ou vegetal." ( ... )
"Produtos industrializados, ou seja, não daqueles bens
obtidos diretamente na natureza, surgidos ali pela ação predominante da própria ordem
natural, mas, sim obtidos pelo esforço humano aplicado sobre bens móveis quaisquer, em
qualquer estado, com ou sem uso de instalações ou equipamentos. Haverá produto
industrializado se, do esforço sobre o bem móvel, resultar acréscimo ou alteração de
utilidade, pela modificação de qualquer de suas características."
9 - Notas ao livro Direito Tributário Brasileiro, p.553; Forense, 1999.
10 - Curso de Direito Administrativo, p. 515, 10ª edição; Malheiros, 1998.