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O estabelecimento empresarial e suas repercussões jurídicas

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16/02/2010 às 00:00
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8. A sucessão empresarial decorrente do trespasse

A transferência do estabelecimento empresarial produz uma série de efeitos obrigacionais, dentre os quais destacam-se aqueles que atingem as dívidas contraídas pelo empresário alienante e sua transferência ao empresário adquirente, caracterizando-se a sucessão empresarial. Portanto, há sucessão empresarial quando o empresário adquirente responde pelas dívidas referentes ao estabelecimento empresarial contraídas pelo empresário alienante.

O Código Civil de 2002 disciplina a sucessão empresarial no art 1.146:

"Art. 1.146. O adquirente do estabelecimento responde pelo pagamento dos débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabilizados, continuando o devedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de um ano, a partir, quanto aos créditos vencidos, da publicação, e, quanto aos outros, da data do vencimento"

O contrato de trespasse não pode excluir ou limitar a responsabilidade do empresário adquirente pelas dívidas do estabelecimento empresarial adquirido. O art. 1.146 do Código Civil não admite exceção, tem natureza cogente, não havendo espaço para a autonomia de vontade das partes restringir os interesses dos credores. Cláusula que contraria o disposto no art. 1.146 não terá validade.

A sucessão empresarial está disciplinada pelo Código Civil brasileiro de forma semelhante à prevista no direito italiano, conforme se observa pelo conteúdo do art. 2.560, in verbis:

"2.560. Debiti relativi all’azienda ceduta – L’alienante nom è liberato daí debiti, inerenti all’esercizio dell’azienda ceduta anteriori al trasferimento, se non risulta che i creditori vi hanno consentito (1273).

Nel transferimento di un’azienda comerciale risponde dei debiti suddetti anche l’acquirente dell’azienda (2112) se essi risultano daí libri contabili obbligatori (2214-2220;Trans.220)."

(CODICE CIVILE, 2007, p.409)

De acordo com o Codice Civile, o empresário adquirente do estabelecimento torna-se solidariamente responsável com o empresário alienante pelas dívidas da azienda, desde que elas se encontrem regularmente escrituradas nos livros comerciais obrigatórios. No direito italiano, o empresário adquirente assume a responsabilidade pelas dívidas regularmente escrituradas, mas, elas não são transferidas para ele, salvo se o contrato de trespasse assim determinar. Portanto, no silêncio contratual, o empresário alienante é o principal obrigado pelas dívidas do estabelecimento, respondendo o adquirente de forma solidária pelo seu pagamento. Entretanto, esse entendimento não é pacífico no direito italiano, alguns doutrinadores atribuem ao empresário adquirente do estabelecimento a qualidade de devedor principal (FÉRES, 2007, p.110).

No Código Civil brasileiro, o empresário adquirente responde pelas dívidas regularmente escrituradas referentes ao estabelecimento empresarial negociado, ficando o empresário alienante responsável por essas dívidas de forma solidária com o adquirente, mas, por tempo limitado. De acordo com o art. 1.146 do CC 2002, o empresário adquirente é o devedor principal pelas dívidas do estabelecimento adquirido, respondendo o alienante de forma solidária pelo tempo limitado de um ano contado do vencimento ou da publicação, conforme se trate de dívida vincenda ou vencida.

Durante o prazo legal, os credores podem responsabilizar o empresário adquirente e o empresário alienante do estabelecimento. Após o prazo previsto de um ano (do vencimento da dívida ou da publicação do trespasse, conforme o caso), apenas o empresário adquirente pode ser responsabilizado pelas dívidas do estabelecimento. Embora a previsão legal demonstre a preocupação do legislador com os interesses dos credores, a limitação temporal da responsabilidade do alienante pode gerar uma situação prejudicial aos credores do estabelecimento, conforme observa Marcelo Andrade Féres em obra específica sobre o tema:

"Imagine-se, por exemplo, uma sociedade empresária que aliena um de seus quatro estabelecimentos para outra pessoa jurídica, cujo patrimônio se limita à universalidade em negociação. Na espécie, após o decurso do prazo decadencial de sobrevida da responsabilidade do trespassante – sociedade abastada -, os credores serão prejudicados pela disposição da lei. Perceba-se, assim, que a opção do Código Civil pela transmissão do estabelecimento com todas as suas vicissitudes para o trespassário, episodicamente, pode acarretar situação prejudicial aos credores, embora ela pretenda resguardá-los"

(FÉRES, 2007, p.114)

As dívidas comuns que não se encontrem regularmente escrituradas não são de responsabilidade do empresário adquirente, que não teve oportunidade de conhecer sua existência, pela ausência na escrituração ou pela sua irregularidade. O empresário adquirente, nos termos do art. 1.146 do CC 2002, assume responsabilidade nos limites da escrituração apresentada pelo empresário alienante. As dívidas existentes que não fazem parte da escrituração apresentada ao adquirente, são de responsabilidade do empresário alienante. Referido entendimento, entretanto, permite adequações diante da comprovação de elementos indicativos de fraude contra credores, hipótese em que o adquirente pode ser responsabilizado.

Cumpre ressaltar que o art. 1.146 do CC 2002 aplica-se às dívidas comuns, não abrange as dívidas trabalhistas e tributárias, que possuem tratamento legal específico. Caracterizam-se como dívidas comuns, por exemplo, aquelas ligadas aos parceiros comerciais (fornecedores de matéria-prima, de embalagem, campanhas publicitárias) e também as de natureza financeira (empréstimos bancários, contratos de leasing, financiamento). Nas outras hipóteses de sucessão empresarial, a responsabilidade do adquirente por obrigações do alienante decorre da lei trabalhista e fiscal, não se exigindo nesses casos a regular contabilização da dívida para fins de responsabilização do adquirente em relação aos passivos tributários e trabalhistas.

O art. 448 da CLT dispõe que mudanças na propriedade da empresa não afetam os contratos de trabalho existentes, possibilitando ao empregado duas opções: a de demandar o antigo proprietário do estabelecimento empresarial em que trabalhava, ou o atual. Em qualquer hipótese, o empresário não poderá opor-se à pretensão do empregado, com base no contrato de trespasse, já que elas geram efeitos apenas entre os empresários participantes do negócio. Assim, se o adquirente é responsabilizado perante antigo empregado do alienante, e por meio do contrato de trespasse, não havia expressamente assumido o passivo trabalhista dele, terá direito de regresso para se ressarcir do prejuízo.

No que se refere ao passivo fiscal com base no art. 133 do CTN, distinguem-se duas situações: se o alienante deixa de explorar qualquer atividade econômica; ou se continua a exploração de alguma atividade (não importando o gênero) nos seis meses seguintes à alienação. O art. 133 do CTN prevê:

"A pessoa natural ou jurídica de direito privado que adquirir de outra, por qualquer título, fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial ou profissional, e continuar a respectiva exploração, sob a mesma ou outra razão social ou sob firma ou nome individual, responde pelos tributos, relativos ao fundo ou estabelecimento adquirido, devidos até a data do ato:

I. Integralmente, se o alienante cessar a exploração do comércio, indústria ou atividade,

II. Subsidiariamente com o alienante, se este prosseguir na exploração ou iniciar dentro de 6 (seis) meses, a contar da data da alienação, nova atividade no mesmo ou em outro ramo de comércio, indústria ou profissão".

Perante o fisco são inoponíveis também os termos do contrato de trespasse, que apenas eventualmente podem fundamentar o direito de regresso.

Em matéria de sucessão empresarial, ressalta-se o tratamento atribuído pela Lei de Falência e Recuperação de Empresas aos casos de aquisição judicial de estabelecimento do devedor em crise em processos de recuperação judicial e de falência, em que a responsabilidade do adquirente pelas dívidas referentes ao estabelecimento adquirido, inclusive as de natureza tributária e trabalhista, foi afastada (art. 60, parágrafo único e art. 141, II, Lei n° 11.101/2005).

No âmbito da recuperação judicial de empresa, se o plano de recuperação aprovado abranger a alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor, o juiz ordenará a sua realização na forma do art. 142 da LF (leilão com lances orais, propostas fechadas ou pregão), sendo que o objeto da alienação encontra-se livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária (art. 60, LF).

Na falência, o art. 141, I, dispõe que todos os credores se sub-rogam no produto da realização do ativo, de forma que o bem adquirido está isento de responder por dívidas do falido. O inciso II do referido artigo prevê que na alienação conjunta ou separada de ativos, inclusive da empresa ou de suas filiais, o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, as derivadas da legislação do trabalho e as decorrentes de acidentes de trabalho.

No âmbito tributário, a aplicação de referidos dispositivos tornou-se possível diante da alteração do art. 133, CTN, pela Lei Complementar 118, de 09 de fevereiro de 2005, que acrescentou um §1° ao artigo, in verbis:

"§1°. O disposto no caput deste artigo não se aplica na hipótese de alienação judicial: I – em processo de falência; II – de filial ou unidade produtiva isolada, em processo de recuperação judicial".

Foi incluído também o §2° ao art. 133, prevendo que a isenção do §1° não se aplica quando o adquirente for sócio da sociedade falida ou em recuperação judicial, ou sociedade controlada pelo devedor falido em recuperação judicial, ou ainda parente em linha reta ou colateral até o 4° grau, consanguíneo ou afim, do devedor ou qualquer de seus sócios, ou ainda para aquele identificado como agente do falido ou devedor em recuperação judicial, com o objetivo de fraudar a sucessão tributária.

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O art. 133 também recebeu o acréscimo do §3°:

"Em processo de falência, o produto da alienação judicial de empresa, filial ou unidade produtiva isolada permanecerá em conta de depósito à disposição do juízo da falência pelo prazo de 1 ano, contado da data da alienação, somente podendo ser utilizado para o pagamento de créditos extraconcursais ou de créditos que preferem ao tributário".

Em relação à sucessão trabalhista, certamente encontrará severa resistência da justiça especializada do trabalho, diante da natureza alimentar do crédito trabalhista, conforme se verificou no caso da recuperação judicial da Varig. Entretanto, é necessário lembrar que um dos grandes temores de quem arremata um bem em juízo é tornar-se sub-rogado nos ônus incidentes sobre o bem. Como incentivo à existência de interessados na compra, a lei afasta o bem de quaisquer ônus ou sucessão, blindando-o.

Para evitar fraudes, o §1°, art. 141, da Lei n° 11.101/2005 afasta essa blindagem quando a aquisição tenha sido feita por pessoas próximas ao devedor: sócio da sociedade falida, ou sociedade controlada pelo falido; parente, em linha reta ou colateral até o quarto grau, consanguíneo ou afim (por afinidade), do falido ou de sócio da sociedade falida; identificado como agente do falido com o objetivo de fraudar a sucessão. Nesta lista, embora a legislação não preveja, devem ser incluídos o cônjuge e o companheiro do falido ou de seus sócios.


9. Cláusula de não-restabelecimento (interdição da concorrência)

O alienante do estabelecimento empresarial que se restabelece em concorrência com o adquirente, em geral atrai para o novo local de seus negócios a clientela que formou no antigo. Ulhoa destaca que o desvio de clientela na atualidade deve-se menos ao contato pessoal entre o consumidor e o empresário e mais às informações que o empresário alienante detém sobre a realidade do mercado em que opera (COELHO, v.1, 2007, p.101).

Como o adquirente pagou ao alienante um valor baseado no aviamento do estabelecimento, e não na simples soma dos bens que o compõem, o restabelecimento do alienante importa prejuízo ao adquirente, podendo caracterizar enriquecimento indevido, daí a razão da cláusula de não-restabelecimento, que tem por finalidade impedir que o empresário alienante se restabeleça em concorrência com o adquirente (na mesma atividade, em local que disputam a mesma clientela e nos 5 anos seguintes ao trespasse).

A cláusula de não restabelecimento, também denominada de cláusula de interdição da concorrência, constitui uma obrigação de não fazer assumida contratualmente pelo empresário alienante do estabelecimento que se compromete a não concorrer com o empresário adquirente. São fundamentos para a previsão legal da cláusula de não restabelecimento: o princípio da boa-fé na execução dos contratos (art. 422, CC 2002), o princípio da equidade e da concorrência leal.

De acordo com o caput do art. 1.147 do CC 2002, baseado no art. 2.557 do Codice Civile, se o contrato de trespasse é omisso em relação ao restabelecimento, presume-se no direito brasileiro implícita a cláusula de não restabelecimento pelo prazo de 5 (cinco) anos seguintes ao trespasse:

"Art. 1.147. Não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subsequentes à transferência."

Em razão do art. 170, Constituição Federal de 1988, a cláusula de não restabelecimento deve apresentar limites materiais (ramo de atividade), territoriais (âmbito geográfico) e temporais (prazo de não concorrência) para não ofender os princípios constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência. A cláusula de não restabelecimento que vede a exploração de qualquer atividade econômica ou não estipule restrições temporais ou territoriais não gera o efeito pretendido pelas partes.

Marcelo Andrade Féres destaca que além dos elementos temporal, territorial e material, a cláusula de não restabelecimento deve indicar o elemento pessoal, que se refere às partes signatárias do trespasse. De acordo com o caso concreto, mostra-se oportuna a vedação da concorrência sobre outras pessoas, como os administradores e sócios controladores da sociedade empresária alienante do estabelecimento, vedação que se estende aos seus herdeiros e cônjuges (FÉRES, 2007, p.159).

De acordo com o art. 2.557 do Código Civil italiano, se o contrato de trespasse indica um prazo maior que 5 anos ou esse prazo não é previsto, a interdição da concorrência vale pelo período de cinco anos da transferência. O mesmo artigo ainda prevê que a cláusula de interdição da concorrência prevista em limites mais amplos que os materiais ou geográficos é válido, desde que não impeça toda e qualquer atividade profissional do alienante, entretanto, não pode exceder o prazo de 5 anos da transferência.

A legislação brasileira não estabeleceu um limite temporal máximo para o não restabelecimento do empresário, o prazo de 5 anos previsto no art. 1.147 do Código Civil está previsto para os casos em que o contrato de trespasse não trata da questão, servindo de referência.

Diante da lacuna legal, admite-se a possibilidade do contrato de trespasse estabelecer um limite temporal superior ao prazo de 5 anos, desde que exista uma compensação econômica ao empresário alienante e não exista ofensa ao princípio constitucional da livre iniciativa. Conforme se observa, a questão exige a análise cautelosa do caso concreto para verificar a validade do excesso de prazo previsto. De qualquer forma, havendo a configuração das hipóteses previstas no art. 54 da Lei n° 8.884/1994, o ato deve ser submetido à apreciação do CADE.

O art. 1.147 do CC 2002 permite o afastamento da cláusula de não restabelecimento pela vontade das partes, desde que expressa no contrato de trespasse. O restabelecimento do alienante em concorrência com o adquirente somente é possível se o contrato de trespasse apresentar cláusula de autorização expressa. Omisso o contrato, presume-se vedado o restabelecimento do empresário alienante pelo prazo de 5 anos.

Na hipótese de violação da cláusula de não restabelecimento pelo empresário alienante, o empresário adquirente poderá promover execução específica de obrigação por meio da Ação Cominatória prevista no art. 461 do Código de Processo Civil, que permite a fixação de multa diária (astreintes) para coibir a continuação da concorrência vedada. Se ao descumprimento da cláusula de não restabelecimento somarem-se outras condutas caracterizadoras de concorrência desleal, o empresário alienante também poderá sofrer sanções penais, diante da configuração de crime de concorrência desleal (art. 195, Lei n° 9.279/1996).

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Sobre o autor
Marcelo Gazzi Taddei

Advogado na área do Direito Empresarial. Parecerista. Administrador judicial em processo de Recuperação Judicial. Professor de Direito Empresarial, Direito do Consumidor e Direito Civil I na UNIP de São José do Rio Preto (SP). Professor da Escola Superior de Advocacia - ESA de São José do Rio Preto (SP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TADDEI, Marcelo Gazzi. O estabelecimento empresarial e suas repercussões jurídicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2421, 16 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14366. Acesso em: 28 mar. 2024.

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