A Constituição da República estabelece em seu artigo 150, inc. VI, "d", a também denominada imunidade de imprensa, cuja finalidade é preservar os valores relativos à difusão de cultura, livre manifestação do pensamento e acesso à informação, espraiados no texto constitucional. O referido dispositivo está insculpido da seguinte maneira:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...)
VI - instituir impostos sobre: (...)
d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão. (Grifei.)
A questão a ser enfrentada consiste em definir, num contexto jurídico, o conteúdo semântico do substantivo livro, previsto na norma imunitária. Compreenderia ele apenas os livros impressos ou comportaria uma contextualização para abranger também os meios que veiculam informações de modo não impresso, como os CD-ROMs, intitulados "livros eletrônicos"?
O tema é controvertido. Para Ricardo Lobo Torres livro é o suporte físico impresso em papel, com a finalidade espiritual de criação de bem cultural e educativo. Prende-se o jurista na expressão "e o papel destinado a sua impressão", que, do seu ponto de vista, restringiria o conceito de livro apenas aos impressos, rechaçando os eletrônicos. [01]
A maioria da doutrina, no entanto, confere ao substantivo uma interpretação ampliativa, ligada a uma maior concretização dos valores que a regra imunizante almeja consagrar. Autores como Regina Helena Costa, [02] Roque Carraza, [03] Luciano Amaro [04] e Eduardo de Moraes Sabbag [05] entendem que os livros eletrônicos também merecem o privilégio da imunidade, porquanto possibilitam uma maior concreção da ampla difusão de cultura, da livre manifestação do pensamento e de acesso à informação. Seria irrelevante, para fins de definição do tratamento fiscal ao qual se submetem os livros, a natureza do material de que são feitos os mesmos, se papel ou por meio digital.
A jurisprudência não se firmou precisamente quanto ao tema. O e. Supremo Tribunal Federal não se posicionou especificamente quanto aos "livros eletrônicos", porém sua jurisprudência caminha no sentido de conferir a imunidade apenas ao papel necessário à confecção dos livros. Nesse sentido a Súmula 657 do STF, que tem o seguinte enunciado: A imunidade prevista no art. 150, VI, "d", da Constituição Federal abrange os filmes e papéis fotográficos necessários à publicação de jornais e periódicos.
Confiram-se, ainda, os seguintes julgados do Pretório Excelso:
Imunidade conferida pelo art. 150, VI, d da Constituição. Impossibilidade de ser estendida a outros insumos não compreendidos no significado da expressão ‘papel destinado à sua impressão’. Precedentes do Tribunal. (RE 324.600-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 3-9-02, DJ de 25-10-02). No mesmo sentido: RE 244.698-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 7-8-01, DJ de 31-8-01. (Grifei.)
Em alguns Tribunais Regionais Federais em que a matéria foi enfrentada há uma tendência a considerar imunes os "livros eletrônicos". É o caso da 3ª e da 4ª Região, conforme demonstram, respectivamente, os seguintes julgados:
CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE. IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. TINTA E ROLOS DE FILMES FOTOGRÁFICOS PARA IMPRESSÃO DE LIVROS REVISTAS E PERIÓDICOS. ARTIGO 150, VI, "D" DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL - ILEGALIDADE DA EXIGÊNCIA.
1. Discute-se o direito ao desembaraço aduaneiro de tinta de impressão e rolos de filme fotográfico, destinados à impressão de livros, revistas e periódicos, sem o pagamento dos impostos exigidos, fundamentada na imunidade consagrada no artigo 150, inciso VI, alínea "d", da Constituição Federal.
2. Não restam dúvidas que a Constituição Federal, ao inserir uma regra de imunidade para o livro, o jornal, o periódico, bem como o papel destinado a sua impressão (este sendo o papel de imprensa) quis prestigiar a liberdade de imprensa e o acesso à cultura, como uma das formas de garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, apoiando e incentivando a difusão das manifestações culturais, insertas no artigo 215, da magna Carta.
3. A imunidade como uma regra de competência negativa deve alcançar as situações específicas delimitadas pelo próprio texto constitucional, pois, nesse contexto, se compatibiliza com os demais princípios que a Constituição consagrou.
4. A evolução jurisprudencial sobre o tema, se inclina para uma interpretação restritiva da imunidade conferida pela Constituição Federal aos livros, aos jornais, aos periódicos, bem como aos papéis destinado a sua impressão, limitando-a e não a estendendo.
5. A questão ainda não é pacífica, a doutrina se posta pela abrangência do tema, enquanto a jurisprudência se divide. Porém, o entendimento prevalente e atual do Supremo Tribunal Federal, é no sentido de que a imunidade consagrada pelo art. 150, VI, "d", da Constituição Federal, deve se restringir aos elementos de transmissão propriamente ditos, evoluindo apenas para abranger novos mecanismos de divulgação e propagação da cultura e informação de multimídia, como o CD-ROM, aos denominados livros, jornais e periódicos eletrônicos, é o que melhor atende ao preceito em tela. Interpretação sistemática e teleológica que se amolda aos critérios limitadores da tributação. Pensar de forma diversa seria desencadear um processo imunizante ilimitado em relação aos instrumentos que levam à produção final de um livro, não abarcados expressamente pela Constituição, afinal, o texto limita as hipóteses, não cabendo ao intérprete estender outras àquelas já traçadas, distinguindo onde o legislador constituinte não quis distinguir.
6. Precedentes do STF RREE 190.761, 174.476, 203.859, 204.234, 178.863 e Súmula n° 657. (A imunidade prevista no art. 150, VI, d, da CF abrange os filmes e papéis fotográficos necessários à publicação de jornais e periódicos)". Diante desses precedentes, observa-se que, dentre os bens importados, apenas o filme fotográfico, por ser considerado "papel" na extensão da palavra e no uso empregado, deve ser abrangido pela imunidade, ao contrário da tinta para a impressão do papel, a qual, embora ligada
diretamente ao processo para a veiculação do periódico, revista ou livro, não se mostra adequada à interpretação do que seja "papel", conformada pelo Supremo.
7. Recurso a que se dá parcial provimento, concedendo a imunidade dos filmes fotográficos.
(TRF 3ª Região, AMS n. 199643, Proc.: 200003990160127/SP, Terceira Turma, Data da decisão: 14.2.2007.) (Grifei.)
IMUNIDADE. LIVROS. QUICKITIONARY. CF/88, ART. 150, INC. VI, ALÍNEA D.
Hoje, o livro ainda é conhecido por ser impresso e ter como suporte material o papel. Rapidamente, porém, o suporte material vem sendo substituído por componentes eletrônicos, cada vez mais sofisticados, de modo que, em breve, o papel será tão primitivo, quanto são hoje a pele de animal, a madeira e a pedra.
A imunidade, assim, não se limita ao livro como objeto, mas transcende a sua materialidade, atingindo o próprio valor imanente ao seu conceito. A Constituição não tornou imune a impostos o livro-objeto, mas o livro-valor. E o valor do livro está justamente em ser um instrumento do saber, do ensino, da cultura, da pesquisa, da divulgação de idéias e difusão de ideais, e meio de manifestação do pensamento e da própria personalidade do ser humano. É por tudo isso que representa, que o livro está imune a impostos, e não porque apresenta o formato de algumas centenas de folhas impressas e encadernadas.
Diante disso, qualquer suporte físico, não importa a aparência que tenha, desde que revele os valores que são imanentes ao livro, é livro, e como livro, estará imune a impostos, por força do art. 150, VI, d, da Constituição.
O denominado quickitionary, embora não se apresente no formato tradicional do livro, tem conteúdo de livro e desempenha exclusivamente a função de um livro. Não há razão alguma para que seja excluído da imunidade que a Constituição reserva para o livro, pois tudo que desempenha a função de livro, afastados os preconceitos, só pode ser livro.
(TRF 4ª Região, AMS n. 200070000023385/PR, Segunda Turma, Data da decisão: 28.8.2001.) (Grifei.)
CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE. JORNAL. CD-ROM.
1. O fato de o jornal não ser feito de papel, mas veiculado em CD-ROM, não é óbice ao reconhecimento da imunidade do artigo 150, VI, d, da CF, porquanto isto não o desnatura como um dos meios de informação protegidos contra a tributação.
2. Interpretação sistemática e teleológica do texto constitucional, segundo a qual a imunidade visa a dar efetividade aos princípios da livre manifestação de pensamento, de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, de acesso à informação e aos meios necessários para tal, o que deságua, em última análise, no direito de educação, que deve ser fomentado pelo Estado visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, havendo liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 5º, IV, IX, XIV, 205, 206, II, etc.).
3. Apelo e remessa oficial improvidos.
(TRF 4ª Região, AC n. 199804010908885/SC, Segunda Turma,Data da decisão: 03/08/2000.)
Assim, longe de ser um tema pacificado, a jurisprudência parece se encaminhar para o mesmo entendimento da doutrina majoritária, que dá ao livro uma interpretação ampliativa, alcançando também os "livros eletrônicos".
Muito embora a interpretação majoritária leve em conta não apenas a literalidade do texto, mas a Constituição como um todo, dando importância maior aos valores que ao final se pretende proteger, entendo que a imunidade ora estudada não alcança os denominados "livros eletrônicos".
Inicialmente, porque creio que a Constituição foi bastante clara ao restringir o substantivo livro somente aos impressos, limitando o alcance de seu sentido na expressão "e o papel destinado a sua impressão" (grifei).
Por conseguinte, não se pode ampliar a regra para lhe conferir uma dimensão que o constituinte originário não quis dar. A Constituição definiu como a proteção dos valores mencionados seria concretizada, elegendo apenas os livros impressos como objeto da imunidade. Não é possível querer dar uma proteção irrestrita, fora dos parâmetros que o constituinte originário reputou suficientes para preservá-los.
Ir além do que quis o legislador poderá gerar um excesso de proteção ao dar contornos por demais largos ao objeto da imunidade, em prejuízo de outros valores igualmente constitucionais que perderão proteção. A redução da receita dos impostos, inevitável em decorrência do estabelecimento de qualquer imunidade, é sempre pensada cotejando os benefícios que advirão ao não tributar determinadas situações, em relação à referida diminuição da arrecadação.
Ampliar o sentido da norma para alcançar situações que não foram imaginadas significa desequilibrar essa relação, dando-se um incentivo muito grande para uma determinada área (no caso a cultura, o acesso à informação, etc.) em detrimento de outras áreas, igualmente ou mais importantes, que ficarão prejudicadas pela diminuição dos recursos que poderiam dispor, como seria o caso, por exemplo, da saúde e da educação. A idéia, portanto, é que se quis conferir certo incentivo, porém com limites, e não de modo irrestrito, daí porque a melhor interpretação deve respeitar os limites estabelecidos constitucionalmente.
Não entender assim legitimaria outras distorções, tal como querer ampliar o sentido de impostos, no inciso VI do artigo 150 da CR/88, para permitir que se abranjam as taxas e contribuições de melhoria. Isso porque o valor intrínseco ao princípio federativo é muito mais relevante do que aqueles que a imunidade de imprensa pretende guardar, o que, por coerência, deveria servir também para uma interpretação ampliativa do referido dispositivo. Não obstante, prevaleceu, em relação aos impostos, com acerto, a interpretação restritiva.
Frise-se que esse entendimento não despreza a importância dos valores difusão de cultura, livre manifestação do pensamento e acesso à informação que a imunidade do artigo 150, inc. VI, "d", da CR quis resguardar. Apenas se leva em consideração a existência no texto constitucional de outros valores que também merecem proteção, tais como a saúde (art. 196), a educação (art. 205), a assistência social (art. 203), etc.
Dessarte, o único legitimado a aferir o quanto se pode abrir mão de determinada receita, em prol de certos valores, sem prejudicar os demais, é o legislador constituinte. Daí porque não é possível ampliar os contornos que o próprio estabeleceu na regra imunitária, sob pena de, usurpando a sua competência, dar proteção excessiva a uns e detrimento de outros.
Notas
- TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 15ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 76-77.
- COSTA, Regina Helena. Imunidades Tributárias. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 188-191.
- CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 21ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 739.
- AMARO, Luciano. Algumas questões sobre a imunidade tributária. In: SILVA, Martins (Coord.). Imunidades Tributárias. São Paulo: RT, 1998, p. 146.
- SABBAG, Eduardo de Moraes. Imunidades Tributárias (art. 150, VI, "a" e "d", CF). Material da 7ª aula da Disciplina Sistema Constitucional Tributário: Princípios e Imunidades, ministrada no Curso de Especialização Telepresencial e Virtual de Direito Tributário – Unisul.