RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo o exame do artigo 15º da Lei nº 67/2007 de 31 de dezembro de 2007 que aprova o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas em Portugal. A necessidade de criação de um regime de responsabilidade extracontratual não somente restrito a função administrativa, presente no antigo Decreto Lei n. 48.051 de 1967, mas também a todas as funções e competências de entidades públicas, inclusive a função legislativa, revelam a importância na discussão deste tema na doutrina e na jurisprudência. Há doutrinadores que defendem a irresponsabilidade do Estado pelas omissões legislativas, outros que defendem a responsabilidade, mas mediante a presença de certos requisitos e, por fim, em respeito ao artigo 22º da Constituição da República Portuguesa de 1976, entende-se pela aceitação da responsabilidade diante da omissão estatal.
PALAVRAS-CHAVE: 1. Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado. 2. Omissão Legislativa. 3. Controle de Constitucionalidade por Omissão. 4. Poder Legislativo.
INTRODUÇÃO
O Estado de Direito Democrático [01] baseado no respeito e na garantia da efetivação dos direitos e liberdades fundamentais, previsto no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa de 1976 (CRP), como ente político, é responsável por violações destes direitos, inclusivamente em decorrência da omissão legislativa, da denegação da justiça e da inexistência de prazo para o cumprimento de deveres previstos ao Poder Legislativo.
Há muitas décadas, em respeito ao texto constitucional, nomeadamente, artigo 22º da CRP, se justificava a reforma do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e das entidades públicas pelo exercício de todas as funções. Primeiramente a proposta de Lei nº 95/VIII/2 de 2001, depois o projeto de Lei nº 148/IX, a 56/X e a proposta de lei nº 88/IX/2 de 2003, todas caducaram e finalmente, sem veto e com alterações do projeto inicial a Lei nº 67/2007 foi publicada em 31 de dezembro de 2007 que aprova o novo regime da responsabilidade civil extracontratual por atos de gestão pública referentes a todas as funções do Estado e demais entidades públicas de Portugal [02].
Conforme as exigências constitucionais deveria existir um regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e das entidades públicas pelo exercício de todas as suas funções e não apenas a administrativa prevista no Decreto-Lei nº 48.051 de 1976, consagrando também a responsabilidade direta, objetiva e solidária. Por isso, esta nova lei veio pela primeira vez consagrar a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas pelo exercício da função legislativa e política, apesar de que a cobertura de danos da função legislativa poderia ser suprida pela aplicação direta do artigo 22º da CRP. A nova lei prevê a responsabilidade fundada na omissão de providências legislativas para tornar exeqüíveis normas constitucionais, foco principal deste trabalho.
Entretanto, no artigo 15, nº 5 da Lei 67/2007 prevendo a responsabilidade do Estado por omissão legislativa, há divergência doutrinária sobre a concretização desta responsabilidade. Primeiramente, discute-se que em razão da soberania parlamentar e da idéia de que a lei emana do povo, não haveria responsabilidade do Estado por omissão legislativa. E, aos que defendem esta responsabilização afirmam que poderá ser efetivada apenas por meio da existência da omissão legislativa e que deve haver prévia verificação da inconstitucionalidade por omissão pelo Tribunal Constitucional.
Por fim, mesmo após o advento da Lei nº 67/2007 verifica-se a necessidade de revelar a profundidade e alcance, pela importância que a Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado tem para a manutenção da segurança jurídica e da ordem para o indivíduo e para a coletividade, e contribuição que ela oferece à perenidade dos direitos e garantias proporcionados pela Constituição Portuguesa de 1976.
Para tanto, dividiu-se o artigo em quatro partes. Na primeira, estabelecem-se marcos históricos relativos à Responsabilidade Civil do Estado. Em seguida, apresenta-se o instituto da omissão legislativa e seus mecanismos de repressão, assim como sua importância à concretização da responsabilidade civil do Estado. Na terceira parte, serão demonstradas as correntes doutrinárias favoráveis e desfavoráveis a Responsabilidade Civil do Estado por omissão legislativa, assim como as que, atualmente, predominam na jurisprudência. Na ultima parte, sintetiza-se a discussão do trabalho, realizando-se uma reflexão sobre o tema.
1. Responsabilidade do Estado: Evolução Histórica
No direito romano, a exemplo da civilização grega, a responsabilidade do Estado "não era afirmada nem conhecida" [03], isto porque a concepção de Estado era inexistente ou imperfeita e o número de relações entre Estado-indivíduo era reduzido, seja pela diminuta tarefa atribuída ao Estado, seja pela interposição entre indivíduo, Estado e pessoas dotadas de comando. Também, no direito alemão medieval como não havia direito público e as relações entre soberanos e súditos configuravam o desenvolvimento de privilégios mútuos, não se poderia falar de indenização por responsabilidade do Estado [04].
No Estado absolutista verifica-se a irresponsabilidade do poder público por eventuais erros provocados ao particular - "the king can do not wrong" - isto porque o poder era considerado uma concessão divina e a herança possuía a noção romana de potestas, ou seja, não podia ser utilizada para ressarcir o prejudicado. O soberano gozava de absoluta imunidade, também em razão da concepção de soberania do constitucionalismo de Bodin e de Hobbes, que dispunha de um nexo de causalidade entre o Estado absoluto, soberania, lei positiva e ausência de limites e de responsabilidade do legislador, porque a lei era a vontade geral do povo. Assim como a teoria britânica do "non suability" que consagrava a imunidade de jurisdição da coroa [05].
No Estado de Polícia as relações patrimoniais entre o Estado e o particular que gerassem danos por atos ilícitos seriam ressarcidos com base na Teoria do Fisco [06], ou seja, poderiam ser ressarcidos por um viés do direito privado. Ocorre que, a supremacia da Administração por ser considerada uma atividade atrelada à legislação e ser infalível por respeitar a vontade geral do povo, elegia o princípio da irresponsabilidade do Estado como expressão do liberalismo da Administração [07].
Dessa forma, para ressarcir o particular, passa-se para a responsabilização do funcionário pelo ilícito ou por culpa de ato praticado contra aquele, a exemplo da Alemanha, em que os funcionários seriam responsabilizados por atos excedentes de sua competência. Entretanto, quando os tribunais demandavam o representante do poder, o rei tinha o poder de subtrair o acusado aos juízes e enviava aos comissários nomeados pelo Conselho, o que ensejava na proteção do funcionário e a sua conseqüente irresponsabilidade [08].
Posteriormente, a exemplo do direito anglo-americano, a responsabilização pessoal do funcionário se realizava com base no direito civil, nos casos de danos causados por dolo ou negligência grave. Justificava-se pela existência de um contrato de mandato funcionário-Estado em que somente os atos legais que ensejassem danos aos particulares poderiam ser imputados a administração estatal. Nesse sentido, na França aceitava-se a irresponsabilidade do funcionário e, apenas com excepcional autorização era permitida a demanda judicial, diferentemente da Constituição Portuguesa de 1822 que consagrava a responsabilidade pessoal dos funcionários pelos abusos e omissões praticados no exercício dos seus cargos [09].
Na evolução para um Estado de Direito baseado no princípio da legalidade surge a admissão da responsabilidade do Estado, em razão da limitação do poder soberano pelo direito e do controle jurisdicional dos atos administrativos por eventuais vícios de incompetência, forma, objeto ou desvio de poder. Assim, diante das irresponsabilidades do Estado, o Decreto-Lei nº 19.126, de 16 dezembro de 1930, alterando a redação do artigo 2399º do Código Civil, estabeleceu a responsabilidade do Estado e das autarquias solidariamente com os seus funcionários por atos praticados dentro de suas competências [10].
Posteriormente, com base na doutrina organicista [11], as faltas dos funcionários passaram a constituir faltas da própria entidade pública, passando a configurar a responsabilidade direta. Importante ressaltar que no direito português a doutrina defendia a responsabilidade subjetiva, no que diz respeito à responsabilidade estadual. Entretanto, como a responsabilidade civil não era a responsabilidade do poder público, não poderia se aplicar regras de direito civil, assim passa-se para uma teoria da responsabilidade administrativa, sem que a teoria da separação dos poderes impedisse o controle jurisdicional dos atos administrativos [12].
Dessa forma, a pressão doutrinal e a organização dentro da própria administração de órgãos competentes para a apreciação de anulação de atos administrativos e ações de responsabilidade, seja pela criação do contencioso administrativo, como em França, Portugal, ou de jurisdição unitária, a exemplo da Alemanha e do Brasil, afirma-se a responsabilidade civil do Estado como uma conquista do século XX, em especial do Estado social de Direito [13].
A Constituição de 1976 consagrou o princípio da responsabilidade civil solidária, quando alterado pela Revisão Constitucional de 1982, no artigo 22º da CRP:
"O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes por acções ou omissões praticadas no exercício de suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem. [14]"
Assim, com fundamento sob o ponto de vista subjetivo da vinculação da administração pública aos direitos fundamentais e o princípio ao respeito pelas posições jurídicas subjetivas dos particulares e sob o ponto de vista objetivo, o cumprimento do princípio da legalidade e do artigo 22º da CRP, no ano de 2008 entrou em vigor a Lei nº 67/2007 que aprova o novo regime da responsabilidade civil extracontratual por atos de gestão pública referentes a todas as funções do Estado e demais entidades públicas de Portugal.
Centrando-se no artigo 15º da lei supra mencionada, relativo à responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função político-legislativa, nomeadamente a responsabilidade por omissão do legislador, deve-se partir do conceito e da relevância da omissão legislativa para, posteriormente analisar as divergências e dificuldades encontradas pelos particulares diante da omissão do dever de legislar.
2. Omissão Legislativa
Antes de analisar a omissão legislativa, é relevante abordar os diversos tipos de atos legislativos. A doutrina [15] define os atos formalmente legislativos que são os adotados de forma legislativa, porém contém decisões materialmente administrativas, ou seja, é uma decisão produzida no exercício da competência tipificada na lei, mas envolve questões secundárias. Os atos materialmente legislativos, que além da forma legislativa, estabelecem opções políticas primárias com o conteúdo inovador que é característico da função legislativa. Portanto, a função legislativa é a que emana normas gerais e abstratas, com intenção de regulamentar determinada situação e introduz opções de política primárias, ainda que contidas de conteúdo concreto, ou seja, trata-se de ato materialmente legislativo. [16]
Vieira de Andrade [17] ao analisar os vínculos do legislador estabelece classificação das leis de forma sistemática. Primeiramente define as leis ordenadoras ou reguladoras em que disciplinam e organizam a boa execução dos preceitos constitucionais, assegurando o direito constitucionalmente declarado, define também as leis interpretativas que só poderiam intervir em matéria de direitos fundamentais para interpretar os preceitos constitucionais para facilitar a aplicação.
Define também as leis conformadoras ou constitutivas que estabelecem o conteúdo do direito para além do núcleo essencial da garantia estabelecido na Constituição, as leis harmonizadoras que são leis mais abertas, com elevado grau de indeterminação, que permitem a ponderação de direitos e valores conforme o caso concreto. Por fim, as leis restritivas que tendem a enunciar de forma precisa as limitações de direitos ou a redução de seu conteúdo.
Diante de diversas definições, o Poder Legislativo deve obediência à Constituição, por ser um poder constituído, obrigado a acatar limites e proibições e realizar sua função dentro do quadro de valores [18] constitucionalmente definidos. Há preceitos constitucionais que conferem ao legislador poderes e deveres de concretização ou de conformação do conteúdo dos direitos, outros que impõem uma regulação ou uma proteção no seu exercício e outros que autorizam uma legislação geral restritiva para determinadas finalidades ou limitações específicas [19].
Ocorre que independentemente da classificação adotada, existem preceitos constitucionais que exigem expressamente a regulação legal e, portanto, vinculam o legislador que possui o dever específico de respeito, de proteção e de promoção dos direitos fundamentais. Porém, nem sempre a atividade legislativa é eficiente, o que enseja a omissão do legislador, que tem como pressuposto a preponderância formal e material da Constituição sobre as demais leis.
J. J. Gomes Canotilho [20] define omissão legislativa o fato de o legislador não fazer algo que lhe era imposto pela Constituição, pois não se trata de uma simples negativa "não fazer", trata-se de não fazer aquilo que de forma concreta e explícita estava constitucionalmente obrigado. Ou seja, deve haver a exigência concreta constitucional da ação.
O simples dever geral de emanação de leis, a regulamentação de normas programáticas, de preceitos enunciadores do Estado, embora sejam deveres do Poder Legislativo, não se poderia falar em omissão legislativa, e consequente responsabilidade estatal. As imposições constitucionais abstratas que desenvolvem planos políticos, objetivos do Estado, não gerariam omissão, diferentemente das imposições constitucionais concretas, no qual há exigências constitucionais de ação que prescrevem o objeto de sua ação e não apenas o modo de atuação [21].
Há omissão no caso de o legislador não emanar determinado preceito para executar as imposições constitucionais, ou quando as leis favorecem certos grupos esquecendo outros, ou quando emanam certas imposições que excluem alguns cidadãos de forma expressa as vantagens reconhecidas na lei.
Pode-se falar em omissão legislativa ilícita [22] não apenas quando o responsável se abstenha de exercer suas competências legislativas, deixando de regular certas matérias que poderiam ter tratamento legal ou de alterar ou substituir legislação já existente. É antes necessário que ele tenha violado o dever especial de legislar, o de concretização de normas constitucionais. Este é o mesmo critério seguido pelo Tribunal Constitucional. [23]
É relevante mencionar que diferentemente de omissão legislativa, têm-se as omissões por atos políticos ou de governo [24] como, por exemplo, a não marcação de eleições no prazo constitucional, como eleições presidenciais, o que poderia ensejar na responsabilização política e criminal dos titulares dos cargos e não de responsabilização civil extracontratual do Estado, como será analisado adiante.
Entretanto, deve existir uma omissão juridicamente relevante [25] para que haja responsabilização do Estado. Ocorre quando o legislador não concretiza ou não concretiza completamente a imposição constitucional concreta. Assim, a omissão legislativa inconstitucional existe sempre quando o legislador não executa ou apenas cumpre parcialmente uma imposição constitucional concreta. Entretanto, nem todos os direitos fundamentam eventual responsabilização por omissão legislativa, pois tem de se demonstrar a existência de um dever de ação imposto ao legislador.
Pode ocorrer a violação de direitos fundamentais por omissão legislativa que podem resultar de outras imposições constitucionais, ou então, no caso de problemas postos pelas atualizações das imposições constitucionais, cuja generalização, apreciação política e ponderação de resultados só o legislador poderá fazer [26].
Por fim, para Gomes Canotilho haverá omissão legislativa quando ocorrer violação de uma imposição constitucional concreta, diferentemente de Jorge Miranda, em que apenas seria necessária a violação de certa e determinada norma [27]. Portanto, acredito que deva existir omissão por violação da imposição constitucional concreta (violação objetiva do dever de legislar) e que esta omissão resulte danos para os direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, para que ocorra a responsabilidade extracontratual do Estado por omissão legislativa.
3.Responsabilidade Extracontratual do Estado por omissão legislativa
A responsabilidade civil por ato de gestão pública tem por fundamento a vinculação da administração pública aos direitos fundamentais (artigo 18º CRP) e o princípio do respeito pelas posições jurídicas subjetivas dos particulares (artigo 266º CRP) e está prevista no artigo 22º e no artigo 268º, n. 4º da Constituição da República Portuguesa. [28]. E recentemente, em respeito ao preceito constitucional, está disposto na lei nº 67/2007 de 31 de janeiro de 2007.
O artigo 22º CRP consagra o princípio geral da responsabilidade civil do Estado por danos resultantes do exercício de qualquer função estatal [29]. Dispõe da responsabilidade direta e objetiva [30], mas não exclusiva, das entidades públicas em regime de solidariedade [31] com os titulares de seus órgãos, funcionários e agentes [32] pelos danos causados a particulares.
O texto constitucional engloba a responsabilidade político-criminal dos titulares dos cargos políticos, a responsabilidade disciplinar dos funcionários ou agentes e a responsabilidade política como um complexo de mecanismos de afetação de valor ou desvalor de condutas políticas dos titulares de órgãos da soberania e por fim, a responsabilidade financeira. Não há qualquer fundamento para não aplicar o princípio geral da Responsabilidade do Estado às omissões normativas, legislativas e outras, desde que seja possível extrair os pressupostos de culpa, ilicitude e nexo de causalidade [33]. Entretanto, no exercício da função legislativa, a responsabilidade do Estado não é solidária, mas sim exclusiva do ente estatal [34].
O artigo 15º, n.3º a 5º da Lei 67/2007 [35] dispõe sobre a responsabilidade pela omissão de providências legislativas. O n. 3º estabelece a responsabilidade somente no caso de haver uma inconstitucionalidade por omissão, conforme o artigo 283º da CRP [36], e por isto que depende da prévia verificação pelo Tribunal Constitucional da existência de inconstitucionalidade por omissão.
Nesse sentido, pode-se falar em Responsabilidade Extracontratual do Estado por omissão legislativa, com base na Constituição de República Portuguesa e no artigo 15º da Lei nº 67/2007, quando há omissão jurídico-pública de órgãos, funcionários ou agentes jurídico-funcionalmente entendidos [37] e que esta omissão traga prejuízos para os particulares em decorrência da ausência de lei.
Entretanto, diante da omissão legislativa como pode haver a concreta responsabilização? Qual o momento da omissão para que surja o direito de exigir do poder público a regulamentação ou a previsão daquele direito? Qual o prazo concedido ao legislador para a regulamentação de determinado dispositivo constitucional? É imprescindível a sentença da ação direta de inconstitucionalidade por omissão para que os danos decorrentes da omissão responsabilizem o Estado? Existem meios de responsabilizar individualmente o parlamentar ou o deputado por omissão legislativa? As respostas a essas perguntas estão em divergentes opiniões na doutrina e na jurisprudência.
3.1.Entendimentos pela irresponsabilidade Estatal por omissão legislativa
As concepções de Bodin, Hobbes e Rousseau direcionam a idéia de que os agentes legislativos como agentes políticos exercem função pública consistente na elaboração de leis e como são os representantes do povo, por meio do voto, submetem-se a um regime jurídico diferenciado, não estando sujeitos à hierarquia nem a dispositivos estatutários. Por esse motivo, a criação ou não das normas, em regra geral, é de responsabilidade da sociedade que os elegeu, e não do legislador. O dogma "a separação entre a sociedade civil de que o parlamento legislador é a emanação e o Estado alheio à lei" contribui para a irresponsabilidade [38].
A soberania e a supremacia da lei e o seu caráter de generalidade e abstração [39] também justificariam a irresponsabilidade pelo exercício da função legislativa, pois seria impossível atingir situações específicas, individualizadas, consubstanciadas em casos concretos para delimitar as indenizações [40]. Ademais, a responsabilização configuraria um ato de bloqueio da própria evolução da atividade legislativa, afirmam os defensores da irresponsabilidade Estatal por omissão legislativa [41].
Há quem defenda não ser cabível a responsabilidade pelo exercício da função legislativa, pelo fato de a responsabilidade político-legislativa se diferenciar da responsabilidade da Administração Pública e do Estado [42]. A ausência de previsão expressa no artigo 1º, n. 3 da Lei 67/2007 sobre a responsabilidade dos parlamentares e deputados e os mecanismos de proteção do mandato parlamentar (imunidade parlamentar) [43]não permitiria a ação regressiva do Estado contra o agente do cargo político identificado e individualizado quando este agir com culpa (omissão legislativa causada por negligência, por exemplo) ou dolo [44].
Outro entendimento pela irresponsabilidade se apresenta pelo fato de que a democracia, o Estado de direito e os direitos fundamentais exigem a garantia de um status activus, positivus e processualis [45], em que os interesses dignos de proteção sejam interesses juridicamente protegidos, de forma a garantir o direito subjetivo do cidadão. Entretanto, não há responsabilidade resultante da inércia legislativa inconstitucional, porque não há direito subjetivo do particular lesado à emanação de normas, ou seja, se o cidadão não possui posição jurídica constitucionalmente protegida para a emanação de normas, ele não tem poder jurídico, se não o tem, não tem direito de ação, e sem direito de ação não tem posição jurídica judicialmente defensável contra o legislador [46]. Este entendimento pela irresponsabilidade por omissão legislativa, preconiza a idéia de que o cidadão não poderia responsabilizar o Estado pela inexistência de legislação, pelo simples fato de não possuir direito subjetivo a emanação daquela norma.
Portanto, o cidadão por meio de requerimentos, ações individuais ou coletivas pode, por exemplo, induzir aos membros do Parlamento a ter iniciativa de legislar, mas não se reconhece o direito subjetivo de obter uma reparação pecuniária pelos danos derivados da omissão legislativa [47]. Fato que justifica a ausência de interesse de agir em eventual ação de responsabilização contra o Estado.
Por fim, outro argumento reside na necessidade de haver mecanismos jurídicos para que a Constituição possa acompanhar as necessidades de regulamentação das normas programáticas, dos direitos sociais e econômicos e de outras normas inerentes ao Estado Social [48]. Ocorre que a incapacidade do Estado de contemplar todos os problemas de concretização de uma constituição programática por meio da substituição do legislador pelo juiz ensejaria no aumento dos custos do Estado e não resolveria o problema de efetivação das tarefas sociais e econômicas da Constituição [49].
3.2 Entendimentos pela Responsabilidade Estatal por omissão legislativa
A partir do constitucionalismo moderno [50] e dos liberais clássicos até Kant evidenciam que o legislador soberano pode ser falível no exercício da atividade legislativa apesar de vinculado aos dispositivos constitucionais, o que rejeita a idéia de irresponsabilidade por omissão legislativa. Hoje, a responsabilidade do Estado e das entidades públicas está estabelecida de forma mais objetiva e está presente nos ordenamentos jurídicos de Portugal, do Brasil, da Itália, dos Estados Unidos, da Espanha, dentre outros [51].
Segundo J. J. Gomes Canotilho, as leis modernas não são mais gerais e abstratas, além de não possuírem no seu conteúdo qualquer idéia de justiça para se acomodarem e sobreviverem a um "mundo em constante e descontínuo tropismo onde as exigências da ação sobrelevam as do rigor lógico e pensamento sistemático". Isto porque as leis são reações estaduais tendentes a resolver problemas concretos e singulares "situações de necessidade carecidas de remédio urgente, dotadas de executividade imediata e aderentes a um facto determinado" [52]. Assim, a omissão legislativa, quando relevante, pode deixar de solucionar certa situação jurídica e, em decorrência disto, causar danos a particulares, sendo inaceitável a idéia de que não há responsabilidade estatal.
Também, pode-se afirmar que o artigo 1º, n. 3 [53] da Lei 67/2007 não se refere expressamente sobre a possibilidade de os titulares da função político-legislativa serem demandados judicialmente por responsabilidade solidária do Estado ou por meio do direito de regresso. Porém, em contraposição, Cadilha entende que o artigo 1º, n.1 [54] da Lei 67/2007 remete a responsabilização pela função legislativa do Estado, assim como a Constituição Portuguesa remete ao artigo 117º, n. 1 [55] e estabelece o princípio geral da responsabilidade penal, civil e criminal por ações e omissões dos titulares de cargos políticos – poderia se aplicar a omissão do legislador - pelos danos causados a particulares. Concluindo que a irresponsabilidade dos deputados por seus votos e opiniões, prevista no artigo 157º [56] da CRP é apenas uma exceção [57]. O que pode nos fazer entender que a inexistência de determinada lei, decorrente da omissão dos parlamentares, e se esta for imprescindível para um acontecimento de fato, causando danos a terceiros, estes serão indenizados pelos agentes da função político-legislativa.
Porém, entendo que os danos decorrentes da omissão legislativa poderão ser indenizados pelo Estado, pois a generalidade da lei não obsta à subjetivação de eventuais prejuízos quando esta seja inconstitucional ou omissa. Contudo, não há como responsabilizar individualmente o parlamentar, e a obrigação de indenizar recai unicamente sobre o Estado, quando por inexistência de lei, afetem direitos constitucionalmente garantidos, como ocorreu na indenização no caso Aquaparque [58].
Importante ressaltar os entraves de se concretizar a responsabilização pessoal [59] de parlamentares por omissão legislativa, em razão dos mecanismos de proteção do mandato parlamentar (a imunidade parlamentar [60]) compreendida na irresponsabilidade [61] e na inviolabilidade [62] parlamentar, previstos no artigo 157º [63] da CRP. Ademais, o processo de construção e votação da legislação é realizado por meio de um órgão coletivo, composto de parlamentares, passando por diversas fases de aprovação e rejeição, impossibilitando uma responsabilização individual.
Também, em respeito ao artigo 22º e ao artigo 271º, n. 4 [64] ambos da CRP existe responsabilização solidária entre o Estado e os agentes administrativos e o respectivo direito de regresso. Porém, o artigo 15º da Lei 67/2007 é omisso quanto a este direito de regresso a parlamentares e deputados, agentes da função político-legislativa, fato que reafirma a existência de responsabilidade extracontratual do Estado por omissão legislativa.
Assim, a responsabilidade por omissão legislativa tem por requisitos a omissão legislativa que corresponde à inércia do Estado na ausência de emissão de medidas legislativas ou na insuficiência, deficiência ou inadequação de medidas legislativas, podendo ele ser responsabilizado por tais fatos. Entretanto, é necessária uma omissão legislativa relevante, como acima mencionada, que se traduz no dever especial de legislar [65].
Nesse sentido, o Tribunal Constitucional considera que a inconstitucionalidade por omissão só é verificável quando existir em concreto uma específica incumbência ou imposição definida no seu sentido e no seu alcance, sem deixar liberdade ao legislador, a partir daí pode-se verificar uma futura responsabilização do Estado [66].
Além da omissão relevante, deve haver ilicitude qualificada por não se ter emitido legislação necessária para dar operatividade à norma constitucional, como por exemplo, quando a Constituição remete à regulamentação da matéria para uma lei ordinária. Trata-se de uma omissão culposa e em que se verifique o nexo de causalidade entre a omissão e o dano, averiguados de acordo com o artigo 563º [67] do Código Civil [68].
A partir da violação do dever de legislar, que impediu que pudessem ser produzidos em tempo oportuno a legislação para abarcar os acontecimentos jurídicos, verifica-se a ocorrência do dano, este definido como dano anormal [69], o qual ultrapassa os custos próprios da vida em sociedade que merecem ser ressarcidos pela sua gravidade, conforme artigo 2º [70] da Lei 67/2007.
Outra questão que se discute é a prévia decretação pelo Tribunal Constitucional da inconstitucionalidade por omissão [71] para que a responsabilidade seja concretizada, conforme artigo 15º, n. 5º da Lei 67/2007. Parte da doutrina portuguesa entende com base na literalidade da lei que deve haver declaração prévia de inconstitucionalidade, visto que diante da ação direta da inconstitucionalidade por omissão do artigo 283º [72] da CRP o Tribunal dará conhecimento da omissão ao órgão legislativo competente. No ordenamento jurídico Alemão, Francês e dos Estados Unidos verifica-se a necessidade de decretação prévia da inconstitucionalidade para o ensejo da responsabilização [73].
Entretanto, sabendo que a decretação não tem eficácia jurídica direta, nada obsta que o legislativo continue a não cumprir o dever de legislar [74], caracterizando comportamento doloso do legislador, que pode ser utilizado para a apuração do quantum indenizatório no processo de responsabilização [75].
Porém, outros doutrinadores entendem ser dispensável a prévia verificação pelo Tribunal Constitucional, visto que apenas o Presidente da República, o Provedor de Justiça ou os presidentes das Assembléias Legislativas são legitimados para requerer as ações de inconstitucionalidade por omissão [76]. Ou seja, o lesado em decorrência da omissão legislativa deverá aguardar o interesse e a iniciativa destes agentes políticos, para posteriormente aguardar o desenvolver do processo (Ação de Inconstitucionalidade por omissão). Depois, deverá aguardar a comunicação do Tribunal ao órgão competente para que regulamente a situação em prazo razoável [77] para assim obter a decretação da omissão, e depois ingressar com a ação de responsabilização. Neste lapso temporal, várias situações estarão sem legislação, o que poderá causar danos aos particulares, sendo é inadimissível no Estado de Direito Democrático.
Assim, diante da ausência de requisitos para delimitar o prazo razoável para que configure a omissão legislativa, sem a necessidade de prévia decretação da inconstitucionalidade por omissão, o juiz pode concluir pela mora legislativa através da ação de responsabilização do Estado, por meio de critérios de razoabilidade, proporcionalidade e de bom senso, tendo em vista o caso concreto.
A demora para realização da legislação pode ser apurada conforme o caso em questão, a exemplo do acórdão nº 474/02 do Tribunal Constitucional que diante do decurso de 26 anos de inércia do legislador, conclui "ele (o prazo) foi já bastante para o cumprimento da tarefa legislativa em causa [78]", em que estaria configurada a omissão sem necessidade de prévia decretação pelo Tribunal Constitucional.