Resumo: O objetivo do presente trabalho é analisar, de forma breve e objetiva, a eficácia das normas constitucionais programáticas a partir do contexto histórico até os dias de hoje. Será demonstrado que embora tenha sido questionada a natureza jurídica desse grupo de normas, sob o pretexto de possuírem apenas conteúdo moral e político, esse entendimento já foi superado. Todas as normas constitucionais, incluindo as programáticas, possuem valor jurídico e merecem o respeito e a atenção do legislador, do governante e de toda a população, a fim de contribuírem para a plena e irrestrita efetividade.
Palavras-chave: Constitucionalismo. Normas Constitucionais. Normas Programáticas. Eficácia.
Sumário: 1. Introdução 2. A Evolução do Constitucionalismo e o Surgimento das Normas Constitucionais Programáticas 3. A Programaticidade e a Crise do Conceito Jurídico de Constituição 4. Eficácia das Normas Constitucionais 5. Classificação da Aplicabilidade e Eficácia das Normas Constitucionais 6. Eficácia das Normas Constitucionais Programáticas 7. Considerações Finais 8. Bibliografia.
1. Introdução
A eficácia social e normativa das normas constitucionais programáticas, apesar de debatida historicamente pelos juristas e filósofos, ainda é objeto de polêmica. Sua importância é vital para a sociedade, visto que a concepção adotada direciona e obriga os órgãos do poder legislativo, executivo e judiciário, bem como toda a população de determinado Estado.
No texto que ora se inicia, procede-se a avaliação da normatividade e efetividade desse grupo de normas que mais se ajusta ao paradigma do Estado Democrático de Direito. A análise partirá do contexto histórico, demonstrando a evolução do constitucionalismo e o surgimento das normas constitucionais programáticas, a crise do conceito jurídico e, por fim, a sua superação.
Não se almeja exaurir o tema, nem tão pouco explorar em sua totalidade todos os institutos aqui demonstrados, mas sim, refletir e buscar respostas com o objetivo de contribuir para a realização prática da norma suprema.
2. A Evolução do Constitucionalismo e o Surgimento das Normas Constitucionais Programáticas
A noção de constitucionalismo, segundo Uadi Lammêgo Bulos, pode ser ampla ou restrita. Em sentido amplo, é o fenômeno relacionado ao fato de todo o estado possuir uma constituição em qualquer época da humanidade, independente do regime político adotado. Em sentido estrito, é a técnica jurídica de tutela das liberdades que possibilitou aos cidadãos exercerem, com base em constituições escritas, os seus direitos e garantias fundamentais. [01]
Embora tenha surgido nas civilizações antigas, sua consistência se deu no século XVIII, sob influência do iluminismo, onde se afirmou a supremacia do indivíduo, a limitação do poder dos governantes e a busca pela razão.
Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, o Iluminismo possuiu cinco ideias-força, que se manifestam pelas noções de Individuo, Razão, Natureza, Felicidade e progresso:
A idéia de Constituição ganhou força associada às concepções do Iluminismo, a ideologia revolucionária do século XVIII. Esta cosmovisão tem cinco idéias-força, que exprimem pelas noções de Indivíduo, Razão, Natureza, Felicidade e Progresso. De fato, ela concebe o homem como individuo, ou seja, como um ser individualizado, com vida e direitos próprios, que não se confunde com a coletividade, nem se funde nesta. Este indivíduo é eminentemente racional, determina a sua vontade por uma razão que não aceita senão o que lhe pode se demonstrado. Razão, portanto, que rejeita o preconceito, isto é, tudo o que não pode ser explicado objetivamente. Tal indivíduo racional vive num mundo governando em última instância por uma natureza boa e previdente. Dessa natureza resultam leis (naturais) que conduzem à melhor das situações possíveis, desde que não embaraçadas. Visam à felicidade que é o objetivo do homem. Objetivo a ser realizado na Terra e não no Céu como era o caso da salvação eterna, meta proposta para o homem pelo Cristianismo. Enfim, o otimismo quanto ao futuro, pois o homem, sua condição de vida, seus conhecimentos, sempre estão em aperfeiçoamento, em progresso. [02]
Dessa forma, o constitucionalismo apresentou-se como revolucionário. Afinal, a limitação dos poderes dos governantes se deu contra as suas vontades, e se aceitaram as restrições foi porque não havia outra escolha a fazer diante das fortes pressões exercidas pelas classes políticas emergentes. Por isso, as constituições foram escritas, objetivando definir as novas condições políticas e evitar qualquer retrocesso. Nesse sentido Leciona Paulo Bonavides:
Essas constituições rígidas traduziam um sentimento de profunda e inevitável insegurança contra o poder, aquela desconfiança ou suspeita clássica do liberalismo com sua doutrina de valorização da sociedade burguesa e individualista. Aliás, a rigidez só se explica como produto de semelhante desconfiança. Isto naturalmente na medida em que, protegendo a liberdade e os direitos humanos, ou aspirando à permanência, ela embargava a subitaneidade da mudança e da reforma constitucional. [03]
Paulo Bonavides afirma, ainda, "a Constituição que emerge da fase contra-absolutista se apresenta, portanto, como conceito político e filosófico". Da mesma forma ocorreu com as primeiras Declarações de Direito que também possuíam expressão e relevância política como, por exemplo, a Declaração de Direitos do Povo da Virgínia (1776) e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789), que eram destituídas de natureza jurídica, eficácia vinculante e aplicabilidade. Nesse sentido leciona José Carlos Vasconcellos dos Reis:
As Declarações de Direitos desse momento histórico tinham, de fato, a índole de um manifesto revolucionário. Tratava-se de textos com inegável expressão e relevância política. Todavia, não se tinha ainda a sua percepção enquanto documento verdadeiramente jurídico. [04]
As liberdades anunciadas no âmbito constitucional, nesse momento histórico, eram interpretadas como tarefas voltadas para o legislador. Não se enxergava a vinculação dos poderes do Estado à declaração dos direitos fundamentais. [05]
Com o surgimento da Constituição da Bélgica de 1832, houve contribuição para dar contornos jurídicos às instituições que caracterizavam o Estado de Direito. Isso porque transformou as Declarações de Direitos em artigo da própria Constituição e, também, por permitir que os direitos proclamados em sede constitucional fossem considerados como direitos públicos subjetivos, podendo ser acionados judicialmente para a proteção em caso de violação.
Não obstante, afirma José Carlos Vasconcellos dos Reis que grande parte da doutrina juspublicística tinha dificuldades para visualizar e tratar os direitos fundamentais como autênticos direitos subjetivos. Isso deu a eles tratamento semelhante ao que atualmente se confere às normas programáticas. [06]
No século XX, com o advento da segunda fase do constitucionalismo moderno, aumentou o número daqueles que negavam natureza jurídica a determinadas normas constitucionais. Paulo Bonavides asseverou, com razão, que se as Constituições tivessem parado no tempo, mantendo o modelo liberal, a eficácia de suas normas não teria sofrido abalo. Vejamos:
Se as constituições houvessem contudo interrompido a sua progressiva continuidade no modelo liberal, a eficácia de suas normas não teria sido objeto de profundo abalo, conforme aconteceu este século. Todo o sistema constitucional, que a ciência jurídica do século XIX fizera aparentemente sólido, entrou em crise e colapso. Ao divórcio entre o Estado e a sociedade, sucedeu o novo e imprevisto quadro de absorção da Sociedade pelo Estado, isto é, a politização de toda a sociedade, pondo termo àquele dualismo clássico, àquela antinomia, bastante típica da idade liberal e das instituições que o individualismo produziu no século passado. [07]
Essa concepção liberal de valorização do individuo e afastamento do Estado gerou concentração de renda e exclusão social, o que obrigou o Estado a intervir para evitar abusos e limitar o poder econômico. Esses fatos fizeram com que surgisse um novo constitucionalismo, agora denominado de social.
Na visão de José Emílio Medauar Ommati, observamos que "O Estado deveria agora atuar para a realização de direitos os mais díspares, tais como educação, saúde, transporte, previdência social, etc. Daí porque se diz que esses direitos envolvem uma atuação estatal, sendo direitos prestacionais". [08]
As primeiras constituições com esse caráter surgiram após a primeira guerra mundial, furto de um processo histórico que já ocorria desde o século XIX, sendo elas a Constituições do México de 1917 e Weimar de 1919, que influenciaram a Constituição brasileira de 1934.
Nasceu, assim, um novo problema. As novas declarações de direitos tornaram-se contraditórias e obscuras, pois a coerência político-ideológica que possuía os clássicos direitos de liberdade foi substituída pela instabilidade e pelo compromisso do constitucionalismo social. Na verdade, a inclusão de direitos sociais e formulas programáticas nos textos das novas constituições teve o objetivo de amenizar o verdadeiro conflito ideológico que se instaurou. [09]Corroborando, leciona Paulo Bonavides:
A instabilidade e o compromisso marcam o constitucionalismo social, fazendo frágeis os alicerces das constituições que, a partir do primeiro pós-guerra do século XX, buscam formas de equilíbrio e transação da ideologia do Estado social. A trégua constitucional em meio ao conflito introduzidas nos textos das constituições, sendo paradigma maior dessa criação teórica a constituição de Weimar. [10]
Nesse ponto é que reside o grande problema das constituições contemporâneas, ao contrário dos direitos individuais clássicos, os direitos sociais declarados no texto supremo nem sempre gozam de efetividade, diante dos limitados recursos e das inúmeras necessidades da sociedade.
3. A Programaticidade e a Crise do Conceito Jurídico de Constituição.
O conceito jurídico de constituição elaborado pelos constitucionalistas do estado liberal se viu reduzido, senão eliminado, pela programaticidade. Isso se deu pela dificuldade de concretizar os direitos sociais insculpidos no âmbito constitucional, ou seja, o problema que se instalou residiu na realizabilidade prática dos direitos sociais, na dificuldade de passar da declaração de princípios à aplicação concreta das normas.
As constituições fundadas com base no liberalismo foram suficientes naquele momento histórico, mas o evoluir da sociedade exigiu atuações do Estado na área econômica e social, obrigando as novas constituições a inserirem em seu corpo programas concernentes à educação, ao trabalho, à cultura, dentre outros. Com base nisso, as constituições do século XX inauguraram uma nova fase, até hoje não ultrapassada, de programaticidade das constituições.
Segundo Paulo Bonavides, "a Constituição de Weimar foi fruto dessa agonia: O Estado Liberal estava morto, mas o Estado Social ainda não havia nascido". [11]
Até o século XX, grande parte da doutrina negou natureza jurídica às normas programáticas, reduzindo-as a um programa de normas jurídicas futuras, de valor ético ou político. José Carlos Vasconcellos dos Reis registra que Ferdinand Lassalle teceu críticas à eficácia das normas contidas nas constituições rígidas e formais:
O célebre opúsculo de Ferdinand Lassalle sobre a "essência da Constituição", que remonta de 1862, pode ser compreendido como uma crítica precursora sobre a eficácia das normas estampadas em constituições rígidas e formais. Para Lassalle, a Constituição real de um Estado é, na verdade, a soma dos "fatores reais de poder" que regem a sociedade, sendo a Constituição rígida uma simples "folha de papel", que se deve limitar a converter em instituições jurídicas aquelas forças atuantes na realidade social. [12]
Além dele, outros como Gaetano Azzariti, Salvatore Villari, Giovanni bernieri e Mario Galizia, se posicionaram no mesmo sentido. Vejamos:
Na doutrina italiana, por exemplo, José Afonso da Silva menciona, neste sentido, as obras de Gaetano Azzariti (Problemi Attuali di Diritto Constituzionale, 1951), Salvadore Villari ("Sulla Natura Giuridica della Costituzione", in: Archivio Penale, maio/junho, 1948), Giovanni bernieri ("Rapporto della Costituzione com Le Leggi Anteriori", in: Archivio Penale, novembro/dezembro, 1950) e Mario Galizia (Scienza giuridica e Diritto Costituzionale, 1954). [13]
Ainda segundo Paulo Bonavides, a crítica que acomete a juridicidade das normas programáticas se concentra em três pontos vulneráveis: O fato das normas programáticas terem por conteúdo princípios implícitos do ordenamento jurídico, a circunstância de enunciarem programas políticos não vinculantes e, finalmente, por estamparem fórmula genérica, vaga e abstrata, que escapam de toda aplicação positiva. [14]
Somente depois da segunda guerra mundial começou a ser aceito o caráter jurídico dos preceitos insculpidos na Constituição, incluindo os princípios e as normas programáticas.
4. Eficácia das Normas Constitucionais
Eficácia é a capacidade das normas constitucionais de produzir efeitos, que podem variar em grau e profundidade. Há dois tipos de eficácia: normativa e sociológica.
A eficácia normativa ou jurídica é a possibilidade de aplicação da norma constitucional. Trata-se, na verdade, de um atributo de todas as normas constitucionais, pois inexiste norma não-jurídica dentro da constituição, todas, sem exceção, possuem eficácia normativa. Aqui, não se almeja o sucesso da constituição.
Ressalte que, desde o nascimento, as normas supremas do Estado revogam as disposições contrárias, isso demonstra que até mesmo as normas programáticas, limitadas por natureza, possuem um mínimo de eficácia.
De acordo com Uadi Lammêgo Bulos, mesmo que inefetiva do ponto de vista social continuará produzindo efeitos jurídicos:
Mesmo inefetiva, sociologicamente falando, ela continua produzindo efeitos jurídicos. A desobediência à constituição não é capaz de "matar" a sua eficácia normativa. O "tiro de morte", nesse caso, é a eficácia sociológica. Quando as normas constitucionais são desrespeitadas, e tronam-se letra morta, algo corriqueiro no Brasil, o problema é de efetividade, ou seja, de eficácia social, não de eficácia técnico-jurídica. [15]
Enquanto a eficácia normativa é a simples possibilidade de aplicação da norma constitucional, a eficácia sociológica, também chamada de efetividade, é a incidência concreta e satisfatória das normas constitucionais sobre as relações humanas. Por meio dela a constituição é cumprida na prática, fazendo prevalecer os valores positivados.
Dessa forma, norma constitucional efetiva é aquela obedecida, cumprida e aplicada, correspondendo aos fatores reais do poder que regem a sociedade. [16]
5. Classificação da
Como visto, todas as normas constitucionais produzem efeitos, entretanto, nem sempre os efeitos são idênticos, havendo assim um escalonamento. Sobre isso, aponta Uadi Lammêgo Bulos:
Seria ingênuo admitir normas constitucionais de idêntica eficácia, sempre prontas para serem aplicadas, porque as constituições são diplomas incompletos. Albergam múltiplos interesses, que derivam de forças antagônicas. Elaboradas em ambientes conturbados, a realização de suas promessas e de seus compromissos fica sob os cuidados do legislador ordinário, que, numa etapa futura da vida constitucional do estado, vai implementar as aspirações cristalizadas no texto supremo. Daí as normas constitucionais classificarem quanto aos efeitos e à aplicabilidade. [17]
A classificação abaixo é fruto dos estudos de José Afonso da Silva, que dividiu as normas constitucionais em plena, contida e limitada. Vejamos:
Normas Constitucionais de Eficácia Plena são aquelas que, no momento em que entra em vigor, já produzem todos os efeitos, independentemente de norma integrativa infraconstitucional. Como regra geral cria órgãos ou atribui competências aos entes federativos.
As Normas Constitucionais de Eficácia Contida, embora tenham condições de produzir todos os efeitos, poderá ter sua abrangência reduzida por norma infraconstitucional. Como exemplo, podemos observar que o artigo 5º, inciso XIII, da Constituição de 1988, assegura ser livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendido as qualificações profissionais que a lei estabelecer. É o caso do Estatuto da OAB que exige aprovação em exame de ordem para o bacharel em Direito exercer a advocacia.
Por fim, as normas constitucionais de eficácia limitada são aquelas que, no momento em que a constituição é promulgada, não estão aptas a produzir os seus efeitos, necessitando de uma norma integrativa infraconstitucional. São, portanto, de aplicabilidade mediata e reduzida. Podem ser dividas em dois grupos: normas de princípio institutivo e normas de princípio programático.
As normas limitadas por princípio institutivo dependem de lei para dar corpo a institutos, instituições, pessoas, órgãos ou entidades constitucionais. Exemplo: artigo 18, §2º, CF/88. Enquanto que as normas limitadas por princípio programático, estatuem programas a serem desenvolvidos pelo Estado. Exemplo: artigo 227, CF/88.
Resumidamente, ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho:
Como é fácil apreender, a trilogia, quando limitada à questão da aplicabilidade, se reduz ao dualismo clássico. Realmente, as normas de eficácia plena e as normas de eficácia "contida" são normas exeqüíveis por si mesmas, enquanto a última espécie – as normas de eficácia limitada – corresponde às normas não exeqüíveis por si mesmas. Ora, manda a lógica que duas espécies (a primeira e a segunda) não sejam separadas quanto à aplicabilidade, quando, no que toca a esta, são iguais. A diferença entre normas de eficácia plena e normas de eficácia conta não está na aplicabilidade, portanto, e sim na possibilidade ou não de ser restringido o seu alcance pelo legislador infraconstitucional, o que nada tem que ver com a aplicabilidade das normas enquanto constitucionais. [18]
Além dessa classificação há outras como, por exemplo, a da Maria Helena Diniz que divide as normas em: normas supereficazes ou com eficácia absoluta; normas de eficácia plena, normas com eficácia relativa restringível; normas com eficácia relativa complementável ou dependente de complementação legislativa. Entretanto, pela finalidade desse trabalho é suficiente a classificação apresentada.