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Direito do nascituro a alimentos.

Uma abordagem civil-constitucional

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09/03/2010 às 00:00
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Nota de Atualização (do Editor): Este artigo foi elaborado antes da vigência da Lei nº 11.804/2008, que disciplina o direito a alimentos gravídicos, confirmando a tese aqui defendida pela autora.


1. INTRODUÇÃO

Não são poucas, em nosso país, as mulheres que engravidam sem dispor de recursos e do auxílio espontâneo do genitor do nascituro. Diante de uma situação dessas, surge uma pretensão resistida, sendo o recurso ao Judiciário a alternativa legítima à exigência dos meios necessários ao sustento da gestante e do nascituro, vez que o Estado tomou para si o monopólio da atividade jurisdicional.

Por outro lado, apesar de ser incontestável, no plano fático, a necessidade do feto aos alimentos, esta questão ainda tem encontrado resistência por parte de alguns juristas, que entendem não ser cabível o referido direito, quando o seu titular for um ser humano que ainda não nasceu. Isto porque a discussão acerca da possibilidade de o mesmo ter direito aos alimentos é influenciada pela teoria adotada sobre o início da personalidade. Sob a óptica estritamente civilista, para aqueles que alegam não ter o nascituro personalidade jurídica, restaria prejudicado, em tese, o referido direito.

No estágio atual do Direito, não obstante, é insuficiente o enfoque civilista isolado. O Direito Civil sofre, inevitavelmente, a irradiação da Constituição, de modo que um enfoque civil-constitucional torna-se imperioso para a solução de questões como essa, nas quais estão em jogo direitos fundamentais.

A análise da matéria atinente aos alimentos do nascituro, portanto, não pode mais estar refém da técnica civilista clássica, mas sim atrelada a uma visão sistemática da ordem jurídica, sob as lições da doutrina e da hermenêutica constitucional mais avançada.

O presente trabalho tem por finalidade demonstrar a possibilidade do requerimento de pensão alimentícia por parte do nascituro, através de seu representante legal, com o intuito de propiciar o seu efetivo desenvolvimento e nascimento saudável. Para tanto, a problemática será analisada sob uma ótica civil-constitucional, posto que, como dito anteriormente, somente com a análise conjugada da Carta Magna com a ordem infraconstitucional é que se poderá solucionar o problema em tela.


2. A TUTELA CIVIL-CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO NASCITURO

A história do Direito sempre foi marcada por uma clara dicotomia entre o direito público e o direito privado, divisão esta que foi elaborada pela dogmática jurídica, tendo como funcionalidade a facilitação do trabalho do jurista e, por conseguinte, a decidibilidade dos conflitos com um mínimo de perturbação social. [01]

O Direito do Estado Liberal conheceu bem essa dicotomia, devido a sua estruturação com base nos direitos de liberdade e na separação dos poderes, que objetivava a proteção do indivíduo contra o arbítrio estatal. No contexto histórico do século XVIII, destaca-se o nítido distanciamento entre o âmbito das relações econômicas e o âmbito das relações políticas, entre a sociedade civil e o Estado.

No ordenamento jurídico daí advindo, caracterizado pelo culto à autonomia da vontade e à igualdade formal, predominava a insociabilidade entre a Constituição e o Código Civil, fenômeno este que Judith Martins-Costa denomina de "modelo da incomunicabilidade". [02]

As crises capitalistas que sucederam àquele modelo de Estado, contudo, puseram em xeque o distanciamento entre sociedade política e sociedade civil. Nesse outro contexto, o Estado adquire feição diversa, tornando-se devedor de prestações positivas, quais sejam, direitos sociais econômicos e culturais, também chamados de direitos de segunda dimensão, que passaram a ser incorporados aos Textos Constitucionais, tendo como marco a Constituição de Weimar, de 1919.

Apesar dessa nova postura estatal intervencionista, o Direito Civil já não correspondia às novas exigências constitucionais, encontrando-se, ainda, vinculado à ideologia liberal. A pretensa completude do direito codificado já não era capaz de solucionar os novos conflitos de uma sociedade diferente da oitocentista, o que desencadeou uma crescente edição de leis esparsas, que tinham como escopo disciplinar essas novas situações. Dessa maneira foi que surgiram, dentre outras, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor e, mais recentemente, o Estatuto do Idoso.

O Direito Civil deixa de gravitar exclusivamente em torno do Código, outrora seu centro, passando a constituir uma realidade fragmentada, formada por microssistemas (estatutos autônomos) que coexistem no mesmo plano hierárquico daquele.

O Estado Social de Direito, contudo, foi responsável por gerar óbices, como, por exemplo, a tecnocracia e a despolitização da vida coletiva, aos seus próprios objetivos colimados. [03]

A superação do Estado Social desencadeou no Estado Democrático de Direito, verdadeiramente comprometido com a realização efetiva de direitos fundamentais, ensejando, ainda, o reconhecimento dos direitos de terceira dimensão, a saber, o direito à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à sadia qualidade de vida, à comunicação, à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural.

Todo esse processo de evolução deu ensejo ao fenômeno denominado de constitucionalização do direito privado, o qual pode ser encarado sob dois aspectos, conforme afirma Eugênio Facchini Neto. [04]

Primeiramente, pode-se constatar que diversos institutos que tipicamente eram disciplinados apenas nos códigos privados passaram a sê-lo também nas constituições contemporâneas, o que alguns doutrinadores chamam de "relevância constitucional das relações privadas". [05]

Em um segundo enfoque, o fenômeno liga-se aos novos avanços da hermenêutica contemporânea, mais precisamente ao princípio da interpretação conforme a Constituição.

De acordo com este princípio, há que se escolher entre as várias interpretações possíveis de um dispositivo, aquela que mais se encontre em harmonia com a Constituição. Mais do que isso, a própria atividade construtiva do intérprete deve ser exercida à luz da norma constitucional, ou seja, o próprio processo interpretativo há de estar em íntima conexão com a mesma.

A interpretação conforme a Constituição visa encontrar uma opção legítima para o conteúdo de um dispositivo tido como suspeito do ponto de vista constitucional. [06]

Nessa ordem de ideias, afirma Jorge Miranda que:

A interpretação conforme à Constituição não consiste tanto em escolher entre vários sentidos possíveis e normais de qualquer preceito, o que seja mais conforme com a Constituição, quanto em discernir no limite – na fronteira da inconstitucionalidade – um sentido que, conquanto não aparente ou não decorrente de outros elementos de interpretação, é o sentido necessário e o que se torna possível por virtude da força conformadora da Lei Fundamental. [07]

Avulta em importância no contexto da constitucionalização do Direito Civil a questão dos princípios constitucionais, os quais podem ser conceituados como espécies de normas jurídicas constitucionais por meio das quais são estabelecidos fins a serem alcançados no caso concreto, conforme as possibilidades normativas e fáticas.

O Direito contemporâneo compreendeu que a lei genérica e abstrata, insensível à realidade social, por si só, é desprovida de conteúdo suficiente aos objetivos de justiça do ordenamento. Foi preciso desenvolver uma dogmática capaz de recuperar a substância da lei, e os limites e instrumentos, para tanto, foram encontrados nas Constituições, as quais passaram a ter plena eficácia normativa. Em conseqüência, reformulou-se o próprio princípio da legalidade, de modo que a lei deixou de ter o posto de supremacia, passando a se subordinar à Constituição.

Estando fixados os limites e contornos da lei nos princípios constitucionais, ela passa a estar intrinsecamente ligada aos direitos positivados na Constituição. A validade da lei, em conseqüência, depende de sua adequação aos direitos fundamentais. [08]

A importância destas normas foi adequadamente exaltada por Walter Burckhardt, citado por Konrad Hesse, na seguinte passagem de sua obra:

[...] aquilo que é identificado como vontade da Constituição ‘deve ser honestamente preservado, mesmo que, para isso, tenhamos de renunciar a alguns benefícios, ou até algumas vantagens justas. Quem se mostra disposto a sacrificar o interesse em favor da preservação de um princípio constitucional fortalece o respeito à Constituição e garante um bem da vida indispensável à essência do Estado, mormente ao Estado democrático’. [09]

Assim, o conteúdo de qualquer dispositivo civilista deve estar impregnado substancialmente pelos princípios e direitos fundamentais contidos na Carta Magna.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald afirmam que tal fenômeno não consiste apenas numa interpretação conforme a Constituição, mas sim numa imposição de uma releitura dos institutos fundamentais do Direito Civil, em decorrência de tê-los reformulado em seu próprio conteúdo. [10]

A Constituição assume o papel que no passado coube ao Código Civil, qual seja, o de centro unificador do ordenamento jurídico, ocupando verdadeiramente o seu papel de norma hierarquicamente superior.

Ocorre que o reconhecimento meramente formal da Constituição como norma superior do ordenamento jurídico não satisfaz os objetivos de efetivação dos direitos fundamentais previstos na mesma. O papel unificador exercido pelo Texto Constitucional requer, acima de tudo, uma aplicação substancial de suas normas. Desta forma, vale ressaltar novamente que a solução das questões civilísticas deve ter como fonte os princípios constitucionais, sobretudo o da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1°, inciso III, da CF/88).

Calha observar que a proteção dos direitos fundamentais requer uma atitude positiva do legislador e do magistrado no sentido de concretizá-los. Embora haja direitos fundamentais portadores de eficácia plena, isto não inviabiliza a produção legislativa com o objetivo de viabilizar concretamente o seu exercício. Por outro lado, a inexistência de normas infraconstitucionais não pode constituir óbice para a eficácia dos mesmos, muito menos a existência de conflito entre o que determina a Lei Maior e a lei infraconstitucional. Pensar de forma contrária, "significaria que a criatura (legislador ordinário) teria mais poder do que seu criador (legislador constituinte)". [11]

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2.2 Direito à vida

O estudo do direito do nascituro a alimentos não prescinde de uma análise acerca do direito à vida. Situa-se este entre os direitos fundamentais ou direitos da personalidade da pessoa natural.

Decerto, prevê a Constituição Federal, em seu art. 5°, caput, expressamente, "a inviolabilidade do direito à vida". Referido direito é a fonte de todos os outros, sendo essencial e o mais importante. Sem a sua garantia, de nada importaria a Constituição erigir a direitos fundamentais outros bens jurídicos, como a liberdade, a igualdade, a propriedade, a privacidade, etc.

O direito à vida é o direito de viver, de ter a sua existência assegurada, enfim, de continuar vivo.

Cumpre ressaltar que referido direito é atemporal, ou seja, não pode ser avaliado pelo tempo de duração da existência humana, devendo, portanto, ser resguardado desde a concepção.

Nesse sentido, Alexandre de Morais afirma que a Constituição Federal protege a vida de uma forma geral, inclusive a uterina, pois, segundo este, a gestação forma um tertium com existência distinta da mãe, apesar de alojado no seu ventre. [12]

A propósito, vige no ordenamento jurídico brasileiro o Pacto de São José da Costa Rica (1969), ratificado pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, que, em seu artigo 4º, n. I, determina que "toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente". [13] Tal dispositivo possui carga normativa de direito fundamental, vez que a Constituição Federal, no § 2°, do artigo 5°, estabeleceu que os direitos e garantias expressos em seu conteúdo não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. O respeito ao Pacto é, pois, imprescindível, sob pena de incorrer-se em inconstitucionalidade, por desrespeito ao referido §2°.

Comentando o comando constitucional supramencionado, Ingo Wolfgang Sarlet afirma que:

[...] a citada norma traduz o entendimento de que, para além do conceito formal de Constituição (e de direitos fundamentais), há um conceito material, no sentido de existirem direitos que, por seu conteúdo, por sua substância, pertencem ao corpo fundamental da Constituição de um Estado, mesmo não constando no catálogo. [14]

Importante atentar, ainda, para a Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a qual estabelece em seu artigo 7º que "a criança e o adolescente têm direito à proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência".

Apesar da existência, em nível infraconstitucional, dessas normas, insta destacar que, com amparo no § 1º, do artigo 5º, da Carta Magna, as normas definidoras do direito à vida têm aplicação imediata. Isso significa dizer que as medidas protetoras deste direito devem ser viabilizadas, ainda que não houvesse lei alguma disciplinando a sua aplicação. Nada obstante, não se deve subestimar a importância da lei para a concretização dos direitos [15]; pelo contrário, é desejável que a mesma exista e produza efeitos.

Por último, há que se observar que não basta garantir a vida pura e simples, mas, sim, garantir o direito à vida com dignidade. Deste modo, a partir da previsão do art. 1°, III, da Constituição Federal, o direito à vida deve ser lido sempre como o direito à vida digna.

2.3 O princípio da dignidade da pessoa humana

A definição do princípio da dignidade da pessoa humana encontra alguns obstáculos, próprios à conceituação dos princípios, por se tratar de norma com maior grau de abstração, o que permite enfoques a partir de diversas perspectivas.

As discussões extra-jurídicas, principalmente nas searas filosófica e sociológica, acerca do referido princípio, atuam como base indispensável para o seu entendimento e interpretação. Com efeito, conforme pondera Peter Häberle, "esse contexto cultural permanece imprescindível para o texto jurídico, justamente porque seu teor lingüístico admite um amplo espectro interpretativo". [16]

Após as atrocidades cometidas na Segunda Guerra Mundial, a Lei Fundamental Alemã de 1949, definitivamente foi responsável pela transição da discussão filosófica-teológica para a de textos jurídicos e a interpretação destes, com a consciência de que se devia preservar, a qualquer custo, a dignidade da pessoa humana.

De se notar que a dignidade humana, prevista no art. 1º, III, da Carta Magna, não foi criada pelo Constituinte, mas sim, reconhecida pelo mesmo. Sendo enunciado pelo Direito, cumpre-se extrair das garantias e direitos fundamentais previstos na ordem jurídica, assim como da consciência coletiva do povo, o seu significado.

Com pertinência, Maria Celina Bodin de Moraes afirma que "neste ambiente, de um renovado humanismo, a vulnerabilidade humana será tutelada, prioritariamente, onde quer que ela se manifeste". [17]

Atuando sobre toda a ordem jurídica, o princípio em tela funciona como verdadeira cláusula geral de tutela da pessoa, que contém em seu cerne a igualdade, a integridade psicofísica, a liberdade e a solidariedade, de modo a proteger o ser humano em suas múltiplas características. [18]

Quanto aos limites temporais de eficácia do princípio em questão, não resta dúvida que, assim como o direito à vida, o mesmo precede ao nascimento, o que já foi reconhecido expressamente pela jurisprudência alemã. Michael Kloepper expõe que a dignidade humana foi reconhecida pelo Tribunal Constitucional Federal a partir da nidação, mas defende, com razão, ser recomendável que se antecipe o momento da proteção para a concepção, ou seja, o instante em que ocorre a fusão do óvulo com o espermatozoide. Nesse aspecto, vai além, ao afirmar, inclusive, que o nascituro deve integrar o rol das pessoas naturais titulares de direitos fundamentais. [19]

Mesmo entre aqueles que não reconhecem a dignidade humana ao nascituro, há quem defenda que este é alcançado por seus efeitos. Decerto, o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana associado ao direito à vida apresenta, segundo Häberle, "efeitos antecipados" e "efeitos póstumos". Estes atuam na proteção da personalidade mesmo depois da morte, enquanto aqueles, que diretamente interessam ao presente estudo, situam-se na luta pela proteção do feto. Exemplo clássico dessa tutela é a proibição do aborto nos vários ordenamentos jurídicos. [20]

A incidência do princípio da dignidade da pessoa humana sobre o nascituro consiste no reconhecimento de que a este devem ser proporcionados todos os meios idôneos e necessários para o seu desenvolvimento com todas as suas potencialidades. Não basta, portanto, garantir a vida do feto, deve-se, pois, conceder ao mesmo o direito de sobreviver em condições de plena dignidade. [21]

Cumpre observar, nesse contexto, que a existência de condições mínimas materiais para vida, tais como assistência médica, alimentação e moradia, é fundamental para a concretização da dignidade humana.


3. O NASCITURO E A SUA CONTROVERTIDA PERSONALIDADE JURÍDICA

De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, em uma acepção gramatical, nascituro é o "que ou aquele que vai nascer". Juridicamente, é definido como "o ser humano já concebido, cujo nascimento é dado como certo". Etimologicamente, é originado do latim "nasciturus (que deve nascer)". [22]

Em primoroso trabalho, Silmara Chinelato e Almeida reconhece o nascituro como a "pessoa por nascer, já concebida no ventre materno (in anima nobile), a qual são conferidos todos os direitos compatíveis com a sua condição especial de estar concebido no ventre materno e ainda não ter dado à luz". [23]

Ao dispor sobre a condição jurídica do nascituro, Rubens Limongi França, aduz que este:

[...] é pessoa porque já traz em si o germe de todas as características do ser racional. A sua imaturidade não é essencialmente diversa da dos recém-nascidos, que nada sabem da vida e também não são capazes de se conduzir. O embrião está para a criança como a criança está para o adulto. Pertencem aos vários estágios do desenvolvimento de um mesmo e único ser: o homem, a pessoa. [24]

O nascituro é, portanto, pessoa ainda não nascida, mas que já está concebida no ventre materno, é o ser humano no período da vida que vai desde o seu início, na concepção, até o nascimento.

3.2 O início da vida humana

Cientificamente, a vida começa a partir da concepção, isto é, no momento em que os gametas masculinos (espermatozoide) entram em contato com os gametas femininos (óvulo), ocorrendo, pois, a fecundação, originando o zigoto. Este novo ser estará totalmente individualizado geneticamente, ou seja, seu DNA será único e irrepetível.

Jérôme Lejeune [25] afirmou que "cada ser humano tem um começo único, que ocorre no momento da concepção". [26] Segundo o mesmo, desde a existência da primeira célula, todos os elementos individualizadores para transformá-la num ser humano estão presentes. [27] Assim, logo após a fertilização, um pequeno ser humano já existe.

Cumpre advertir, entretanto, que, somente com a nidação (fixação do óvulo fecundado no útero), é que o embrião adquire viabilidade, vez que é a partir daí que serão oferecidos àquele os nutrientes necessários para sua sobrevivência.

A Igreja Católica, por sua vez, também considera a concepção como o termo inicial da vida humana. Nesse sentido, afirmação feita pela Declaração sobre o aborto provocado, da Congregação para a Doutrina da Fé (1974):

Na realidade, o respeito pela vida humana impõe-se desde o momento em que começou o processo da geração. Desde quando o óvulo foi fecundado, encontra-se inaugurada uma vida, que não é nem a do pai, nem a da mãe, mas a de um novo ser humano, que se desenvolve por si mesmo. [28]

O mais razoável é que o início da vida seja dado pelos profissionais da biociência, cabendo, pois, ao jurista apenas a sua aplicação e o enquadramento legal.

Afinado com estas questões, o ordenamento jurídico pátrio, expressamente, a partir da Constituição Federal de 1988, confere proteção abrangente à vida humana. Como já se observou, o direito fundamental à vida e a dignidade da pessoa humana adquirem uma posição de destaque no ápice da ordem jurídica.

Vê-se, com isso, que, ao estabelecer tais comandos, a cláusula constitucional de proteção à vida humana não se limita a proteger os que já nasceram.

Arnaldo Rizzardo destaca-se entre os doutrinadores do Direito, ao prelecionar que:

Consuma-se a concepção da vida humana com a separação de fragmentos do corpo masculino e do corpo feminino e a sua união, interpenetrando-se. Há uma nova vida humana, ou um indivíduo diferente, separado e distinto do pai e da mãe; um ser humano em si mesmo, que possui tudo o que é necessário para organizar seu próprio desenvolvimento, seu crescimento e sua individualidade, num ambiente apropriado. [29]

Portanto, pode-se afirmar, indubitavelmente, que o início da vida, para o Direito, há de ter como termo inicial a concepção, vez que o novo ser formado é detentor de atributos biológicos e ontológicos individualizados. Ademais, a ordem jurídica constitucional, de maneira irrestrita, é protetora da vida humana, na qual aquela forma de vida está inserida.

3.3 A personalidade jurídica do nascituro

Sob a ótica civilista, a expressão personalidade corresponde à aptidão genérica atribuída a todos os seres humanos (pessoa natural) e a algumas entidades abstratas (pessoas jurídicas) para adquirir direitos e contrair obrigações, podendo titularizar relações jurídicas, bem como reclamar a proteção jurídica conferida pelos direitos da personalidade.

Por outro lado, sob uma perspectiva civil-constitucional, não se pode limitar a personalidade apenas na possibilidade de ser sujeito de direitos, mais do que isso, relaciona-se com o próprio ser humano, sendo a conseqüência mais relevante do princípio da dignidade da pessoa humana. Isso porque, não se pode olvidar de que existem entes despersonalizados, como, por exemplo, o espólio e a massa falida, que são sujeitos de direito, mas que não possuem personalidade. Dessa forma, a personalidade jurídica não pode se ater simplesmente no conceito de sujeito de direito.

Decerto, em uma ordem jurídica escorada no princípio da dignidade da pessoa humana, a concepção de personalidade jurídica não pode se ater ao cunho abstrato do ideário liberal. É mister entender a personalidade a partir do conteúdo do princípio retromencionado, de modo que a afirmação de que se trata da aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações revela-se simplista e anacrônica. A resignificação da personalidade, com base no princípio da dignidade da pessoa humana, torna aquele instituto um valor ético, apto a atribuir a todo o ser vivo o reconhecimento de direitos necessários a tornar verdadeiramente digna a existência humana.

O cabimento do ajuizamento da ação de alimentos por parte do nascituro tem esbarrado na problemática acerca do início de sua personalidade. A parcela da doutrina que entende que o mesmo não é possuidor do referido direito alega a sua falta de personalidade, a qual impediria o mesmo de ajuizar tal ação.

Sendo a personalidade jurídica a conseqüência mais importante do princípio da dignidade da pessoa humana, e sendo o nascituro protegido por tal princípio, infere-se que o mesmo é dotado desse atributo. A preocupação com a tutela da vida humana e o reconhecimento de que esta começa com a concepção devem servir como premissas, mais do que suficientes, no sentido de que o nascituro possui personalidade jurídica e, em conseqüência, é pessoa.

A personalidade jurídica é, pois, o atributo necessário para que o nascituro possa fazer jus a direitos instrumentais ao seu desenvolvimento com dignidade, dentre os quais se destaca o direito a alimentos. Negar a personalidade ao ser já concebido é impedir que este possa ter o exercício dos direitos e garantias idôneos à efetivação do seu direito à vida. [30]

Em razão dos efeitos jurídicos decorrentes da atribuição de personalidade jurídica a um sujeito, identificar-se quem possui tal atributo e o momento em que este tem início afigura-se de fundamental relevância. A possibilidade do nascituro pleitear alimentos é indissociável a esse tema, em relação ao qual desenvolveram-se três teorias.

Em face da flagrante contradição existente no art. 2º, do Código Civil, algumas teorias foram criadas para definir-se o início da personalidade civil do ser humano, sendo que as mais significativas são a natalista, a da personalidade condicional e a concepcionista.

A teoria natalista, fundamentada na primeira parte do mencionado artigo 2º, entende que, antes do nascimento, o nascituro não é considerado pessoa, não possuindo, por conseguinte, personalidade jurídica, mas apenas uma expectativa de personalidade.

A segunda teoria, conhecida como teoria da personalidade condicional, sustenta o início da personalidade do nascituro a partir da concepção, com a condição de que nasça com vida, configurando-se, pois, como uma condição suspensiva.

Dessa forma, se o nascituro nascer com vida, a sua personalidade jurídica retroagirá à data de sua concepção. Do contrário, se o nascimento ocorrer sem vida ou se sequer ocorrer, não terá se cumprido a condição, não havendo, portanto, personalidade jurídica.

Ocupando uma posição de destaque entre os partidários dessa corrente, Washington de Barros Monteiro ensina que, seja qual for a conceituação, há para o feto uma expectativa de vida humana, sendo, pois, uma pessoa em formação, não podendo a lei ignorá-lo, de modo que lhe salvaguarda os eventuais direitos. [31]

Por fim, a corrente concepcionista, também chamada de verdadeiramente concepcionista, sustenta que a personalidade inicia-se a partir da concepção e não do nascimento com vida, sendo que, desde aquele momento, o nascituro é considerado pessoa.

Referida teoria é consubstanciada na segunda parte do artigo 2º do Código Civil, que garante direitos ao nascituro, desde a concepção. Alegam os seus defensores que, possuindo direitos assegurados por lei, o nascituro é considerado pessoa e, portanto, detentor de personalidade jurídica.

À luz desse entendimento, Silmara Chinelato acentua que, partindo-se da dicção do texto legal, o qual confere proteção aos direitos do nascituro, não se pode negar a existência de sua personalidade jurídica. [32]

Nessa linha de raciocínio, R. Limongi França, em lição sempre precisa, aduz que "não há nação que se preze (até a China) onde não se reconheça a necessidade de se proteger os direitos do nascituro (Código Chinês, art. 7º). Ora, quem diz direitos afirma capacidade. Quem afirma capacidade reconhece personalidade". [33]

Em síntese, afirmam que não há como explicar que o nascituro possa ter direitos legalmente assegurados, sem que seja considerado pessoa, sendo que o sinal mais acentuado de que possui personalidade jurídica é o fato do legislador ter disciplinado o crime de aborto no título referente aos "Crimes contra a pessoa".

Em brilhante análise sobre a personalidade do nascituro, Maria Helena Diniz diferencia a personalidade material e formal, afirmando que, na vida intra-uterina, o mesmo possui capacidade jurídica formal, no que atina aos direitos personalíssimos, sendo que, somente com o nascimento com vida, passaria este a ter personalidade jurídica material, alcançando os direitos patrimoniais, os quais permaneciam em estado potencial. [34]

Como se percebe, a grande controvérsia doutrinária referente à natureza jurídica do nascituro, que impera no âmbito jurídico, tem como base de discussão somente o Código Civil, o que torna difícil se chegar a um entendimento pacífico acerca da matéria.

De fato, o preceito que disciplina a matéria no Código apresenta-se de forma dúbia, sobretudo quando se realiza uma interpretação lógico-sistemática do mesmo, em face de outros dispositivos do mencionado diploma legal.

O que a maioria da doutrina parece não atentar, até o momento, é que, a partir da promulgação da Carta Constitucional de 1988, só se pode sustentar a existência de uma única teoria para designar o início da personalidade jurídica, a teoria concepcionista, vez que esta, ancorada no princípio da dignidade da pessoa humana como valor supremo, protege a vida desde o seu início, considerando o nascituro como pessoa, sujeito de direitos, consignando-se tratar da personalidade formal e não material, pois, esta última, seria adquirida a partir do nascimento com vida.

Ademais, conforme se afirmou anteriormente, diante de uma contradição existente em um preceito legal, de modo a fazer surgir diversas interpretações, deve-se escolher aquela que mais se coaduna com o espírito constitucional, que, decerto, é a que concede personalidade ao nascituro, por tudo que foi aqui foi exposto neste trabalho.

Relembre-se, ainda, que a atividade do intérprete deve ser guiada pelos princípios previstos no Texto Constitucional. Assim, a própria descoberta da norma contida no dispositivo do art. 2°, do Código Civil, deve ser realizada à luz daqueles, de maneira que desse modo também não se pode afastar do nascituro o reconhecimento da personalidade.

Por certo, é na Constituição Federal que se encontra o fundamento para a defesa da teoria concepcionista. Reafirme-se que o mero reconhecimento de direitos a um determinado ente não é premissa suficiente à conclusão de que este possui personalidade. Tal equívoco é provocado pela insistência em situar o Código como norma central do Direito Civil e interpretá-lo fazendo uso de uma hermenêutica distante dos princípios constitucionais.

Afora a norma constitucional que protege a vida humana, outras há, como já citado, em nível infraconstitucional, que se voltam à mesma tutela.

Os natalistas amparam-se em lei ordinária, enquanto que a teoria concepcionista encontra-se alicerçada em norma constitucional, de modo que o acerto pela adesão a esta atende aos fins maiores da ordem jurídica vigente.

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Sobre a autora
Jamille Argôlo Góes

Analista Judiciário do Supremo Tribunal Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GÓES, Jamille Argôlo. Direito do nascituro a alimentos.: Uma abordagem civil-constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2442, 9 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14464. Acesso em: 22 dez. 2024.

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