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Da incompatibilidade entre as cláusulas exorbitantes do contrato administrativo e os paradigmas do Estado Democrático de Direito.

O princípio do Estado Democrático de Direito e o princípio da tutela da confiança

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4.CLÁUSULAS EXORBITANTES

4.1. LINHAS INICIAIS

O conceito originário de cláusula exorbitante, como elemento da própria teoria do contrato administrativo, não poderia haver nascido de outra mãe que não a doutrina francesa, a bem da verdade claramente fecundada pelas decisões do Conselho de Estado daquele país.

Por certo, deve-se aos juristas franceses a ideia de cláusula exorbitante como disposições de caráter incomum aos contratos de direito privado, seja por que neles seriam eivadas de nulidade, seja porque incompatíveis como a natureza da relação.

O Prof. Hely Lopes Meireles, seguindo a doutrina francesa, defende que:

As cláusulas exorbitantes não seriam lícitas num contrato privado porque desigualariam as partes na execução do avençado, mas são absolutamente válidas no contrato administrativo, uma vez que decorrem da lei ou dos princípios que regem a atividade administrativa e visam a estabelecer prerrogativas em favor de uma das partes para o perfeito atendimento do interesse público, que se sobrepõe sempre aos interesses particulares. [34]

De acordo com o mestre José Cretella Júnior:

[...] cláusula exorbitante do direito comum é toda proposição que se insere no contrato administrativo tipificando-o. A teoria da cláusula exorbitante ou derrogatória permite estabelecer a diferença entre o contrato administrativo e o contrato de direito privado, ou seja, os primeiros abrigam cláusulas especiais, que fogem do direito civil, configurando o regime jurídico especial de direito público. [35]

[...] Alguns autores definem a cláusula exorbitante como toda cláusula estranha ou desusada nos contratos de direito privado ou, em outras palavras, toda cláusula que, inserida num contrato de direito privado, iria atentar contra a ordem pública. [36]

Conforme a lição do Mestre Diogo de Figueiredo Moreira Neto [37], as cláusulas exorbitantes, na doutrina clássica, obedecem à seguinte tipologia:

Cláusulas de executoriedade – decorrem da lei, e não de imposição contratual. Se referem ao plano do exercício dos direitos. São extracontratuais, pois extracontratual é o privilégio da execução prévia (autoexecutoriedade);

Cláusulas de jus variandi – a possibilidade de alterar unilateralmente contratos, como expressão do império da administração – supremacia do interesse público.

A relevância do conceito das cláusulas exorbitantes para a própria "sobrevivência" doutrinária da dita teoria do contrato administrativo fica patente na emblemática lição do Prof. Edmir Netto de Araújo, que defende sem pudor que o instituto das cláusulas exorbitantes:

Trata-se do ‘divisor de águas’ entre o contrato de direito privado e o contrato de direito administrativo, que ainda suscita controvérsias entre os juristas, mas que permite reafirmar a posição de supremacia da Administração dentro do contrato, verticalizando o Estado em relação ao particular contratante, e deixando claro que a Administração, ao contratar, não abdica de sua puissance publique, mas que ao contrário, dirige o contrato, fiscalizando os atos do contratante particular, aplicando-lhe penalidades, concedendo-lhe benefícios, determinando-lhe procedimento, enfim, impondo-lhe sujeições com fundamento no interesse público. [38]

Conclui-se, portanto, que de acordo com a doutrina dita "clássica" sobre o tema - claramente pautada nos paradigmas do Estado Moderno, conforme se verá em momento oportuno - as cláusulas exorbitantes constituem elementos de caracterização do próprio contrato administrativo, sendo concebidas como o instrumento mais eficaz à garantia da posição de supremacia da Administração em relação ao contratante privado, permitindo-lhe moldar o acordo de vontades às eventuais variações do interesse público.


4.O FUNDAMENTO MODERNO DE VALIDADE DAS CLÁUSULAS EXORBITANTES. O "PRINCÍPIO" DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO.

5.1. LINHAS INICIAIS.

O século passado, em especial a sua segunda metade, foi marcado pelo surgimento, no campo das ciências sociais, do movimento denominado de pós-modernismo [49] caracterizado, dentre vários outros aspectos, pela a revisão dos conceitos jurídicos, políticos e sociais a partir e além das claras mutações registradas na sociedade e no Estado (consequentemente na Administração Pública).

O modelo político hegemônico instaurado nos países capitalistas centrais do início do século, o do Estado-Providência, com sua característica marcante de regulamentação extensiva e intensiva das relações sociais [50] passou a ser objeto de sérios e fundamentados questionamentos.

O insuperável jus-sociólogo lusitano, Boaventura de Sousa Santos, destacando alguns dos aspectos do contexto histórico que conduziu ao questionamento dos paradigmas da modernidade, esclarece que:

[...] a partir de finais dos anos sessenta, acumulam-se os sinais de crise do formalismo reformista, uma crise que com os anos se tem vindo a aprofundar, e de tal maneira que podemos caracterizar o tempo presente como de um novo movimento de pêndulo, desta vez no sentido do informalismo, um movimento que parece ser também o do estatismo para o civilismo, do coletivismo para o individualismo, do publicismo para o privatismo, da estética modernista para a estética pós-modernista, da totalidade estruturalista para a desconstrução pós-estruturalista." [51]

No campo da teoria do direito, o reconhecimento dos novos paradigmas do pós-modernismo implicou no início de um movimento amplo de construção de uma "unidade (hierarquicamente sistematizada) do ordenamento jurídico" [52], com a consequente desmaterialização das fronteiras entre direito público e direito privado.

Na doutrina brasileira, as precursoras lições da mãe do movimento de constitucionalização do Direito Civil, Maria Celina Bodin, apontam para a necessidade de reavaliação de conceitos jurídicos seculares que – felizmente -, não mais se coadunam com a realidade social e política contemporânea.

Com cada vez maior freqüência aumentam os pontos de confluência entre o público e o privado, em relação aos quais não há uma delimitação precisa fundindo-se, ao contrário, o interesse público e o interesse privado. Tal convergência se faz notar em todos os campos do ordenamento, seja em virtude do emprego de instrumentos privados por parte do Estado em substituição aos arcaicos modelos autoritários, seja na elaboração da categoria dos interesses difusos ou supra-individuais, seja, no que tange aos institutos privados, na atribuição de função social à propriedade, na determinação imperativa do conteúdo de negócios jurídicos, na objetivação da responsabilidade e na obrigação de contratar.

Defronte de tantas alterações, direito privado e direito público tiveram modificados seus significados originários: o direito privado deixou de ser o âmbito da vontade individual e o direito público não mais se inspira na subordinação do cidadão.

Mais: no Estado Democrático de Direito, delineado pela Constituição de 1988, que tem entre seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o antagonismo público-privado perdeu definitivamente o sentido. [53]

O também civilista, Ministro do Superior Tribunal de Justiça e Professor, José Augusto Delgado, bem observou que "o tecido social sofreu severas mudanças no relacionamento que o integra." [54]

Se nem mesmo o Direito Civil deixou de sofrer – e mais que isto, reconhecer - os influxos da pós-modernidade, o Direito Administrativo, obviamente, não poderia sair "imune" a tais mudanças, tendo ele próprio, como forma de garantir até mesmo a sua relevância como ramo autônomo do Direito, que evoluir e conformar-se ao Estado Democrático de Direito.

5.2. DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO À SUPREMACIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. A VALORIZAÇÃO DO INDIVÍDUO COMO CAMINHO PARA A EFETIVA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO.

Conforme destacam os Professores Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio de Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet, em excepcional obra coletiva:

[...] entende-se como Estado Democrático de Direito a organização política em que o poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes, escolhidos em eleições livres e periódicas, mediante sufrágio universal e voto direto e secreto, para o exercício de mandatos periódicos, como proclama, entre outras, a Constituição brasileira. Mais ainda, já agora das relações concretas entre o Poder e o indivíduo, considera-se democrático aquele Estado de Direito que se empenha em assegurar aos seus cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos civis e políticos, mas também e sobretudo dos direitos econômicos, sociais e culturais, sem os quais de nada valeria a solene proclamação daqueles.

[...] o Estado Democrático de Direito é aquele que se pretende aprimorado, na exata medida em que não renega, antes incorpora e supera, dialeticamente, os modelos liberal e social que o antecederam e que propiciaram o seu aparecimento no curso da História. [55]

Com o emergir do Estado Democrático de Direito, reconhecido como essência política da pós-modernidade, a marca dominante do poder estatal deslocou-se da supremacia da administração para a supremacia dos direitos fundamentais e o Direito Administrativo, a contragosto de grande parte da doutrina, não pode deixar de se adequar a esse novo cenário [56].

Em brilhante consideração acerca do Direito Administrativo na pós-modernidade, leciona o Prof. Diogo de Figueiredo Moreira Neto que:

[...] o conceito pós-moderno de direito administrativo que se delineia nesta abertura do século XXI, já passa a se apresentar com características bastante diferenciadas em relação ao conceito anterior, tais como: 1º - a de ser mais um direito dos administrados do que um direito do estado; 2º - a de servir a cidadãos e não mais a súditos; 3º - a de mostrar-se muito mais um direito de proteção e de prestação do que um direito de imposição; (...) 5º - a de tornar-se, cada vez mais, um direito da consensualidade, em vez de um direito da imperatividade. [57]

O dogma generalista do bem estar individual como resultado natural e necessário do bem estar comum (coletivo) passa a ser revisto sob a ótica pós-modernista.

Nesse sentido é a conclusão do maior constitucionalista vivo, J.J. Gomes Canotilho, reconhecendo que "o mundo pós-moderno será mesmo um mundo plural (dos ‘discursos’, das ‘ histórias’, das ‘ideias’, dos ‘progressos’), onde existe apenas um singular: o indivíduo." [58]

Também o Prof. Marcelo Neves alerta para o fato de que "o Estado Democrático de Direito pressupõe a tolerância: respeito recíproco e simétrico às diferenças. Isso importa hoje ‘multiculturalismo’ na esfera pública pluralista." [59]

O universalismo moderno claramente deu lugar ao relativismo pós-moderno.

O que impressiona é perceber que a exacerbação de uma pretensa independência [60] do Direito Administrativo como ramo do direito ocasionou - e ainda ocasiona - a dificuldade de incorporação, pela doutrina e jurisprudência, de conceitos que já se encontram assentes no constitucionalismo contemporâneo.

O Direito Administrativo teima em aceitar - e a manutenção do instituto das cláusulas exorbitantes como forma de verticalização da relação entre o Estado e o Contratado privado é um exemplo claro de tal "teimosia" - que o Estado Democrático de Direito atual possui como pedra base os direitos fundamentais, pautados na dignidade da pessoa humana, com a atribuição, como não poderia deixar de ser, de expressivo valor ao indivíduo [61].

Valor esse que motiva Miguel Reale a afirmar que "a pessoa é o valor-fonte dos demais valores, aos quais serve de fundamento como categoria ontológica pré-constituinte ou supraconstitucional." [62]

Defende ainda o respeitado mestre que:

[...] toda pessoa é única e que nela já habita o todo universal, o que faz dela um todo inserido no todo da existência humana; que, por isso, ela deve ser vista antes como centelha que condiciona a chama e a mantém viva, e na chama a todo instante crepita, renovando-se criadoramente, sem reduzir uma à outra; e que afinal, embora precária a imagem, o que importa é tornar claro que dizer pessoa é dizer singularidade, intencionalidade, liberdade, inovação e transcendência, o que é impossível em qualquer concepção transpersonalista, a cuja luz a pessoa perde os seus atributos como valor-fonte da experiência ética para ser vista como simples "momento de um ser transpessoal" ou peça de um mecanismo, que, sob várias denominações, pode ocultar sempre o mesmo "monstro frio": "coletividade", "espécie", "nação", "classe", "raça", "idéia", "espírito universal", ou "consciência coletiva". [63]

Ao que parece, grande parte dos administrativistas não querem enxergar o que se apresenta flagrante às suas faces, em forma de lições como as precedentes ou mesmo as do Prof. Daniel Sarmento, segundo o qual:

O Princípio da Dignidade exprime, por outro lado, a primazia da pessoa humana sobre o Estado. A consagração do princípio importa no reconhecimento de que a pessoa é o fim, e o Estado não mais do que um meio para a garantia e promoção dos seus direitos fundamentais. [64]

A questão é que, conforme se abordará adiante, introduzir no ventre do Direito Administrativo (moderno) tais ideais contemporâneos implica em, certamente, afastar "verdades incontestáveis" e "hábitos" doutrinários de uma forma muito dolorosa.

5.3. AS CLÁUSULAS EXORBITANTES DIANTE DE UMA HERMENÊUTICA CRÍTICA DO "PRINCÍPIO" DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO.

As cláusulas exorbitantes, entendidas como instituto que instrumentaliza a faculdade estatal de instabilizar os vínculos contratuais estabelecidos com os contratantes privados, seja alterando unilateralmente as condições previamente pactuadas (jus variandi) ou extinguindo inopinadamente a relação jurídica, gozou, durante longo período, de aceitação indiscutível pela doutrina e jurisprudência.

Essa ausência de questionamento, conforme já antecipado em linhas precedentes, não representa mais que um reflexo do reconhecimento das cláusulas exorbitantes como derivação do próprio "princípio" da supremacia do interesse público sobre os interesses particulares, nos precisos contornos que lhe foram dados pelos paradigmas da modernidade.

Para os adeptos da doutrina administrativista moderna, o instituto das cláusulas exorbitantes (ou derrogatórias do direito privado) constitui um claro e relevante exemplo de prerrogativa da Administração, que, como tantas outras, se apoia na ideia de satisfação "do interesse público".

Inspirada em Rousseau e na sua definição de "vontade geral", essa visão contribuiu para a "potencialização" da ideia de verticalização da relação contratual travada entre particulares e a administração pública, com a superioridade desta última.

Numa exaltação quase que religiosa, os juristas aprenderam a simplesmente aceitar que o Estado é diferente e, por isso, foge ao princípio da isonomia.

Mais que isso, os juristas aprenderam, com o mesmo Rousseau, a acreditar que o Estado é diferente e deve ser tratado de forma desigual porque é essa a vontade geral, porque é isso que reflete os anseios sociais mais profundos.

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É esse, por certo, o pecado original: passar-se a crer que, num Estado de Direito, a Administração Pública pode (e deve) desconsiderar interesses individuais, ainda que relevantes e mesmo constitucionalmente protegidos, sempre que tais interesses se oponham aos ditos "interesses públicos".

O tempo, por seu turno, comprovou que a abstração conceitual da dita supremacia do interesse público não atendeu aos anseios práticos da sociedade contemporânea, muito pelo contrário, somente serviu – e ainda serve - como escusa à atuação prudente das administrações.

No campo das relações contratuais estabelecidas entre o Estado e os particulares a situação tomou proporções ainda maiores, certamente pela contribuição determinante das cláusulas exorbitantes.

O resultado dessa postura doutrinária e jurisprudencial, na prática, tem sido desastroso, haja vista que, especialmente, mas não só, no caso brasileiro, a "prerrogativa" de mutação unilateral das condições previamente contratadas, a despeito das poucas limitações e condições impostas em lei, recorrentemente é utilizada para os mais irregulares e imorais fins.

É comum presenciar-se situações concretas em que, por meio do manuseio de cláusulas exorbitantes, a Administração burla ou manipula a realização de certames obrigatórios, favorecendo determinados contratantes privados e perseguindo tantos outros.

Ademais, não se pode deixar de considerar que, sob a "proteção" da prerrogativa consubstanciada no instituto das cláusulas exorbitantes, o Estado desinteressou-se pela competitividade, consensualidade e, o que é pior, pela confiabilidade, o que, atualmente, é sentido nos cofres públicos, com o afastamento cada vez maior dos investimentos privados.

A verdade é que o menosprezo pelos interesses dos particulares contratantes tem concretizado a profecia de Francis Paul Benoit, que há muito alertava que "se se procedesse desta maneira, é perfeitamente evidente que a Administração não encontraria contratantes". [65]

Uma esperança de solução para essas mazelas pode ser encontrada no próprio seio do Estado Democrático de Direito contemporâneo, que ao trazer consigo relevantes mudanças dos paradigmas da modernidade, tem implicado no gradativo reconhecimento da queda de grande parte dos dogmas do Direito Administrativo moderno.

Nesse diapasão, o mais expressivo dogma a ser abolido certamente consubstancia-se no "princípio" da supremacia do interesse público.

A coragem – ou ousadia – para trilhar tão árdua caminhada se encontra nas lições do mestre Boaventura de Sousa Santos que oportunamente relembra que:

Pensar-se o direito além da dicotomia Estado-sociedade civil e das que lhe estão próximas – as dicotomias público privado e formal-informal – exige uma dupla hermenêutica: uma hermenêutica negativa que critique a suposta unicidade e continuidade da tradição jurídica moderna e uma hermenêutica reconstrutiva que recupere e invente as tradições e as práticas suprimidas pela vigência ‘universal’ do cânone moderno. As duas hermenêuticas não são dois procedimentos teóricos autônomos: são dois momentos diferentes da mesma hermenêutica crítica.

A hermenêutica crítica do direito moderno parte da idéia de que o projecto da modernidade, sendo embora a herança cultural hegemônica da nossa contemporaneidade, não é, contudo, a única. O mundo moderno, mais do que qualquer outro, é um mundo de heranças plurais e, por vezes, conflituais que, de resto, se reconstituem e renovam incessantemente sob o nosso olhar. A ‘universalidade’ da grande tradição moderna assenta na supressão desta pluralidade e desta conflitualidade. [66]

Previamente pedindo desculpas pela mórbida metáfora que se seguirá, o que se almeja, até porque é esse o objetivo primacial da presente abordagem, é que, ao final, ferindo-se de morte a mãe, o filho consequentemente pereça.

Como bem destaca o Prof. Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

[...] esta questão das cláusulas exorbitantes dos contratos administrativos é apenas um aspecto em detalhe, embora relevante por sua crescente importância na vida econômica, que se vem inserindo, entre tantos outros, no amplíssimo contexto da renovação de valores e de instituições, que está apenas no seu início, na tarefa de construção efetiva do Estado Democrático de Direito. [67]

Segundo o aludido mestre, os novos paradigmas da pós-modernidade e sua contribuição para a "construção efetiva do Estado Democrático" têm implicado numa:

[...] nítida evolução do conceito de ‘prerrogativa’ para satisfação do interesse público: desde a arbitrariedade das "razões de estado" (de origem absolutista), passando pela definição da "discricionariedade", então, "substantivamente insindicável" (do direito administrativo clássico), até a revisão da "discricionariedade", já entendida como amplamente sindicável, que é hoje assente no direito administrativo pós-moderno. [68].

Nesse cenário, não há mais como acolher cegamente a ideia da existência de uma prerrogativa que possibilite que o Estado, sob a alegação de estar agindo de acordo com o influxo da supremacia do interesse público, altere unilateralmente condições legítima e previamente pactuadas com o particular.

Em verdade sequer se pode continuar concebendo a supremacia do interesse público, nos contornos que lhe talharam a modernidade, como efetivo princípio jurídico. Esclareça-se.

Fazendo uso das palavras do Professor Luís Roberto Barroso, pode-se fazer um sintético apanhado acerca da distinção qualitativa entre regras e princípios.

Regras são proposições normativas aplicáveis sob a forma de tudo ou nada (all or nothing). Se os fatos nela previstos ocorrerem, a regra deve incidir, de modo direto e automático, produzindo seus efeitos. Por exemplo: a cláusula constitucional que estabelece a aposentadoria compulsória por idade é regra. Quando o servidor completa setenta anos, deve passar à inatividade, sem que a aplicação do preceito comporte maior especulação. O mesmo se passa com a norma constitucional que prevê que a criação de uma autarquia depende de lei específica. O comando é objetivo e não dá margem a elaborações mais sofisticadas acerca de sua incidência. Uma regra somente deixará de incidir sobre a hipótese de fato que contempla se for inválida, se houver outra mais específica ou se não estiver em vigor. Sua aplicação se dá, predominantemente, mediante subsunção.

Princípios contêm, normalmente, uma maior carga valorativa, um fundamento ético, uma decisão política relevante, e indicam determinada direção a seguir. Ocorre que, em ordem pluralista, existem outros princípios que abrigam decisões, valores ou fundamentos diversos, por vezes contrapostos. A colisão de princípios, portanto, não só é possível como faz parte da lógica do sistema, que é dialético. Por isso sua incidência não pode ser posta em termos de tudo ou nada, de validade ou invalidade. Deve-se reconhecer aos princípios uma dimensão de peso ou importância. [...]

A aplicação dos princípios se dá, predominantemente, mediante ponderação.

É justamente neste ponto que o conceito de supremacia do interesse público conflita com a toda a construção doutrinária acerca dos princípios jurídicos, uma vez que "o referido ‘princípio’, porquanto determine a preferência ao interesse público diante de um caso de colisão com qualquer que seja o interesse privado, independentemente das variações presentes no caso concreto, termina por suprimir os espaços para ponderações." [69]

E mais, destaca com brilhantismo o Professor Gustavo Binenbojm que:

[...] não há como conciliar no ordenamento jurídico um "princípio" que, ignorando as nuances do caso concreto, pré-estabeleça que a melhor solução consubstancia-se na vitória do interesse público. O "princípio" em si afasta o processo de ponderação, fechando as portas para os interesses privados envolvidos. [70]

O reconhecimento da centralidade do sistema de direitos fundamentais instituído pela constituição e a estrutura pluralista e maleável dos princípios constitucionais inviabiliza a determinação a priori de uma regra de supremacia absoluta dos interesses coletivos sobre os interesses individuais ou dos interesses públicos sobre os interesses privados. A fluidez conceitual inerente à noção de interesse público, aliada à natural dificuldade em sopesar quando o atendimento do interesse público reside na própria preservação dos direitos fundamentais (e não na sua limitação em prol de algum interesse contraposto da coletividade), impõe à administração pública o dever jurídico de ponderar os interesses em jogo, buscando a sua concretização até um grau máximo de otimização. [71]

É necessário que se deem ouvidos, ainda que tardiamente, ao alerta do Mestre Orlando Gomes que, já em 1961, defendia que:

No fundo, a idéia do primado do Estado implica a aceitação, pelos indivíduos, do vínculo de subordinações: a troca da túnica do cidadão pela camisa do súdito.

O Estado passa a ser a personificação de um interesse superior, erigido em tabu. Escudando-se nessa mística, assume uma posição que lhe permite impor a vontade, com o aplauso de todos.

O Direito colabora nesse processo de contenção da personalidade individual, proporcionando os meios técnicos de realizá-lo.

No seu sugestivo estudo sôbre o declínio do direito, RIPERT enumera e analisa os modos de intervenção do Estado nos interêsses privados, desdobrando a gama das intervenções nesta ordem: proibir, autorizar, ordenar, fiscalizar e explorar. [...]

Mas os diversos modos de intervenção cobraram um desenvolvimento que afetou o próprio mecanismo jurídico, em virtude da lei dialética de transformação da qualidade pela quantidade. As proibições multiplicaram-se. O domínio da "ordem pública", outrora restrito às instituições da vida política e da vida familiar, estendeu-se à vida econômica, para limitar, nesse setor, a liberdade de agir dos indivíduos. A prévia autorização administrativa para a validade de atos privados perdeu o seu sentido de concurso, para adquirir o de contrôle. O poder de impor obrigações é usado largamente, através da criação de grande número de situações contratuais de origem legal, que culminam no contrato obrigatório. Por fim, a fiscalização dos atos, como atitude, faz a autoridade onipresente, excedendo-se com tamanha amplitude, que o Estado, sob o pretexto de proteger trabalhadores ou de arrecadar impostos, mantém toda a comunidade sob o regime de uma vigilância verdadeiramente policial. [72]

Não se pode perder de vistas que o Estado Democrático de Direito não comporta concepções utilitaristas ou organicistas por meio das quais se pregue a adoção de soluções que, desprezando interesses minoritários, faça prevalecer os de uma determinada parcela da população ou força política.

O reconhecimento da supremacia da Constituição e do fundamento maior do Estado Democrático como residente na promoção da dignidade da pessoa humana clamam para que se discorde de lições, ainda que extremamente respeitáveis e com autoridade acadêmica inquestionável, segundo as quais se vislumbra o interesse público como "um somatório de interesses individuais coincidentes em torno de um bem da vida". [73]

Muito mais razão se encontra nos ensinamentos do Professor Luís Roberto Barroso, segundo o qual, na atualidade:

A Constituição passa a ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central. [74]

Em complementação à ideia, vale pedir apoio ao mestre Daniel Sarmento, de acordo com o qual a dimensão objetiva dos direitos fundamentais:

[...] prende-se à visão de que os direitos fundamentais cristalizam os valores mais essenciais de uma comunidade política, que devem se irradiar por todo o ordenamento, e atuar não só como limites, mas também como impulso e diretriz para a atuação dos Poderes Públicos. Sob esta ótica, tem-se que os direitos fundamentais protegem bens jurídicos mais valiosos, e o dever do Estado não é só o de abster-se de ofendê-los, mas também o de promovê-los e salvaguardá-los das ameaças e ofensas provenientes de terceiros. E para um Estado que tem como tarefa mais fundamental, por imperativo constitucional. A proteção e promoção dos direitos fundamentais dos seus cidadãos, a garantia destes direitos torna-se também um autêntico interesse público. [75]

Aliás, é o próprio Daniel Sarmento quem destaca que:

Uma das mais importantes conseqüências da dimensão objetiva dos direitos fundamentais é o reconhecimento da sua eficácia irradiante. Esta significa que os valores que dão lastro aos direitos fundamentais penetram por todo o ordenamento jurídico, condicionando a interpretação das normas legais e atuando como impulsos e diretrizes para o legislador, a administração e o Judiciário. A eficácia irradiante, neste sentido, enseja a "humanização" da ordem jurídica, ao exigir que todas as suas normas sejam, no momento da aplicação, reexaminadas pelo operador do direito com novas lentes, que terão as cores da dignidade da pessoa humana, da igualdade substantiva e da justiça social, impressas no tecido constitucional.

A eficácia irradiante tem na interpretação conforme a Constituição um dos seus mais férteis instrumentos. Esta técnica, segundo a doutrina mais autorizada, desempenha concomitantemente os papéis de princípio hermenêutico e mecanismo de controle de constitucionalidade.[...]

Porém a eficácia irradiante não se exaure nesta técnica, pois ela não é mobilizada apenas para momentos de patologia da ordem jurídica, quando se dá o exercício, concreto ou abstrato, do controle de constitucionalidade. Na verdade, a eficácia irradiante transcende este plano, pois deve ser operacionalizada no dia-a-dia do direito, nas suas aplicações mais banais e corriqueiras, e não apenas nos momentos de crise do ordenamento. De fato, assentando-se na premissa de que os direitos fundamentais configuram o epicentro da ordem jurídica, a eficácia irradiante impõe uma nova leitura de todo o direito positivo. Através dela os direitos fundamentais deixam de ser concebidos como meros limites para o ordenamento, e se convertem no norte do direito positivo, no seu verdadeiro eixo gravitacional. [76]

Na esteira desse raciocínio, não há como se anuir com uma prerrogativa que, sob o fundamento da existência da supremacia do interesse público, se preste a permitir a alteração unilateral, por parte do Estado, das condições previamente fixadas num contrato travado com um particular, desconsiderando seus interesses individuais ou limitando-os a interesses meramente pecuniários, quando, em verdade, a real promoção dos direitos fundamentais do indivíduo, nos moldes plenos previstos na nossa Carta Maior, importa em reconhecer, sem receio, que "a proteção, embora parcial, de um interesse privado constitucionalmente consagrado pode representar, da mesma forma, a realização de um interesse público." [77]

5.4.AS CLÁUSULAS EXORBITANTES E O PRINCÍPIO DA CONFIANÇA LEGÍTIMA

5.4.1. Linhas introdutórias

Não obstante seja essencial na presente abordagem demonstrar a incompatibilidade entre a prerrogativa das cláusulas exorbitantes e o atual estágio de desenvolvimento do Estado Democrático de Direito, em razão até mesmo da necessidade de atual afastamento da concepção da supremacia do interesse público como princípio jurídico – o que se espera haver logrado êxito nas linhas precedentes - é imperioso destacar que não é essa, por certo, a única incompatibilidade a apresentar relevância.

Outro ponto que não pode fugir à análise diz respeito à impossibilidade de convivência simultânea entre o conceito de cláusulas exorbitantes dos contratos administrativos e o Princípio da Confiança Legítima, que deve reger a atuação estatal.

5.4.2. O Princípio da Confiança Legítima. Origem e conceito.

O princípio da tutela da confiança legítima claramente decorre da chamada doutrina dos atos próprios (venire contra factum proprium) que, com origem no direito privado, significa, sinteticamente, a vinculação do autor de uma declaração de vontade, geralmente de caráter tácito, ao sentido objetivo nela contido, de modo a implicar na impossibilidade de adotar, posteriormente, um comportamento contraditório.

O fundamento último do venire contra factum proprium reside na proteção que objetivamente requeira a confiança que se possa haver depositado em um comportamento alheio, bem como na regra de boa-fé que impõe o dever de coerência nos comportamentos.

A visão publicista do princípio da confiança legítima foi inicialmente desenvolvida no seio da jurisprudência alemã [78], sendo muito bem – e rapidamente – acolhida pelo direito comunitário europeu [79] e, em sequência, recepcionada individualmente pelos países da Europa, os quais, em grande parte, incorporaram sua ideia central aos seus ordenamentos jurídicos nacionais, até mesmo positivando-o.

Oportuna se afigura a transcrição da lição de Almiro do Couto e Silva, que tecendo um breve apanhado histórico sobre o tema acentuou que:

O ponto inicial da trajetória está na opinião amplamente divulgada na literatura jurídica de expressão alemã no início do século [séc. XX] de que, embora inexistente na órbita da Administração Pública, o princípio da res judicata, a faculdade que tem o Poder Público de anular seus próprios atos tem limite não apenas nos direitos subjetivos regularmente gerados, mas também no interesse em proteger a boa-fé e a confiança (Treue und Glauben) dos administrados. [80]

Por certo, na esfera do Direito Público, o princípio da confiança legítima foi inicialmente utilizado como limite à revisão dos atos administrativos concretos. Mas logo ganhou dimensões muito mais expressivas.

É isso que registra a lição do insuperável mestre de Coimbra, J.J. Gomes Canotilho, que, com o brilhantismo habitual, percebeu que:

Na actual sociedade de risco cresce a necessidade de actos provisórios e actos precários a fim de a administração poder reagir à alteração das situações fáticas e reorientar a prossecução do interesse público segundo os novos conhecimentos técnicos e científicos. Isto tem de articular-se com salvaguarda de outros princípios constitucionais, entre os quais se conta a proteção da confiança, a segurança jurídica, a boa-fé dos administrados e os direitos fundamentais. [81]

Também na doutrina nacional, o princípio da confiança legítima despertou inicialmente a atenção dos civilistas, cuja magnificência dos ensinamentos abriu os olhos dos juspublicistas para a questão.

Exemplo claro é a lição precursora do Prof. Jorge Cesa Ferreira da Silva, que, embora em obra preponderantemente dirigida à análise do tema sob a ótica privatista, fez questão de salientar que:

Também no (chamado) direito público encontram-se importantes manifestações da confiança, especialmente no que toca à possibilidade de a administração revogar ou anular seus atos. Tem-se como regra geral o dever de a administração anular seus atos ilegais e a faculdade de revogar aqueles que se mostrem contrários ao interesse público. A aplicação concreta dessa regra, contudo, apesar de se assentar em argumento absolutamente legítimo do ponto de vista formal, pode gerar um conjunto de efeitos injustos aos administrados destinatários dos respectivos atos, especialmente quando as suas características extrínsecas, aliadas à passagem do tempo, gerarem a confiança de regularidade jurídica. [82]

A ideia básica residente na concepção do princípio da confiança legítima, sob a ótica do Direito Administrativo, se pauta no reconhecimento de que determinadas condutas adotadas pela Administração, embora possam ser consideradas como formalmente adequadas aos preceitos do direito positivo, contém uma expressiva carga de antijuridicidade, em razão de contrariarem expectativas que foram legitimamente criadas pela própria Administração nos seus administrados.

Isso não significa que o princípio da proteção da confiança legítima ofereça, ou almeje oferecer, "uma garantia genérica de estabilidade do ordenamento jurídico" [83].

Consoante destaca o Professor Anderson Schreiber:

"Em outras palavras, o reconhecimento da necessidade de tutela da confiança desloca a atenção do direito, que deixa de se centrar exclusivamente sobre a fonte das condutas para observar também os efeitos fáticos de sua adoção." [84]

Não abunda explicitar que o Princípio da Tutela da Confiança Legítima decorre do conceito maior de Segurança Jurídica, razão pela qual encontra claro amparo constitucional.

Essa acepção se extrai facilmente dos ensinamentos do Professor e Ministro Gilmar Ferreira Mendes, segundo o qual:

Em verdade, a segurança jurídica, como subprincípio do Estado de Direito, assume valor impar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da própria idéia de justiça material. [...]

O tema da segurança jurídica tem assento constitucional (princípio do Estado de Direito) [85].

5.4.3. A submissão dos Contratos Administrativos ao Princípio da Confiança Legítima. Incompatibilidade entre instituto das cláusulas exorbitantes e a tutela da confiança.

Segundo leciona o Professor Silvio Rodrigues, "Aquele que, através de livre manifestação de vontade, promete dar, fazer ou não fazer qualquer coisa, cria uma expectativa no meio social, que a ordem jurídica deve garantir." [86]

O Direito Administrativo moderno, com a sua pregação de uma não submissão da disciplina dos contratos administrativos aos ditames do Direito Privado, induziu a um equivocado afastamento de postulados de caráter universal dentro do ordenamento jurídico [87], a exemplo do acima transcrito, sob a alegação de que sua origem estaria vinculada eminentemente ao Direito Civil.

Em verdade, pode-se facilmente concordar com o Professor Orlando Gomes, quando, de modo absolutamente precursor, destacou que a ânsia em se consagrar a "independência" do Direito Público em relação ao Direito Privado criou uma série de choques dogmáticos que não podem ser resolvidos, ao menos sob a ótica do Direito Administrativo moderno.

[...] o esforço do direito público para se libertar do direito privado repercute na dogmática jurídica sob forma que tem contribuído para a desordem dos conceitos. Relações jurídicas, que eram reguladas sob critérios civilísticos, no pressuposto da igualdade jurídica entre o Estado e o indivíduo, recebem novo tratamento por força da desigualdade preconcebida. Por outro lado, ampliando o seu raio de ação, o Estado atrai, para o seu círculo, atividades e atribuições que eram próprias dos particulares, especialmente no domínio econômico.

O novo tratamento exigiu a substituição da técnica do direito privado, enquanto que as novas atividades, que o Estado incorporou, o obrigam a servir-se dos instrumentos que só o direito civil e o direito comercial possuem.

Nas relações jurídicas semelhantes às que travam os particulares, a posição de superioridade que o Estado contemporâneo assumiu não admite que sejam disciplinadas sob os critérios tradicionais. Daí a busca desesperada de novos instrumentos que se adaptem a essa orientação e de novas teorias que a justifiquem. Percorra-se o Direito Administrativo moderno e se verificará, sem esforço, que os mesmos institutos do Direito Civil, tecnicamente subvertidos, ganham sentido novo.

A mística da desigualdade entre o Estado e o indivíduo afasta a técnica do direito privado que repousa no pressuposto da igualdade das partes, mas, como o Direito Público não conseguiu ainda libertar-se desta influência, toma os instrumentos do Direito Privado e os deforma conceitualmente, para que seja preservado o espírito que atualmente o anima – o da superioridade do Estado sobre o indivíduo. [88]

Ao defender, por exemplo, a existência e validade de uma prerrogativa, supostamente necessária ao atendimento do interesse público envolvido, por meio da qual o Estado/contratante pode alterar unilateralmente condições que foram previamente pactuadas com o particular, o Direito Administrativo claramente despreza a mais nobre função social ínsita na disciplina contratual, qual seja a de servir de instrumento de promoção da paz social, da segurança jurídica e da estabilidade das relações jurídicas.

Essa função é destacada na lição do Mestre Silvio Rodrigues, segundo o qual:

O propósito de se obrigar, envolvendo uma espontânea restrição da liberdade individual, provoca conseqüências que afetam o equilíbrio da sociedade. Por conseguinte, a ordenação jurídica, na defesa da harmonia das relações inter-humanas, cria elementos compulsórios do adimplemento. [89]

Também nesse sentido, com maestria, expõe o Professor Caio Mário Pereira da Silva, destacando que:

Paralelamente à função econômica, aponta-se no contrato uma outra civilizadora em si, e educativa. Aproxima ele os homens e abate as diferenças. Enquanto o indivíduo admitiu a possibilidade de obter o necessário pela violência, não pôde apurar o senso ético, que somente veio a ganhar maior amplitude quando o contrato convenceu das excelências de observar normas de comportamento na consecução do desejado. Dois indivíduos que contratam, mesmo que não se estimem, respeitam-se. E enquanto as cláusulas são guardadas, vivem em harmonia satisfatória, ainda que pessoalmente se não conheçam.

Num outro sentido vinga a função social do contrato: na afirmação de maior individualidade humana. Aquele que contrata projeta na avença algo de sua personalidade. O contratante tem a consciência do seu direito e do direito como concepção abstrata. Por isso, realiza dentro de suas relações privadas um pouco da ordem jurídica total. Como fonte criadora de direitos, o contrato assemelha-se à lei, embora de âmbito mais restrito. Os que contratam assumem, por momento, toda a força jurígena social. Percebendo o poder obrigante do contrato, o contraente sente em si o impulso gerador da norma de comportamento social, e efetiva esse impulso. [90]

Ao emprestar força obrigatória a um determinado acordo de vontades, o ordenamento jurídico, mais do que promover a satisfação dos interesses imediatos dos envolvidos diretos na relação contratual, está a cumprir a função maior de propagar a toda sociedade a ideia de tranquilidade e segurança, decorrente da "confiabilidade" das relações jurídicas.

De acordo com a Arruda Alvim, constituem valores que gravitam em torno do conceito de negócio jurídico: "vontade, declaração, confiança (que deve ser atribuída à declaração), em função da responsabilidade do que declara, em relação ao outro." [91]

"Isto porque nós, no mundo dos negócios, no mundo da vida, até além do universo dos negócios, temos que confiar naquilo que nos é comunicado e aderir àquilo que nós julgamos ser a vontade do outro." [92]

Se é certo que a origem de tais postulados é relacionada ao Direito Civil, mais certo ainda é que sua gênese é vinculada ao Direito romano, que, malgrado não conhecesse os ditames do Direito Administrativo, era, em grande medida, permeado por um claro caráter social, restrito, é claro, aos limites do conceito de cidadania da sociedade da época, mas que não pode ser simplesmente desconsiderado.

Por tais razões é que se afigura extremamente correta a aparentemente óbvia lição do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, no sentido de que:

Os contratos administrativos, também eles, obedecem ao princípio da força vinculativa, inclusive à sua componente de estabilidade contratual, e, fora as situações excepcionais em que ela pode ser afastada pelas partes, pela lei ou por decisão jurisdicional, qualquer conduta que se choque com o princípio e sua componente é geradora de responsabilidade contratual. [93]

Nessa linha de intelecção, se ao Estado compete zelar pela guarda e promoção do "interesse público" – mesmo que sob os distorcidos moldes defendidos pelos adeptos da doutrina clássica do Direito Administrativo - afigura-se incompatível com tal munus, que seja ele (o Estado) o maior promotor do desrespeito às condições inicialmente pactuadas nos contratos que celebra.

É o próprio jurista português quem, em lição que, não obstante dirigida ao momento da licitação, pode ser claramente transposta para toda a execução do contrato, destaca que:

Mas, o princípio da proteção da confiança, por si mesmo, já significa que a administração tem de se ater aos termos da sua proposta contratual ou convite para contratar, não pode alterá-los subsequentemente, menos ainda depois de conhecer quem são os destinatários; [94]

Não fosse a ampla fundamentação teórica suficiente a fortalecer a linha de ataque ao instituto das cláusulas exorbitantes, diante da necessidade de compatibilização da atuação estatal com o Princípio da Tutela da Confiança Legítima, haveria, ao menos, que se levar em conta os prejuízos que se vem registrando na prática.

É que, conforme já abordado em momento anterior, a possibilidade de alteração inopinada das condições previamente pactuadas com a Administração, agravada, certamente, pela atuação irresponsável de muitos governantes, tem colocado o Estado em um justificado cenário de descrédito.

A desconfiança dos investidores privados, cujo capital é atualmente indispensável ao Estado, afasta, ou no mínimo dificulta, o interesse maior em se relacionar com o Poder Público.

Oportuna a lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ao ressaltar que:

Está claro que a peculiaridade desse fomento público está em gerar no investidor a necessária confiança para engajar-se em parcerias com entes estatais, a despeito da baixa credibilidade de que gozam nos países em desenvolvimento. Torna-se necessário, assim, a recuperação da credibilidade, o que se faz, de um lado, pelo respeito da Administração aos princípios da Confiança Legitima e da Boa-fé Objetiva e, de outro, com um judiciário imparcial e apto para deslindar sem delongas as questões entre o Estado e os parceiros privados. [95]

Ao contrário do que ocorria no welfare state, com a mobilização em larga escala do aparelho do Estado e sua intervenção direta nos meio de produção, de modo marcantemente autoritário, os tempos atuais exigem que o Estado seja atrativo, o que impõe competitividade na tarefa de captação de investimentos.

A imperatividade não mais é – ou melhor, nunca foi - suficiente à atuação eficiente do Estado.

Daí concluir-se que o atendimento ao Princípio da Confiança, com o afastamento de procedimentos e prerrogativas que impliquem em sua ofensa, cujo maior exemplo se encontra nas cláusulas exorbitantes do contrato administrativo, constitui não só uma exigência da conformação do Direito Administrativo ao Estado Democrático de Direito, como também um elemento de vital importância para o regular desenvolvimento das próprias atividades estatais.

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Sobre o autor
Ricardo Gesteira Ramos de Almeida

Advogado. Graduação em Direito pela Universidade Federal da Bahia - UFBA. Extensão de Graduação na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - Portugal.Pós Graduando em Direito do Estado pela Universidade Federal da Bahia - UFBA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Ricardo Gesteira Ramos. Da incompatibilidade entre as cláusulas exorbitantes do contrato administrativo e os paradigmas do Estado Democrático de Direito.: O princípio do Estado Democrático de Direito e o princípio da tutela da confiança. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2441, 8 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14466. Acesso em: 25 abr. 2024.

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