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A posse de drogas para consumo pessoal e as Leis nº 6.368/1976 e nº 11.343/2006

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15/03/2010 às 00:00
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Antes mesmo de analisar as Leis Federais n.º 6.368/1976 e n.º 11.343/2006 e verificar as alterações ocorridas no tratamento dispensado àquele que tem a posse de substâncias entorpecentes destinadas ao consumo pessoal, deve-se destacar que, com o advento da antiga lei de drogas, os tipos penais que apresentavam entorpecentes como objeto material passaram a ser tratados por leis especiais, situação essa que se manteve com a Lei Federal n.º 11.343/2006.

Esse fenômeno de descodificação surge a partir da alta demanda legiferante e conseqüente sucessão e sobreposição de normas penais, fazendo com que o direito e o processo penal sofram com a gradual perda de regulamentação.

Ferrajoli, citado por Salo de Carvalho, escreve que os modelos penais da atualidade:

(...) ofuscaram os confins entre as esferas do ilícito penal e do ilícito administrativo, ou seja, dos ilícitos, transformando o direito penal em uma fonte obscura e imprevisível de perigos para qualquer cidadão, olvidando sua função simbólica de intervenção extrema contra ofensas graves e oferecendo, portanto, o melhor terreno à cultura de corrupção e ao arbítrio. [01]

A lei Federal n.º 6.368/1976 revogou, ainda que de forma tácita, o artigo 281 do Código Penal, que apresentava, após várias alterações sofridas, o nomen iuris "Comércio, posse ou uso de entorpecente ou substância que determine dependência física ou psíquica".

Para Vicente Greco Filho a supressão do nomen iuris, uma das conseqüências do processo de descodificação, procedeu-se sem nenhum fundamento jurídico, assim como a criação de leis especiais para o tratamento dos crimes envolvendo drogas não obedeceu a nenhum critério social ou histórico.

Sobre tais alterações, o respectivo autor esclarece que:

Admite-se a criação de delito especial quando a circunstanciabilidade social e histórica recomenda a sua não-incorporação ao texto mais permanente, pelo menos na intenção, de um Código. No caso de delito de tráfico de entorpecentes, sua evolução histórica e mesmo sua colocação entre os crimes contra a saúde pública recomendavam permanecesse no corpo do diploma penal. Por outro lado, a consagração em norma especial leva, inevitavelmente, a dificuldades de interpretação sistemática, em função dos outros dispositivos aplicáveis ao tema, especificamente os da Parte Geral.

Como conseqüência negativa da exclusão do Código, vimos, como ocorreu na lei revogada, a supressão das rubricas dos artigos.

O nomen criminis, apesar de não pertencer ao comando legal, tem sido e é, constantemente, utilizado como elemento valioso na interpretação da norma, o que, aliás, aconteceu com destaque exatamente com o delito do art. 281. [02]

Partindo para uma análise mais específica das diferenças entre as leis de drogas, observa-se que a Lei Federal n.º 6.368/1976 contém quarenta e sete artigos divididos em cinco capítulos: I - "Da prevenção", II - "Do tratamento e da Recuperação", III - "Dos crimes e das penas", IV - "Do procedimento criminal" e V - "Disposições Gerais".

A conduta de posse de substâncias entorpecentes para consumo próprio, bem como a de tráfico de entorpecentes, encontra-se inserida no capítulo III, que trata "Dos crimes e das penas".

Já a Lei Federal n.º 11.343/2006 contém 75 artigos, os quais se distribuem em seis títulos: I - "Disposições preliminares", II - "Do sistema nacional de políticas públicas sobre drogas", III - "Das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas", IV - "Da repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas, V - "Da cooperação internacional" e VI - "Disposições finais e transitórias".

Interessante notar que a conduta de posse de drogas para consumo pessoal, inserida no título III da nova Lei de Drogas, é a única ação descrita pelo capítulo que trata "Dos crimes e das penas", já que a conduta de tráfico, assim como os tipos penais a ela equiparados, encontra-se inserida no capítulo II do título IV, que discorre acerca "Dos crimes".

Essa disposição topográfica da nova lei demonstra a real intenção do legislador de aproximar a tipificação da conduta de posse de drogas para consumo pessoal das medidas tendentes a alcançar usuários e dependentes de droga, inseridas justamente no título III.


1. Análise dos elementos constitutivos dos tipos penais dos artigos 16 da Lei n.º 6.368/1976 e 28 da Lei n.º 11.343/2006.

Faça-se, inicialmente, a leitura dos artigos referentes ao consumo de drogas presentes nas duas leis em destaque:

Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - Detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de 20 (vinte) a  50 (cinqüenta) dias-multa.

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I – advertência sobre os efeitos das drogas;

II – prestação de serviços à comunidade;

III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

Nota-se facilmente que, na evolução de um tipo para outro, foram acrescentados dois novos núcleos, quais sejam, "ter em depósito" e "transportar".

Analisando de forma mais detalhada cada um dos núcleos dos tipos, tem-se que o verbo "adquirir" representa uma ação instantânea, indicativa do ato de comprar, incorporar ao patrimônio, a título gratuito ou oneroso.

Segundo Vicente Greco Filho "a conduta de adquirir é fase de execução de todas as outras, as quais, salvo na hipótese de plantar ou agir em nome de terceiro, são precedidas de aquisição". [03]

Diverge a doutrina acerca da amplitude das ações de "guardar" e "ter em depósito".

Para Magalhães Noronha e Nelson Hungria, citados por Greco Filho, "guardar" significaria reter a coisa em nome de outra pessoa, enquanto "ter em depósito" representaria a retenção para sua própria disposição. [04]

Vale lembrar que Vicente Greco Filho discorda dos grandes autores que cita, indicando que alguém pode tanto guardar quanto ter algo em depósito em nome próprio ou por conta de terceiro. A diferença entre tais verbos estaria, segundo o autor, na mobilidade e no caráter provisório da retenção quando o agente tem a droga em depósito, ao passo que o ato de guardar indicaria a ocultação pura e simples, permanente ou precária. [05]

Já Luiz Flávio Gomes apresenta como característica primordial da ação de "guardar" a clandestinidade, a ocultação da substância entorpecente sem a revelação pública de sua posse, enquanto a droga tida em depósito pode ser exposta ou não ao público, bastando para a sua configuração que o agente mantenha a substância sob seu controle, alcance e disponibilidade imediatos. [06]

Ainda segundo Luiz Flávio Gomes, "trazer consigo" é sinônimo de portar a droga, independentemente do local em que a mesma se encontre, quer seja no bolso, na mochila, no porta-luvas do carro. [07]

No entanto, a amplitude que respectivo autor atribui a essa ação faz com que a mesma se confunda com o ato de transportar, que transmite a idéia de deslocamento de um lugar para outro, já que ao se deslocar com a droga no interior do porta-luvas do carro o agente estaria transportando-a.

A melhor diferenciação de tais núcleos do tipo é aquela defendida por Vicente Greco, segundo o qual "transportar" caracteriza-se pelo "uso de algum meio de deslocação da droga, porque se esta for levada junto ao agente confundir-se–á com ‘trazer consigo’, que é modalidade de transportar, na hipótese em que o indivíduo conduz pessoalmente a droga" [08].

Observa-se ainda que as modalidades "guardar", "ter em depósito" e "trazer consigo" configuram infrações permanentes, já que a execução e consumação prolongam-se no tempo..

No que concerne à conduta de semear, cultivar ou colher plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica, havia grande divergência doutrinária durante a vigência da Lei n.º 6.368/1976.

Isso porque a lei em questão não diferenciava aquele que semeava, cultivava ou colhia plantas destinadas à preparação de substâncias psicotrópicas voltadas para a disseminação daquele que o fazia buscando a obtenção do produto para seu consumo pessoal.

O inciso II, do parágrafo 1º do artigo 12 da Lei n.º 6.368/1976 apenas instituía que:

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem, indevidamente:

II – semeia, cultiva ou faz a colheita de plantas destinadas à preparação de entorpecente ou de substância que determine dependência física ou psíquica.

Confrontavam-se três correntes acerca de tal situação:

A primeira delas defendia que, independentemente de ser a conduta destinada à obtenção de entorpecentes para uso próprio ou para o consumo de terceiros, ficava caracterizada a infração prevista no artigo 12, § 1º, II da Lei n.º 6.368/1976.

Pensamento doutrinário diverso, pautando-se pela analogia "in bonam partem", sustentava que não obstante encontrar-se inserido no artigo 12 da antiga lei de drogas, que fazia referência aos crimes de tráfico ilícito de entorpecentes e equiparados, quando o agente praticava os núcleos do tipo para uso próprio, ou melhor, visando a obtenção de produto para seu único e exclusivo consumo, a pena a ser aplicada seria a do artigo 16 da mesma lei.

Por fim, existia corrente sustentando a atipicidade do fato, em função de o legislador não ter tipificado de forma específica a conduta.

A solução legislativa sobreveio com a entrada em vigor da Lei n.º 11.343/2006, a qual separara as condutas de acordo com a real intenção do agente, restando àquele que semeia, cultiva ou colhe, para seu consumo pessoal, plantas destinadas a obtenção de pequena quantidade de drogas, as mesmas penas cominadas ao portador de drogas para consumo pessoal.

1.2 Dimensão subjetiva da ação

A conduta de posse de drogas para consumo pessoal, descrita tanto no artigo 16 da Lei Federal n.º 6.368/1976 quanto no artigo 28 da Lei Federal n.º 11.343/2006, somente é punida em sua forma dolosa, exigindo-se do agente o elemento intelectivo, qual seja, a consciência de que tem a posse da droga e que o faz sem autorização ou em desacordo com determinação legal, e o elemento volitivo, a vontade de encontrar-se na posse de tal substância.

A forma culposa é, portanto, atípica, já que as leis de drogas citadas não fazem qualquer menção a essa modalidade do ilícito, o que, segundo o parágrafo único do artigo 18 do Código Penal, seria exigido caso o legislador intentasse punir a modalidade culposa de tal conduta. [09]

1.3 Elemento subjetivo do injusto

A configuração da conduta de posse de drogas exige ainda uma finalidade, uma intenção especial do agente, denominada pela doutrina italiana "dolo específico" e pela doutrina alemã "elemento subjetivo do injusto".

Respectivo elemento encontra-se representado nos tipos penais em análise pelas expressões "para o uso próprio" e "para consumo pessoal".

Para que ocorra a exata subsunção da conduta do agente ao tipo penal previsto nos artigos 16 e 28 das Leis Federais 6.368/1976 e 11.343/2006, respectivamente, faz-se necessário que a droga se destine ao uso pessoal, individualizado, sem fins de lucro ou de disseminação.

Caso a posse da droga tenha como destino terceiros, a infração será aquela prevista nos artigos 12 e 33 das leis em estudo.

Vicente Greco Filho defende o entendimento de que a substituição da expressão "para o uso próprio" por "para consumo pessoal" ampliou a "possibilidade do enquadramento no tipo mais benéfico das condutas quando para consumo próprio ou de outrem em caráter pessoal, ou seja, sem o animus de disseminação" [10].

Para o citado autor, aplicar-se-ia o artigo 16 da Lei 6.368/76 somente quando o uso do entorpecente fosse exclusivamente próprio, subsumindo-se a conduta ao artigo 12 da mesma lei quando a droga destinava-se ao uso, também pessoal, de terceiro.

Tal situação demonstrava-se injusta, pois punia de forma equivalente, cominando pena de reclusão de 3 (três) a 15 (quinze) anos, o agente que atuava com o "animus" de disseminação e lucro e aquele que "dividia a droga com companheiros ou a adquiria para consumo doméstico de mais de uma pessoa" [11].

Ainda segundo Vicente Greco, o entendimento extensivo do dolo específico do agente na conduta do artigo 28 da Lei Federal 11.343/2006 não faz com que a mesma se confunda com a ação prevista no artigo 33, §3º da mesma lei, que pune de forma mais branda, com pena de detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, quem "oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem".

Tais ações não se identificariam pois, apesar de em ambas o uso caracterizar-se por ser pessoal e sem fins lucrativos, o artigo 28 não traz o núcleo "oferecer", presente no artigo 33, §3º, o qual indica conduta voltada à disseminação ou à ampliação do uso.

Vale lembrar que tal posicionamento acerca do requisito especial requerido pelo tipo não é acompanhado por parte da doutrina, que ora se manifesta de forma contrária [12], ora não se manifesta sobre o assunto [13].

O parágrafo 2º do artigo 28 da nova lei de drogas e o artigo 37 da Lei 6.368/1976 enumeram os mesmos critérios objetivos a serem utilizados pelo juiz para determinar se a droga destina-se a consumo pessoal.

Devem ser levados em consideração o objeto material do delito, analisando-se a natureza e a quantidade do entorpecente apreendido, o desvalor da ação, local e condições em que a mesma ocorreu, e o próprio agente, suas circunstâncias sociais e pessoais, conduta e antecedentes. [14]

Entretanto, Greco Filho ressalta a dificuldade de se obter prova inconteste de tal destinação, destacando como função do §2º do artigo 28 atrair a atenção do magistrado para outros fatores caracterizadores da conduta de posse de drogas para consumo pessoal, não se restringindo apenas à quantidade de substância entorpecente apreendida. [15]

1.4 Sujeitos da conduta

O sujeito ativo das condutas descritas nos artigo 16 e 28 pode ser qualquer pessoa, já que o tipo penal não exige nenhuma qualidade ou condição específica do agente.

Em se tratando de agente menor de 18 anos, têm aplicabilidade as medidas sócio-educativas previstas no capítulo IV da Lei Federal n.º 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

Segundo Luiz Flávio Gomes "Por força do princípio da proporcionalidade, entretanto, nenhuma sanção mais grave que as cominadas no art. 28 pode ser imposta a esse menor. Se o adulto não pode ser sancionado com rigor, o menor tampouco" [16].

Por sua vez, a primeira parte do artigo 45 da Lei n.º 11.343/2006 e do caput do artigo 19 da antiga lei prevêem caso de inimputabilidade do agente que, em razão da dependência de droga, era, ao tempo da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Adotou-se o sistema biopsicológico de inimputabilidade, o qual analisa não apenas a condição mental do agente, mas também sua capacidade de entendimento e autodeterminação no momento da conduta.

Já a segunda parte dos dispositivos prevê a isenção de pena para o agente que, ao tempo da ação ou omissão, era incapaz de entender o caráter ilícito de sua conduta ou de determinar-se de acordo com ele em razão da ingestão acidental da droga, resultante de caso fortuito ou força maior.

O sujeito passivo da conduta tipificada pelos artigos em análise seria a coletividade.

1.5 Bem jurídico tutelado

Partindo do funcionalismo teleológico de Claus Roxin destaca-se como função do Direito Penal a proteção de bens jurídicos indispensáveis ao convívio social harmônico.

Logo, adentrando apenas o primeiro substrato do crime, uma conduta é tida como típica quando capaz de causar relevante e intolerável lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado.

No que concerne às condutas envolvendo substâncias entorpecentes, predomina, tanto na doutrina pátria quanto na estrangeira, o entendimento de que o bem jurídico imediato tutelado é a saúde pública. Já os objetos jurídicos mediatos protegidos pelos dispositivos penais em comento seriam a vida, a integridade física, a saúde física e psíquica das pessoas.

Pierpaolo Botttini define saúde pública como "o conjunto de condições ambientais e sociais que propiciem o desenvolvimento saudável do ser humano em coletividade". [17]

Entretanto, apesar de dominante, tal posicionamento doutrinário não é uno.

Vicente Greco Filho cita correntes de pensamento que sustentam como bem jurídico tutelado em tais ilícitos a liberdade do consumidor, já que as drogas retirariam do usuário sua capacidade de autodeterminação; ou ainda a ordem pública, a segurança pública, a soberania nacional ou a própria administração pública. [18]

Entretanto, como o próprio autor citado faz questão de esclarecer, com a tipificação de uma conduta diversos bens jurídicos restam protegidos, devendo-se identificar aquele que predominantemente buscou-se tutelar. [19]

Cabe, nesse momento, reproduzir as palavras de Bottini acerca da necessidade da exata identificação e delimitação do bem jurídico:

Importante lembrar que a abstração excessiva do bem jurídico protegido impossibilita que o mesmo exerça suas funções de limitação do ius puniendi, sendo importante sua caracterização, mesmo como bem jurídico coletivo, para permitir a discussão dogmática sobre seus contornos e sobre a legitimidade da atuação do direito penal. [20]

Importante ressaltar ainda a existência de corrente doutrinária que, pautando-se pela análise do bem jurídico "saúde pública", pugna pela descriminalização da conduta de posse de drogas destinadas a consumo pessoal, pois não haveria, no caso, ofensa ao objeto jurídico tutelado.

Referida corrente de pensamento será ainda discutida quando da análise da natureza jurídica da conduta de posse de drogas para consumo pessoal.

1.6 Consumação e Tentativa

A conduta de posse de drogas destinadas a consumo pessoal é caracterizada por um tipo penal que descreve apenas a conduta, prescindindo do resultado naturalístico para sua consumação.

O instante da composição plena do fato típico resta observado com a realização de qualquer uma das ações descritas nos tipos previstos nos artigos 16 ou 28.

Necessário se faz para a configuração da conduta tipificada a prova inequívoca da "idoneidade tóxica da droga" [21], ou seja, a realização do laudo de exame de constatação da natureza e quantidade da droga, previsto nos artigos 22, §1º da Lei Federal n.º 6.368/1976 e artigo 50, §1º, da Lei Federal n.º 11.343/2006, para a certificação de que se trata de substância entorpecente elencada em lista administrativa de controle.

No que concerne à possibilidade de configuração da tentativa, violação incompleta da mesma norma de que a infração consumada representa a violação completa, destacam-se duas correntes.

A primeira pugna pela impossibilidade de aplicação da norma de extensão temporal do artigo 14, inciso II, do Código Penal à conduta de posse de drogas para consumo pessoal, em razão da abrangência dos núcleos do tipo. De acordo com esse pensamento doutrinário, o que se caracteriza como tentativa encontrar-se-ia inserido no tipo como forma consumada.

Já Luiz Flávio Gomes defende como faticamente possível a tentativa da infração, ao mesmo tempo em que a define como impunível, já que as leis de drogas em comento não contemplam de forma expressa nenhuma sanção para tal forma de conduta.

Citado autor argumenta que:

O tipo já não exige nenhum resultado. Não exige nenhum perigo concreto para um ser humano. Contenta-se (para a consumação) com a mera realização da conduta, que então é um ‘perigo de um perigo concreto’. Esse é o patamar mínimo para a punibilidade da posse de drogas para consumo pessoal. Toda conduta que represente menos que a efetiva posse deve ficar impune, pois do contrário haveria uma exagerada antecipação da tutela legal (ou seja: um perigo de perigo de um perigo concreto) [22].

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Corrente contrária afirma a possibilidade de tentativa da conduta de posse de droga destinada a consumo pessoal.

Vicente Greco, não obstante faça a ressalva da dificuldade de identificação da tentativa em função da punição de atos de execução que a caracterizariam, afirma que a mesma não se encontra nem lógica nem juridicamente excluída, devendo-se pautar pela análise de cada caso concreto. [23]

1.7 Objeto material

As condutas de adquirir, guardar, trazer consigo, ter em depósito e transportar devem ter por objeto as drogas, expressão adotada pela Lei Federal n.º 11.343/2006, definidas, pela análise conjunta do parágrafo único do artigo 1º e artigo 66 da respectiva lei, como substâncias ou produtos capazes de causar dependência, as quais encontram-se inseridas na Portaria SVS/MS n.º 344/1998, da Anvisa.

Vale recordar, não obstante a ressalva feita no segundo capítulo do presente trabalho, que a Lei Federal 6.368/1976 adotou como objeto material as "substâncias entorpecentes" também inseridas em listas administrativas de controle, denominação essa menos abrangente que a utilizada pela nova lei de drogas.

Observa-se ainda que ambas as leis tornaram os delitos relacionados a drogas norma penal em branco.

1.8 Requisito normativo do tipo

Elementos normativos são aqueles que exigem do magistrado um juízo de valor. No que concerne às condutas relativas à posse de drogas para consumo pessoal, tanto na Lei Federal 6.368/1976 quanto na Lei Federal 11.343/2006, somente podem ser consideradas típicas quando praticadas "sem autorização" ou "em desacordo com determinação legal ou regulamentar".

As portarias do Poder Executivo que regulamentam as substâncias submetidas a controle especial no território nacional indicam também os procedimentos necessários para a obtenção de licenças e autorizações para o manuseio de substâncias psicotrópicas.

Diversas áreas profissionais, principalmente no ramo da saúde, lidam diariamente com substâncias elencadas nas listas administrativas de controle, o que, praticado mediante adequada autorização, não configura a conduta ora em análise em função do elemento normativo do tipo.

Vicente Greco Filho equipara a ausência de autorização estabelecida em lei com o desvio de utilização da substância.

Diz o renomado autor que "haverá, pois, o delito se alguém, autorizado a importar cem gramas de morfina para fins terapêuticos, fizer a importação de cento e dez; ou, então, se alguém, autorizado a ter a posse para determinado fim, usa o entorpecente para outro" [24].

Já a infração prevista no parágrafo primeiro do artigo 28 da Lei 11.343/2006 apresenta como requisito normativo configurador do tipo que as plantas sejam destinadas "à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica".

Cabe ao magistrado, analisando fatores como o número de plantas encontradas e a capacidade de cada planta para produzir o produto destinado à preparação da droga, determinar a subsunção da conduta ao tipo penal previsto na lei.

1.9 Penas

A ciência do Direito Penal caracteriza a pena como uma realidade necessária capaz de possibilitar a convivência em sociedade.

Guilherme de Souza Nucci conceitua tal instituto como "sanção imposta pelo Estado, por meio de ação penal, ao criminoso como retribuição ao delito perpetrado e prevenção a novos crimes" [25], trazendo para o bojo da definição a análise de suas funções e finalidades.

Vale destacar a ressalva feita por Santiago Mir Puig, citado por Cezar Roberto Bitencourt, acerca da diferença existente entre a função e o conceito de pena:

Convém antes de mais nada, para evitar graves e freqüentes equívocos, distinguir a função do conceito de pena, como hoje insistem Rodriguez Devesa e Schimidhauser, a partir do Direito Penal; e Alf Ross, a partir da Teoria Geral do Direito, ainda que com terminologia distinta da que aqui empregamos. Segundo o conceito que adotam a pena é um mal que se impõe por causa da prática de um delito; conceitualmente, a pena é um castigo. Porém, admitir isto não implica, como conseqüência inevitável, que a função, isto é, fim essencial da pena, seja a retribuição. [26]

Para se alcançar o sentido absoluto da pena e das teorias criadas com o intuito de justificá-la faz-se necessário uma análise conjunta dos tipos de Estado que a instituíram em cada momento histórico.

Durante a vigência do Estado absolutista, caracterizado pelo exercício hereditário, vitalício e irresponsável do poder e pela identidade entre soberano e Estado, a sanção penal era entendida sob uma perspectiva retribucionista, seja como um mal a ser imposto ao autor de um delito, visando à expiação de sua culpa, seja como retribuição à perturbação da ordem jurídica consagrada por lei.

Nesse sentido, Hegel, adotando o método dialético, concebe a sanção penal como forma de reafirmação da vontade geral que fora negada pela vontade individual do infrator. [27]

Roxin, citado por Rogério Greco, leciona que:

a teoria da retribuição não encontra o sentido da pena na perspectiva de algum fim socialmente útil, senão em que mediante a imposição de um mal merecidamente se retribui, equilibra e espia a culpabilidade do autor pelo fato cometido. Se fala aqui de uma teoria ‘absoluta’ porque para ela o fim da pena é independente, ‘desvinculado’ de seu efeito social. A concepção da pena como retribuição compensatória realmente já é conhecida desde a antiguidade e permanece viva na consciência dos profanos com uma certa naturalidade: a pena deve ser justa e isso pressupõe que se corresponda em sua duração e intensidade com a gravidade do delito, que o compense. [28]

Com o advento do Estado liberal ganham força as teorias preventivas da pena, analisadas pelo critério da prevenção geral, negativa ou positiva, ou da prevenção especial, negativa ou positiva, que buscam não mais retribuir o fato delituoso cometido, mas sim prevenir a sua ocorrência.

Pelo aspecto da prevenção geral negativa, a pena é aplicada ao autor da infração penal em decorrência de seu poder intimidativo, exercitável sobre toda a sociedade, atuando como uma ameaça da lei aos cidadãos para que não cometam delitos.

Acerca da prevenção por intimidação ora analisada, Hassemer escreve que:

existe a esperança de que os concidadãos com inclinações para a prática de crimes possam ser persuadidos, através da resposta sancionatória à violação do Direito alheio, previamente anunciada, a comportarem-se em conformidade com o Direito; esperança, enfim, de que o Direito Penal ofereça sua contribuição para o aprimoramento da sociedade [29]

Sob a vertente positiva, a prevenção geral subdivide-se em fundamentadora e limitadora.

Para a teoria positiva limitadora, o Direito Penal assume a função de instrumento de controle social de comportamentos desviados, caracterizado pela formalização, a qual seria alcançada pela vinculação às normas e teria como objetivo limitar a intervenção sancionatória do Estado.

A grande diretriz dessa corrente de pensamento é o entendimento de que o Estado, no exercício do ius puniendi, deve pautar sua intervenção através da esfera de direitos individuais dos cidadãos pela adoção dos princípios da intervenção mínima, da proporcionalidade, da culpabilidade, etc. [30]

Em sentido contrário, a teoria da prevenção geral positiva fundamentadora compreende a imposição da pena como meio de confirmação da norma e dos valores nela contidos. [31]

Já a prevenção especial da pena, adotada a partir da crise do Estado liberal e transição para o Estado intervencionista, concentra sua análise no delinqüente e na busca pela ressocialização e reeducação, no sentido de que aquele não volte a delinqüir.

Seu enfoque negativo propõe a neutralização do infrator através de sua retirada do convívio social, impedindo com isso a prática de novos delitos. Já a prevenção especial positiva propõe a ressocialização do condenado, capaz de torná-lo apto ao convívio social.

O Código Penal brasileiro, em seu artigo 59, estabelece a necessidade tanto da reprovação quanto da prevenção do crime, adotando, portanto, teoria unificadora das funções da pena.

1.9.1 Análise das tendências político-criminais sobre drogas

Imbuídas do intuito de abordar o tema relativo às drogas as sociedades políticas desenvolveram, em cada período de sua história social, política, econômica e cultural, diferentes formas de combater ou tratar realidade tão complexa.

Nesta íntima relação dos Estados com o problema das drogas destacam-se o modelo de política criminal adotado pelos Estados Unidos da América, que atribui aos entorpecentes a faceta de problema político a ser tratado por campanha estatal quase militar; o modelo de liberalização radical, contraposto à política de tolerância zero; o modelo de justiça terapêutica, baseado no tratamento de usuários-dependentes; e a política de redução de danos adotada por países europeus, que introduz o conceito de justiça restaurativa na abordagem da realidade das drogas, incentivando a adoção de uma política de prevenção, atenção e reinserção social dos agentes envolvidos. [32]

A análise das sanções cominadas à conduta de posse de drogas para consumo pessoal nas Leis Federais 6.368/1976 e 11.343/2006 é capaz de apontar a política criminal adotada pelo Brasil em momentos históricos distintos e possibilita ainda a identificação dos modelos e tendências que compõem os substratos teóricos dos quais emergem os respectivos dispositivos legais.

1.9.2 As penas previstas no artigo 16 da Lei federal n.º 6.368/1976

O preceito secundário da norma incriminadora prevista no artigo 16 da Lei Federal n.º 6.368/1976 instituía que ao agente que fosse surpreendido adquirindo, guardando ou trazendo consigo, para uso próprio, sem autorização ou em desacordo com determinação legal, substância entorpecente, cominava-se pena de detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de 20 (vinte) a 50 (cinqüenta) dias-multa.

Fácil é observar que não se punia a conduta de uso de substâncias psicotrópicas, o que também ocorre no tipo penal descrito no artigo 28 da Lei Federal 11.343/2006.

No entanto, a amplitude dos núcleos dos tipos penais analisados faz com que, por caminhos indiretos, seja imposta sanção ao usuário.

Nesse sentido, Alberto Zacharias Toron, citado por Salo de Carvalho, resume que:

dizer-se que o uso de drogas não é punido soa, quando menos, estranho porque todas as condutas que possibilitam esta prática (adquirir, guardar ou trazer consigo) são incriminadas. Com efeito, se o usuário para consumir o entorpecente deve, em algum momento, detê-lo e essa detenção constitui crime, é evidente que o uso, ainda que por via oblíqua, é punido. Afirmar o contrário é sofismar. [33]

Dando continuidade à política criminal de combate às drogas implantada pelas legislações nacionais precedentes, a Lei 6.368/1976 manteve o discurso médico-jurídico de controle dos agentes envolvidos com entorpecentes e introduziu o discurso jurídico-político defendido pelo governo norte-americano em sua guerra às drogas ("War on drugs").

Acerca dos discursos de combate às drogas na legislação brasileira, Salo de Carvalho escreveu que:

Os reflexos da política externa norte-americana incidiram diretamente nas políticas de segurança penais de praticamente todos os países da América Latina. Se a Lei 5.726/71 é claro reflexo da assertiva, é com a Lei 6.368/76 que este discurso jurídico-político belicista toma a dimensão de modelo oficial do repressivismo brasileiro.

A institucionalização do discurso jurídico-político pelos países produtores – ou, no caso do Brasil, países rota de passagem do comércio internacional -, a partir da transferência do problema doméstico dos países consumidores, redundará a instauração de modelo genocida de segurança pública devido à obrigatoriedade de criação de sistemas de guerras internas. [34]

O referido autor sustenta que a Lei Federal n.º 6.368/1976, em consonância com os discursos do repressivismo em voga na época de sua elaboração, teve sua base ideológica sustentada pelos movimentos de Lei e Ordem, Ideologia da Defesa Social e Ideologia da Segurança Nacional.

Os movimentos de Lei e Ordem, bastante influentes durante a década de sessenta e originários dos Estados Unidos, "compreendem o crime como o ‘(...) lado patológico do convívio social, a criminalidade uma doença infecciosa e o criminoso como um ser daninho" [35].

A divulgação de suas diretrizes ocorre por meio da mídia, que transmite ao homem comum um constante estado de perigo e insegurança instituído pela evolução do fenômeno da criminalidade.

A solução apresentada pelo movimento para a contenção de ações criminosas seria a adoção da ideologia da repressão, fundamentada no regime punitivo-retributivo [36], através da ampliação do arcabouço punitivo, da flexibilização das regras processuais e da instituição de penas mais severas.

João Marcello de Araújo Jr., citado por Sérgio Salomão Shecaira e Alceu Corrêa Junior, apresenta as principais características do pensamento de Lei e Ordem:

1. A pena se justifica como castigo e retribuição, no velho sentido, não devendo a expressão ser confundida com o que, hoje, denominamos retribuição jurídica;

2. os chamados crimes atrozes devem ser punidos com penas severas e duradouras (morte e privação de liberdade longa);

3. as penas privativas de liberdade impostas por crimes violentos devem ser cumpridas em estabelecimentos penais de segurança máxima, devendo ser o condenado submetido a um excepcional regime de severidade, diverso daquele destinado aos demais condenados;

4. a prisão provisória deve ter o seu espectro ampliado, de maneira a representar uma resposta imediata ao crime;

5. deve haver uma diminuição dos poderes de individualização do juiz e um menor controle judicial da execução, que, na hipótese, deverá ficar a cargo, quase que exclusivamente, para as autoridades penitenciárias. [37]

Já a Ideologia da Defesa Social apresenta modelo ideal de resposta penal que se fundamenta na idéia de intervenção punitiva racional e científica.

Alessandro Baratta, citado por Salo de Carvalho, elenca os princípios fundadores da Defesa Social:

a) Principio de Legitimidad. El Estado, como expresión de la sociedad, está legitimado para reprimir la criminalidad, de la cual son responsables determinados indivíduos, por médio de lãs instancias oficiales del control social (legislación, polícía, magistratura, instituiciones penitenciarias). Éstas interpretan la legítima reacción de la sociedad, o de la gran mayoría de ella, dirigida a la reprobación y a la condena del comportamiento desviado individual, y la reafirmación de los valores yde lãs normas sociales.

b) Principio del Bien y del Mal. El delito es um dano para la sociedad. El delincuente es um elemento negativo y disfuncional del sistema social. La desviación criminal es, pues, el mal; la sociedad constituída, el bien.

c) Principio da Culpabilidad. El delito es expresión de uma actitud interior reprobable, porque es contrario a los valores y lãs normas presentes em la sociedad aun antes de ser sancionadas por el legislador.

d) Principio del Fin o de la Prevención. La pena no tiene – o no tiene únicamente – la función de retribuir, sino la de prevenir el crimen. Como sanción abstractamente prevista por la ley, tiene la función de crear uma justa y adequada contra-motivación a comportamiento criminal. Como sanción concreta, ejerce la función de ressocializar al delincuente.

e) Principio de Igualdad. La criminalidad es la vilolación de la ley penal, y como tal es el comportamiento de uma minoria desviada. La ley penal es igual para todos. La reacción penal se aplica de modo igual a los autores de delitos.

f) Principio del Interes Social y del Delito Natural. El núcleo central de los delitos definidos em los códigos penales de lãs naciones civilizadas representa la ofensa de intereses fundamentales, de condiciones esenciales a la existência de toda sociedad. Los interesses protegidos mediante el derecho penal son intereses comunes a todos los cidadanos. Solo uma pequena parte de los delitos representa la violación de determinados ordenes políticos y econômicos y es castigada em función de la consolidación de éstos )delitos artificiales). [38]

Assim como a Ideologia de Defesa Social, a Ideologia de Segurança Nacional surge após a Segunda Guerra Mundial, mais especificamente com o início da Guerra Fria.

Entretanto, diferentemente da Defesa Social, que divide a sociedade em cidadãos e criminosos, a Segurança Nacional divide o mundo em blocos políticos antagônicos, surgindo a figura do inimigo externo e do inimigo político.

A troca de influência entre as duas últimas correntes de pensamento analisadas faz com que se adote o mesmo regime de combate utilizado para o criminoso político na luta contra a criminalidade comum, buscando-se "a eliminação do crime/criminoso através da coação direta das agências repressivas" [39].

1.9.3 O artigo 28 da Lei Federal n.º 11.343/2006

Uma melhor compreensão acerca do substrato teórico que possibilitou a adoção das sanções elencadas no artigo 28 da Lei 11.343/2006 pode ser alcançada analisando-se os documentos que tratam de direitos fundamentais da pessoa humana e as teorias que fundamentam o processo de busca por alternativas penais.

1.9.3.1 Importância dos documentos internacionais sobre direitos humanos

Inserida na realidade de um Estado Democrático de Direito, a norma penal deve retirar seu fundamento de validade dos direitos fundamentais da pessoa humana, os quais devem ser observados em todos os momentos de existência da sanção, seja em sua cominação, aplicação ou execução. [40]

As Declarações de direitos foram precursoras na formalização de direitos e garantias em matéria penal.

Em 10 de dezembro de 1948, por meio da Resolução 217 A, a Assembléia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direito Humanos, com o intuito de reconhecer a dignidade inerente a todos os membros da família humana, tendo por fundamento a liberdade, a justiça e a paz no mundo.

Em seu artigo V, ao tratar da limitação do poder de punir do Estado, declara que "ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante".

Expondo acerca da importância da Declaração de 1948 e do alcance de seus dispositivos, escreve Luiz Flávio Gomes:

Em razão do significado ímpar da Declaração de 1948, que constitui uma verdadeira ‘Constituição Ética Universal’, na medida em que consagra um conjunto de valores comuns da Humanidade, e considerando, de outra parte, que a pena de prisão na atualidade, para além do seu fracasso, constitui a síntese mais emblemática das punições torturantes, desumanas, degradantes e cruéis, não se pode deixar de reconhecer que é dessa regra fundamental que devemos partir para a compreensão e estudo das penas e medidas alternativas à prisão, recordando que semelhante texto também aparece em praticamente todos os documentos internacionais de grande alcance supervenientes a ela. [41]

Conforme introduz o renomado autor, dispositivos referentes à pessoa privada de sua liberdade podem ser também encontrados em diversos documentos internacionais, entre eles o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969, e em documentos adotados em congressos realizados pela ONU.

Através da Resolução 45/110, de 14 de dezembro de 1990, buscando enfatizar a necessidade de redução do número de reclusos e a adoção de soluções alternativas à prisão, a Assembléia Geral das Nações Unidas estabeleceu as chamadas "Regras Mínimas das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas Não-privativas de Liberdade", denominadas também de "Regras de Tóquio".

Sérgio Salomão Shecaira e Alceu Corrêa Junior resumem os objetivos fundamentais do respectivo documento nas seguintes diretrizes:

Promover o emprego de medidas não-privativas de liberdade; garantir direitos mínimos dos que se submetem às medidas alternativas; promover uma maior participação da comunidade na administração da justiça penal e na ressocialização (‘tratamento’) do delinqüente; estimular entre os delinqüentes o senso de responsabilidade em relação à sociedade. [42]

1.9.3.2 Importância dos discursos de descriminalização e despenalização

O nascimento da política criminal como ramo autônomo inserido no conjunto de ciências penais ocorre, segundo Von Liszt, com a publicação da célebre obra de Beccaria e sua busca por soluções para o problema da criminalidade. [43]

Discorrendo acerca do conceito de política criminal, Salo de Carvalho escreve que:

A política criminal é definida, portanto, como sendo o conjunto de princípios e recomendações para reagir contra o fenômeno delitivo, através das agências de punitividade. O Estado, ao monopolizar toda forma de reação contra o delito, necessitaria das orientações político-criminais. A política criminal atuaria como conselheira dos órgãos de segurança pública e ‘se limitaria a indicar ao legislador onde e quando criminalizar condutas. [44]

Essa concepção tradicional de política criminal, que ensejou uma maior incidência do Direito Penal na esfera individual dos cidadãos, foi sendo superada pelos movimentos de criminologia crítica que foram surgindo a partir dos anos sessenta, os quais se fundamentaram no descumprimento, por parte do sistema penal, dos objetivos por ele proclamados, principalmente dos fins de ressocialização (teoria da prevenção especial positiva) e intimidação (teoria da prevenção geral negativa) das penas.

Com essa mudança de direcionamento processada pelas políticas criminais alternativas, abandona-se o homem delinqüente como foco principal das investigações criminológicas e adota-se como alvo das pesquisas os processos de criminalização e a reação da sociedade aos desvios de comportamentos, adotando-se uma perspectiva macrocriminológica. [45]

Pautando-se pelas diretrizes do minimalismo penal e do abolicionismo, a criminologia crítica vai buscar modelos alternativos de controle social, incentivando, muitas das vezes, amplos processos de descriminalização.

Hulsman, citado por Salo de Carvalho, define a descriminalização, perseguida pelas políticas criminais alternativas, como:

(...) o ato e a atividade pelos quais um comportamento em relação ao qual o sistema punitivo tem competência para aplicar sanções é colocado fora da competência desse sistema. Assim, a descriminalização pode ser realizada através de um ato legislativo ou de um ato interpretativo (do juiz). [46]

A definição transcrita faz referência à descriminalização legislativa, uma das espécies do instituto em análise, que representa a forma mais adequada de retirada de uma conduta do ordenamento jurídico.

A descriminalização por ato legislativo pode ocorrer pela ab-rogação da lei ou do tipo penal que consideram a conduta como ilícita (descriminalização legislativa em sentido estrito ou "abolitio criminis") ou por meio do deslocamento da infração penal para outro ramo do direito, em regra para o direito administrativo sancionador, eliminando-se a ilicitude penal mas mantendo-se a ilicitude jurídica (descriminalização legislativa parcial).

Já a descriminalização judicial, que destaca a importância de uma atuação crítica do operador do Direito, ocorre quando o magistrado, analisando o caso concreto, deixa de aplicar a lei penal válida em razão da ocorrência de causas excludentes materiais supra-legais, como a aplicação do princípio da insignificância, consentimento do ofendido, inexigibilidade de conduta diversa, entre outras; ou quando, fazendo uso do controle de constitucionalidade difuso, o magistrado descriminaliza certa conduta em razão da não conformação da lei penal aos valores, princípios e normas constitucionais. [47]

Paralelamente às teorias que propõem processos de descriminalização surgem os movimentos de diversificação e despenalização, introduzidos principalmente pelas obras clássicas de Rusche e Kirchheimer ("Penas e Estrutura Penal") e Michel Foucault ("Vigiar e Punir"), que passam a buscar a modificação e substituição das tradicionais respostas estatais aos desvios puníveis, a partir da introdução de fórmulas legais alternativas.

Essa diretriz de redução dos danos causados pela atuação do Direito Penal na esfera particular dos indivíduos, aprofundada pelas políticas de descriminalização e despenalização e materializada em diversos documentos sobre direitos humanos, vai pautar a gradual reformulação sofrida pelo ordenamento jurídico brasileiro.

1.9.3.3 Influências sofridas pela legislação pátria

No que concerne à legislação pátria, a reforma da parte geral do Código Penal, ocorrida no ano de 1984, instituiu, ainda que de forma cautelosa, as penas restritivas de direito de prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de direitos e limitação de final de semana, sem, no entanto, afetar o predomínio da pena de prisão.

A ampliação da incidência das penas alternativas na legislação brasileira ocorreu com a promulgação da Constituição de 1988, que, em seu artigo 5ª, inciso XLVI, inserido no Capítulo I do Título II, que trata "Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos", apresenta rol exemplificativo das penas a serem adotadas pelo legislador infraconstitucional, incluindo entre elas, novas penas alternativas:

XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a) privação ou restrição da liberdade;

b) perda de bens;

c) multa;

d) prestação social alternativa;

e) suspensão ou interdição de direitos

A análise do ordenamento jurídico-penal brasileiro permite a constatação de que a pena privativa de liberdade ainda se mantém como a principal resposta adotada pelo Estado no combate à criminalidade. [48]

Não obstante o privilégio concedido ao encarceramento, o sistema clássico de justiça penal apresenta também medidas alternativas despenalizadoras, tais como o livramento condicional, o "sursis", a remição de pena, a multa alternativa.

Influenciado pelos documentos e teorias citados anteriormente, o modelo de intervenção penal adotado pelo Brasil vem sofrendo ao longo do tempo proveitosas alterações no sentido de ampliar as alternativas penais, tendo em vista a deflagrada falência da pena de prisão.

A primeira dessas significativas mudanças ocorrera com a promulgação da Lei Federal n.º 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais), que introduziu no ordenamento jurídico do país uma avançada proposta despenalizadora.

O artigo 60 da referida lei estabelece a competência dos Juizados Especiais Criminais para a conciliação, julgamento e execução das infrações de menor potencial ofensivo.

As infrações que se encontrem em consonância com o critério de definição utilizado pela Lei 9.099/1995 ficam submetidas a medidas despenalizadoras como a composição civil de danos, a transação penal e a suspensão condicional do processo.

Dando continuidade à criação de um sistema de justiça penal alternativo, que busca sancionar o infrator conforme a gravidade de sua infração, utilizando-se de penas e medidas alternativas, com o escopo de atingir o ideal de reprovação exigido por toda e qualquer sanção sem, no entanto, retirar o agente do convívio familiar, profissional e social, buscando assim sua real ressocialização, fora promulgada a Lei Federal n.º 9.714/1998, que ampliou o rol de penas alternativas previsto no artigo 43 do Código Penal.

Seguindo as diretivas das Regras de Tóquio, a Lei 9.714/98 apresenta como um de seus objetivos a tentativa de diminuir a superlotação dos presídios, sem perder a eficácia geral e especial da pena.

Busca ainda reduzir os custos do sistema penitenciário, favorecer a ressocialização do autor do fato por vias alternativas à privação de sua liberdade, buscando assim a redução da reincidência e, ainda, a preservação dos interesses da vítima.

As penas alternativas encontram-se inseridas na Seção II do Título V do Código Penal, responsável por tratar das penas restritivas de direitos.

Vale ressaltar que o "caput" do artigo 44 do Código Penal atribui às penas restritivas de direitos natureza autônoma, ou seja, não constituindo-se como penas acessórias.

Entretanto, até o advento da Lei Federal n.º 11.343/2006 não havia tipos penais prevendo como pena única e exclusiva a restrição de direitos. Essa, portanto, é a grande inovação da nova lei antidrogas. [49]

1.9.3.4 As medidas sancionatórias previstas no artigo 28 da Lei 11.343/2006

Conforme se extrai do texto do artigo 28 da referida lei, àqueles que adquirem, guardam, tem em depósito, transportam ou trazem consigo drogas para consumo pessoal, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, são cominadas sanções de advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Tais medidas educativas, assim denominadas pelo próprio parágrafo 6º do artigo 28, poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, sendo ainda facultado ao juiz substituir, a qualquer tempo, a pena alternativa transacionada ou imposta, caso tal medida não demonstre ser a mais adequada para o caso concreto.

1.9.3.5 Advertência sobre os efeitos das drogas

O inciso I do artigo 28 prevê a medida de advertência sobre os efeitos das drogas, que deve consistir em esclarecimentos sobre os efeitos negativos provocados pelas drogas à saúde do agente e de terceiros.

A sanção deve ser executada em audiência, contando com a presença do acusado, devendo ser reduzida a termo e assinada pelo magistrado, pelo réu, pelo seu defensor e pelo representante do Ministério Público.

Caso o agente não compareça à audiência o magistrado determinará sua intimação, podendo até mesmo ser conduzido coercitivamente.

O juiz poderá ainda ser auxiliado por profissionais especializados como médicos, psicólogos e assistentes sociais, que o auxiliarão com a prestação dos devidos esclarecimentos sobre entorpecentes. [50]

Não obstante sua cominação legal discute-se na doutrina a efetividade do caráter coercitivo da advertência sobre os efeitos das drogas.

Concordando com a falta de coercibilidade da medida analisada, Vicente Greco Filho, citando René Ariel Dotti, faz referência ao parágrafo 1º do artigo 44 do Projeto de lei 2.684/1996, projeto esse que dera origem à Lei Federal n.º 9.714/98.

Respectivo dispositivo, o qual restara vetado, determinava que:

Quando a condenação for inferior a seis meses, o juiz, entendendo suficiente, pode substituir a pena privativa de liberdade por advertência – que consistirá em admoestação verbal ao condenado – ou por compromisso de freqüência a curso ou submissão a tratamento, durante o tempo da pena aplicada.

O veto do dispositivo fora assim justificado:

Em paralelismo com o recolhimento domiciliar, e pelas mesmas razões, o par. 1º do art. 44, que permite a substituição de condenação a pena privativa de liberdade inferior a seis meses por advertência, também institui norma contrária ao interesse público, porque a admoestação verbal, por sua singeleza, igualmente carece do indispensável substrato coercitivo, necessário para operar, no grau mínimo exigido pela jurisdição penal, como sanção alternativa à pena objeto da condenação. [51]

Andrey Borges de Mendonça e Paulo Roberto Galvão de Carvalho vão mais além ao sustentarem que a advertência sobre os efeitos das drogas não pode ser englobada no conceito de pena, pois não cumpre com as finalidades repressiva e preventiva das sanções em geral, e em função de poder ser aplicada pelo magistrado, pelo promotor ou pela autoridade policial independentemente do processo ou da sentença, por exemplo, durante o próprio interrogatório.

Para os respectivos autores, a única forma de aplicação da medida em destaque seria em conjunto com uma das demais sanções previstas no artigo 28 da Lei 11.343/2006. [52]

1.9.3.6 Prestação de serviços à comunidade

A pena de prestação de serviços à comunidade corresponde à pena de "prestação social alternativa" elencada pela Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso XLVI, alínea "d", e, no âmbito do Código Penal, somente é aplicável às condenações superiores a seis meses de privação de liberdade.

O artigo 46, parágrafos 1º e 2º do Código Penal define a sanção em análise como a atribuição de tarefas gratuitas ao condenado, de acordo com suas aptidões, atividades essas que devem ser cumpridas em entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres e, ainda, em programas comunitários e estatais.

A prestação de serviços deverá ser cumprida à razão de uma hora de tarefa por dia de condenação à pena privativa de liberdade substituída, não havendo limitação expressa do número mínimo ou máximo de horas por dia de trabalho, devendo ser atribuída de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho.

O condenado a pena privativa superior a um ano poderá, de acordo com o parágrafo 4º do artigo 46, por sua iniciativa e com o aval do juiz, cumprir a pena em menor tempo, desde que não seja inferior à metade da pena de prisão fixada na sentença.

Na Lei n.º 11.343/2006 a prestação de serviços à comunidade apresenta natureza jurídica diversa daquela prevista no Código Penal, já que constitui uma das sanções autônomas escolhidas pelo legislador para incidir em caso de configuração da conduta prevista no artigo 28, enquanto que, no Código Penal, substitui a pena privativa de liberdade quando obedecidos os critérios previstos em seu artigo 44.

O parágrafo 3º do artigo 28 determina ainda o prazo máximo de aplicação da prestação de serviços à comunidade, qual seja, 5 (cinco) meses, diferenciando-se portanto do que estabelece o caput do artigo 46 do Código Penal.

Não obstante as diferenças, o instituto previsto em dispositivos legais distintos apresenta pontos em comum.

Com efeito, também na lei de drogas a prestação de serviços consiste na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado, a serem cumpridas nos mesmos estabelecimentos previstos pelo Código Penal.

No entanto, o parágrafo 5º do artigo 28 faz uma ressalva: deve-se dar prioridade às entidades que se ocupem preferencialmente "da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas".

Caso não haja na comarca estabelecimentos com essa destinação, nada impede que a medida seja executada em qualquer outra instituição, devendo ser observado o rol do parágrafo 5º.

1.9.3.7 Medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo

Trata-se também de nova forma de sanção no sistema penal brasileiro, cabendo ao magistrado fixar o programa ou curso educativo ao qual o condenado deverá comparecer.

O parágrafo 3º do artigo 28 também estabelece o prazo de duração da medida, qual seja, 5 (cinco) meses e o comparecimento compulsório do agente será regulado de acordo com os critérios estabelecidos no programa ou curso. [53]

Segundo Andrey Borges de Mendonça e Paulo Roberto Galvão de Carvalho, a compulsoriedade do comparecimento do condenado ao curso ou programa estabelecido na transação penal ou na sentença garante a essa medida o mínimo caráter retributivo e preventivo exigidos por uma pena, podendo portanto ser aplicada isoladamente. [54]

1.9.3.8 Medidas garantidoras do cumprimento das sanções previstas no artigo 28 da Lei 11.343/2006

Homologada a transação penal ou transitada em julgado a sentença, passa-se à execução das medidas previstas no artigo 28 da lei de drogas.

A advertência sobre os efeitos das drogas, como já fora comentado, pode ocorrer no próprio Juizado Criminal. Já as demais sanções aplicadas devem ser executadas pelo competente juízo das execuções.

No que concerne ao descumprimento das medidas impostas através de transação penal no âmbito dos Juizados Criminais a posição do STF [55] e do STJ é de que, tratando-se de pena restritiva de direitos, o procedimento deve ser retomado, permitindo-se ao Ministério Público, nos crimes de ação penal pública incondicionada, como é o caso da posse de drogas para consumo pessoal, a propositura da ação penal.

Os tribunais superiores citados defendem ainda a possibilidade de o magistrado condicionar a homologação da proposta a seu efetivo cumprimento. [56]

Luiz Flávio Gomes sustenta que, no caso do usuário de drogas que descumpre as sanções impostas na transação penal, nenhuma das medidas defendidas pelos tribunais seria possível.

Isso porque, diante da possibilidade de descumprimento injustificado das sanções pelo portador de drogas para consumo pessoal, a Lei 11.343/2006 estabelecera regime específico, instituído pelo parágrafo 6º do artigo 28: o juiz irá submeter o agente à admoestação verbal e, de forma sucessiva, caso a advertência não surta efeito, imporá pena de multa de acordo com o previsto no artigo 29 da mesma lei. [57]

Vale observar que a admoestação verbal e a multa não constituem novas sanções, mas medidas tendentes a garantir a eficácia daquelas previstas no artigo 28.

Ressalta Greco Filho que "a ‘admoestação verbal’ é também de pouca ou nenhuma eficácia, entendendo-se, porém, que deva ser mais séria do que a advertência aplicada como pena" [58].

No que concerne à multa estabelecida como garantia do cumprimento das sanções alternativas, adota-se o procedimento bifásico do artigo 29 da Lei 11.343/2006.

Primeiramente compete ao magistrado fixar o número de dias-multa, em quantidade nunca inferior a quarenta nem superior a cem. Para tal intento, Leva-se em consideração a reprovabilidade da conduta.

Luiz Flávio Gomes acrescenta que:

Em primeiro lugar o agente aceita uma medida alternativa (do art. 28). Após o seu descumprimento (injustificado) o juiz faz-lhe uma admoestação (advertência). Caso persista o descumprimento vem a multa (que é a última medida cabível). O juiz deve levar em consideração (para a fixação do número de dias-multa) exatamente o grau desse descumprimento (de rebeldia, de menosprezo do agente). Quanto maior for o afastamento do agente do seu compromisso com a justiça (quanto mais desleixado, quanto mais displicente etc.), maior deve ser o número de dias-multa. [59]

Em uma segunda etapa cabe ao magistrado fixar o valor de cada dia-multa, utilizando como critério a capacidade econômica do agente, podendo fixar valores que vão de um trinta avos até 3 (três) vezes o valor do maior salário mínimo.

O parágrafo único do artigo 29 determina que os valores arrecadados com a cobrança das medidas de multa deverão ser creditados ao Fundo Nacional Antidrogas.

1.9.3.9 Reincidência

Acerca da reincidência da conduta de posse de drogas para consumo pessoal, diverge a doutrina sobre sua natureza ser específica, ou seja, configurar-se apenas em relação à condenação anterior pela infração do artigo 28, ou genérica.

De acordo com o artigo 63 do Código Penal, considera-se reincidente o agente que comete novo crime depois de ter sido condenado definitivamente por outro fato precedente.

Autores como Andrey Borges de Mendonça, Paulo Roberto Galvão de Carvalho e Samuel Miranda Arruda defendem que a reincidência prevista no artigo 28, parágrafo 4º, da Lei 11.343/2006 é a mesma prevista pelo Código Penal, baseando-se no argumento de que, nos casos em que estabelece uma reincidência específica, a lei penal faz referência direta a esse instituto, como é o caso do artigo 83, inciso V, do Código Penal.

Entretanto, autores como Carlos Roberto Bacila, Paulo Rangel, Luiz Flávio Gomes e Flávio Marcão sustentam que somente a reincidência em crimes de mesma natureza justifica o aumento do tempo máximo das medidas de prestação de serviço e participação em programa ou curso para dez meses.

Com efeito, o parágrafo 4º do artigo 28 estabelece que "em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses".

Observa-se que o referido dispositivo não prevê a hipótese de reincidência caso a primeira pena aplicada tenha sido a de advertência sobre os efeitos das drogas.

No entanto, Greco Filho ressalva que "pelos critérios do art. 59 do Código Penal poderá o juiz deixar de aplicar nova advertência para impor a prestação de serviços à comunidade, que poderá alcançar até dez meses" [60].

Para os últimos autores citados, ao agente da conduta de posse de drogas para consumo pessoal que tenha alguma outra condenação precedente, aplica-se de igual forma as sanções previstas no artigo 28 da Lei 11.343/2006. Não sendo, portanto, reincidente específico, sua pena não pode ultrapassar o máximo de 5 (cinco) meses estabelecido em lei.

Sobre tal instituto, Luiz Flávio Gomes escreve que:

a reincidência referida nesse § 4º só pode ser a específica, ou seja, reincidência no art. 28. O sujeito foi previamente condenado definitivamente pelo art. 28 (ou pelo antigo art. 16 da Lei 6.368/76), ou aceitou transação penal por esse fato, e depois vem a praticar alguma conduta contemplada no mesmo art. 28 da nova Lei. Ou seja: trata-se de um ‘usuário’ reincidente. Para ele as penas do art. 28 serão aplicadas pelo prazo máximo de dez meses. [61]

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Sobre o autor
Victor Pereira Avelino

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AVELINO, Victor Pereira. A posse de drogas para consumo pessoal e as Leis nº 6.368/1976 e nº 11.343/2006. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2448, 15 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14519. Acesso em: 28 mar. 2024.

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