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Assédio moral nas relações de trabalho e o sistema jurídico brasileiro

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13/03/2010 às 00:00
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CAPÍTULO II

O presente capítulo tem por objetivo analisar de que maneira o ordenamento jurídico pátrio coíbe a prática de assédio moral. Como os legisladores têm enfrentado a matéria? Existem disposições legais específicas tratando do tema? Havendo lacuna normativa, permanece o empregado desprotegido juridicamente?

Ao longo do capítulo buscaremos elucidar estas e outras questões, apresentando os fundamentos jurídicos disciplinadores da matéria.

3.1.FUNDAMENTOS JURÍDICOS DE ÂMBITO NACIONAL

A prática de assédio moral colide frontalmente com os princípios e objetivos norteadores da República Federativa do Brasil. Com base nesta afirmação, deve-se realizar um estudo sistematizado, levando em conta os preceitos constitucionais, para que se verifique de que forma o ordenamento jurídico brasileiro coíbe as práticas atentatórias à dignidade, à intimidade e à integridade física, psíquica e moral do empregado.

3.1.1.Considerações iniciais

No Brasil, ainda não existe uma lei federal coibindo a prática de assédio moral. Tramitam, entretanto, na Câmara dos Deputados os projetos de lei n. 4.742/2001 e n. 4.591/2001, que visam a alterar, respectivamente, o Código Penal, inserindo o artigo 146-A, que tipifica o assédio moral e estabelece a pena, e a Lei n. 8.112/90, vedando a prática no âmbito da administração pública federal.

O artigo 146-A do Código Penal ficaria com a seguinte redação:

"Art. 146-A. Depreciar, de qualquer forma e reiteradamente a imagem ou o desempenho de servidor público ou empregado, em razão de subordinação hierárquica funcional ou laboral, sem justa causa, ou tratá-lo com rigor excessivo, colocando em risco ou afetando sua saúde física ou psíquica.

Pena - detenção de um a dois anos."

A tipificação de condutas, entretanto, deve ser vista com parcimônia, considerando que a pena não se mostra eficaz na coerção de muitas práticas, mormente em função da situação dos presídios e da impossibilidade de se alcançar a ressocialização do apenado por meio da medida reeducativa.

Por outro lado, a ausência de lei não impede a configuração da prática como ato ilícito. Mediante interpretação integradora das normas constitucionais e infraconstitucionais protetoras da saúde, intimidade e dignidade do trabalhador e do meio ambiente laboral, podem ser coibidas tais práticas.

Segundo Cristiano Chaves de Farias [48],

"(...) toda vez que o intérprete não localizar no sistema jurídico norma aplicável ao caso concreto, verifica-se uma lacuna que necessita de preenchimento, de colmatação. É que tem guarida entre nós a vedação ao non liquet. Ou seja, provocado o Estado-Juiz [...], não poderá o magistrado eximir-se de proferir decisão, alegando ausência de norma jurídica."

A Lei de Introdução ao Código Civil – que é aplicável genericamente no nosso sistema jurídico – consagra como mecanismos de integração a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito. Para solucionar um conflito que envolve condutas de assédio moral, diante da lacuna existente no nosso ordenamento, pode-se valer dos princípios gerais de direito. Estes, em verdade, determinam construções de regulamentação jurídica. [49] Sobre eles, aduz o venerando mestre:

"(...) apesar de seu caráter abstrato, indeterminado, é de se notar que os princípios realizam importante função positiva, influindo na formulação de determinadas decisões, além de induvidosa função negativa, impedindo decisões contrárias a seus postulados fundamentais."

Caso se adote a concepção de que a prática de assédio moral agride a paz social e aos preceitos constitucionais de promoção da pessoa humana e de valorização social do trabalho, será plenamente possível preencher a lacuna existente em nosso sistema jurídico nacional.

Corroborando este entendimento, expõe Rodrigo Dias Fonseca [50],

"Sem embargo, a ausência de legislação federal específica sobre a questão não deságua na absoluta desproteção ao empregado assediado. Além dos meios legais de suprimento da omissão normativa (LICC, art. 4º; CPC, art. 126), que auxiliam o magistrado no julgamento das lides, é imperioso notar que a tutela preconizada para os casos de assédio moral está contida, com vigor, nos princípios, direitos e garantias fundamentais traçados na Carta Magna."

Com efeito, impende verificar de que maneira a conduta abusiva atinge a integridade psicofísica do trabalhador; como os atos de assédio moral ferem o princípio da isonomia consagrado na nossa carta constitucional e que fundamentos jurídicos utilizar para coibir a prática lesiva.

Tal análise faz enveredar pelos caminhos dos direitos fundamentais e sua aplicabilidade nas relações do trabalho, perpassando pela aclamada eficácia horizontal desses direitos.

Vejamos, então, a matéria sob esses enfoques.

3.1.2.O princípio constitucional da isonomia

A República Federativa do Brasil optou por uma constituição baseada em princípios jurídicos consagradores das prerrogativas ou vantagens jurídicas estruturantes da existência, afirmação e projeção da pessoa humana e de sua vida em sociedade [51], i. e., fincada nos direitos fundamentais dos cidadãos. Tais direitos devem nortear todas as relações jurídicas, inclusive as relações laborais.

A exigência da observância dos direitos fundamentais nas relações de trabalho comprova a evolução da própria democracia em nosso país e constitui a máxima afirmação dos ideais democráticos no sistema econômico adotado pela República, qual seja o capitalismo. [52] Assim é que, nas relações laborais, empregado e empregador devem respeitar os ditames constitucionais da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, da justiça social, da função social do contrato e da propriedade privada – aqui incluída a empresa – e da igualdade formal e substancial das pessoas.

A prática de assédio moral, muitas vezes, está diretamente ligada a uma conduta discriminatória insidiosa que ofende ao princípio constitucional consagrado no caput do artigo 5º da Constituição da República ("Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...") e no artigo 7º:

"São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

(...)

XXX Proibição de diferença de salário, de exercício de função e de critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil."

Invocar o princípio da isonomia como fundamento jurídico repressor das condutas enfocadas revela-se uma medida indispensável quando se trata de assédio moral desencadeado por rejeição a uma diferença da vítima. Esta intolerância pode ser expressa por meio de discriminação em função de uma característica pessoal facilmente perceptível, como sexo, cor da pele, orientação sexual ou idade. Pode também estar associada a caracteres mais sutis, como a personalidade tímida do ofendido.

Ocorre que o convívio em sociedade requer aceitação do outro, respeitando suas peculiaridades. Ademais, o ordenamento jurídico brasileiro não tolera condutas discriminatórias expressas e insidiosas.

Detectando-se a existência de prática discriminatória, pode-se invocar a inobservância ao princípio da isonomia para julgar ilícita tal conduta, bem como ofensiva à ordem jurídica brasileira. Como bem expõe Luis Roberto Barroso,

" (...) a doutrina tem procurado expandir a capacidade normativa dos princípios através de dois movimentos: aplicando, com as adaptações necessárias, a modalidade convencional de eficácia jurídica das regras também aos princípios(...)" [53]

Analisando sob o enfoque mais moderno, constata-se que os princípios constitucionais ganham força normativa, servindo como fundamento jurídico para o regulamento da conduta lesiva, tendo em vista que tanto os princípios quanto as regras são normas jurídicas.

Para o deslinde de tais questões, podem ser invocadas, juntamente com o princípio da isonomia, as disposições infraconstitucionais vedatórias de práticas configuradoras de discriminação, como, v. g., a lei 9.029, de 13 de abril de 1995 que proíbe a "adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeitos de acesso a relação de emprego ou sua manutenção por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade (...)".

3.1.3.O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana

O princípio da dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e norteia todo o sistema jurídico pátrio. Segundo Luis Roberto Barroso, este princípio "se tornou o centro axiológico da concepção de Estado democrático de direito e de uma ordem mundial idealmente pautada pelos direitos fundamentais." [54]

No preâmbulo constitucional, está expresso que o Estado brasileiro destina-se "a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social". [55] Consagra, outrossim, como fundamentos, dentre outros princípios, o da dignidade da pessoa humana. [56]

Reafirma, assim, a nossa carta constitucional o conteúdo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 1948. Esta, nos artigos primeiro e sexto, reconhece que:

"Artigo I – Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

Artigo VI – Toda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecida como pessoa perante a lei." [57]

O direito do homem à dignidade é um direito humano que, num primeiro momento, funciona como pauta ético-política, situado "em uma dimensão suprapositiva, deonticamente diversa daquela em que se situam as normas jurídicas." [58]

Além dessa peculiaridade, a dignidade humana, no ordenamento pátrio, foi consagrada como um direito subjetivo do cidadão, posto que inserida na constituição, formal e materialmente, sendo, portanto, direito fundamental oponível não só ao Estado como também ao particular [59], envolvendo, portanto, o empregador, seus prepostos e colegas de trabalho.

Assim como todo cidadão, o trabalhador é destinatário desta proteção universal, embora, na relação laboral muitas vezes seja esquecida a sua condição humana. É importante enfatizar o que afirma Arnaldo Sussekind [60] ao expor que,"acima de tudo, tem o empregador a obrigação de respeitar a personalidade moral do empregado na sua dignidade absoluta de pessoa humana". Inadmissível, portanto, que o mercado inverta essa lógica. [61]

Da mesma forma, não se pode olvidar que a prática de assédio moral viola direito à personalidade do indivíduo, posto que atinge o ser humano em seus atributos físicos, psíquicos e morais, em si e em suas projeções sociais [62], podendo afetar seu direito à vida, à integridade física, psíquica e moral. A vítima da prática perversa, quando se encontra num estágio mais avançado, pode sucumbir a um estado depressivo, quando não mais vê sentido na vida, conforme dispõe Marie-France Hirigoyen:

Esses estados depressivos estão ligados ao esgotamento, a um excesso de estresse. As vítimas sentem-se vazias, cansadas, sem energia. Nada mais lhe interessa. Não conseguem mais pensar ou concentrar-se, mesmo na atividade mais banais. Podem, então, sobrevir idéias de suicídio. O risco é ainda maior no momento em que elas tomam consciência de que foram lesadas e que nada lhes dará a possibilidade de verem reconhecidas suas razões. Quando há um suicídio, ou tentativa de suicídio, isso conforta os perversos em sua certeza de que o outro era fraco, perturbado, louco, e que as agressões que lhe eram infligidas eram justificadas. [63]

Em estudo realizado por Margarida Barreto, [64] foi divulgado quadro comparativo contendo as diversas reações desencadeadas em homens e mulheres, vítimas de assédio moral. Os sintomas são diversos, variando desde medo, tristeza, sensação de inutilidade, manifestações depressivas chegando a pensamentos suicidas, conforme exposto na tabela abaixo:

Queixas / Sintomas / Diagnósticos

M**
494 =
56,8%

%

H***
376 = 43,2%

%

TOTAL
870 (42%)*

%

Medo Exagerado

494

100

86

23

580

66,6

Manifestações depressivas

296

60

263

70

559

64,2

Tristeza

494

100

35

9,3

529

61

Sensação de inutilidade

356

72

150

40

506

58

Mágoas

494

100

9

2,4

503

57,8

Vontade de chorar por tudo

494

100

-

-

494

56,8

Pensamento de suicídio

80

16,2

376

100

456

52,4

Vergonha dos filhos

53

10,7

376

100

249

49,3

Indignação

35

7

376

100

411

47,2

Sensação de que foi desvalorizado

56

11,3

150

40

206

23,7

Vontade de ficar só

13

2,6

180

48

193

22

Insegurança

67

13,6

112

30

179

20,6

Sentimento de desamparo

148

30

20

5,3

168

19,6

Tentativa de suicídio

-

-

69

18,3

69

8

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Fonte: BARRETO, Margarida. 2003. p. 256. Adaptado pela autora do presente trabalho. [65]

* Corresponde ao universo de 2.072 trabalhadores / trabalhadoras entrevistados.

** Mulheres***Homens

É evidente, portanto, a ofensa aos direitos da personalidade do empregado, que, em última análise, atinge toda a sociedade, posto que compreende-se "(...) a pessoa como ser psíquico atuante, que interage socialmente, incluindo-se nessa classificação o direito à liberdade, inclusive de pensamento, à intimidade, à privacidade, ao segredo (...)". [66]

O Estado brasileiro, como Estado democrático não se esqueceu da condição humana da pessoa e levou em conta a vulnerabilidade do trabalhador. Assim, conquanto tenha adotado um sistema capitalista, cingiu-o à observância das regras contidas no Título VII da Constituição da República Federativa do Brasil, que, tratando da Ordem Econômica e Financeira dispõe sobre os princípios gerais reguladores da atividade econômica no seu artigo 170, expondo que "A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social".

Necessário se faz, portanto, adotar como conteúdo normativo, norteador das relações laborais, o princípio ora enfocado, buscando a integração das normas jurídicas pátrias.

3.1.4.Direito à intimidade

O direito à intimidade é direito humano e, no Brasil, um direito fundamental, consagrado mais amplamente por nossa Constituição de 1988 [67], que, em seu artigo 5º, inciso X dispõe:

"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

Em que consiste a intimidade? Segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr. [68], a intimidade "é o âmbito do exclusivo que alguém reserva para si sem nenhuma repercussão social, nem mesmo ao alcance de sua vida privada que, por mais isolada que seja, é sempre um viver entre os outros". É, portanto, o direito à intimidade, resumidamente, o direito de estar só.

Uma possível inquirição recai sobre a eficácia do direito à intimidade. Como direito fundamental, competiria apenas ao Estado respeitá-lo, ou seria também dever do particular observar os limites impostos por ele?

A resposta ao supracitado questionamento exige o conhecimento da teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, construída pela ciência jurídica alemã. Esta partiu da constatação de que determinados grupos, e não apenas o Estado, são dotados de verdadeiros poderes sociais e econômicos capazes de afetar as relações sociais e interferir nos direitos dos indivíduos. Nestes termos, faz-se necessária a proteção dos direitos fundamentais do ser humano em face, também, dos particulares.

Segundo Ingo W. Sarlet, citado por Márcia Novaes Guedes, [69]

"Essa teoria se enquadra de modo singular na discussão da denominada constitucionalização do Direito Privado, que por sua vez decorre do reconhecimento da existência de normas "jusfundamentais" tanto na acepção material quanto formal, de cuja posição privilegiada decorrem importantes conseqüências para o problema da vinculação do poder público e dos particulares aos direitos fundamentais".

Uma importante constatação é o fato de que as relações de emprego são marcadas pela subordinação do empregado em face do empregador. Por esta razão, não são raras as condutas deste que ferem a intimidade do subordinado. Apenas algumas delas configuram assédio moral. [70]

Sobre essa assertiva, dispõe Márcia Novaes Guedes [71]:

"Não é, porém, toda agressão à intimidade do trabalhador que pode ser definida como mobbing. É preciso, portanto, distinguir o que é e o que não é mobbing. A violação ocasional da intimidade, particularmente verificada na revista pessoal, ainda não é mobbing. O sujeito perverso, todavia, pode empregar diversos expedientes, inclusive a revista, para ferir sistematicamente a dignidade da pessoa escolhida para ser assediada moralmente".

Portanto, para que a conduta seja qualificada como assédio moral é necessário o preenchimento de requisitos, i.e., a conduta abusiva deve atentar, reiteradamente, contra a dignidade psíquica do indivíduo, visando a exclusão do trabalhador do ambiente laboral. Os atos isolados que configurem ofensa à dignidade da vítima não são atos caracterizados como assédio moral.

Nossas cortes judiciais trabalhistas têm enfrentado questões referentes a condutas de assédio moral, envolvendo malferimento ao direito à intimidade do empregado. No capítulo IV, apresentaremos alguns exemplos. Por ora, é importante frisar que os direitos fundamentais dos trabalhadores constituem limite à atuação diretiva do empregador.

3.1.5.Direito fundamental a um meio ambiente de trabalho sadio

O trabalhador passa muito tempo de sua vida no ambiente de trabalho. As condições a que ele está sujeito influenciam decisivamente na sua qualidade de vida, sua saúde e até no relacionamento familiar.

O eminente jurista Celso Antonio Pacheco Fiorillo conceitua meio ambiente de trabalho como" o local onde as pessoas desempenham suas atividades laborais, sejam remuneradas ou não, cujo equilíbrio está baseado na salubridade do meio e na ausência de agentes que comprometam a incolumidade físico-psíquica dos trabalhadores, independentemente da condição que ostentem (...)". [72]

O direito a um meio ambiente de trabalho sadio é um direito fundamental, de terceira geração, de todo trabalhador. Nossa constituição federal de 1988 consagra este direito em diversos dispositivos, tais como o artigo 7º, inciso XXII (direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança), artigo 200, inciso VIII (inclui o ambiente de trabalho no meio ambiente geral) e o artigo 5º, § 2º (outros direitos decorrentes dos princípios e regime adotados pela Constituição da República). A finalidade última da tutela ao meio ambiente do trabalho é a preservação do saúde e da segurança do trabalhador.

Aduz Raimundo Simão de Melo que "o meio ambiente do trabalho adequado e Seguro é um dos mais importantes e fundamentais direitos do cidadão trabalhador, o qual, se desrespeitado, provoca agressão a toda sociedade, que, no final das contas, é quem custeia a Previdência Social, responsável pelo Seguro Acidentes do Trabalho – SAT" [73].

Os atos de assédio moral viciam o meio ambiente do trabalho, fazendo-o "adoecer". Junto com ele, a saúde da vítima e as condições de trabalho se deterioram. Pior ainda, quando há dano à saúde atinge-se, em última análise, um bem maior do ser humano, qual seja a vida.

Zelar por um meio ambiente hígido é dever do empregador, que está adstrito às normas constantes no artigo 170 da constituição federal. Ao dispor que a livre iniciativa deve fundar-se na valorização do trabalho humano e ter por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observado como princípio a defesa do meio ambiente, o legislador constituinte garantiu a livre iniciativa, mas impôs a preservação do meio ambiente, incluindo neste o meio ambiente laboral, por força, reitere-se, do artigo 200, inciso VIII da Constituição da República.

Preservar o meio ambiente é uma maneira de valorizar o trabalho humano, tendo em vista que, numa organização laboral, o trabalhador sofre mais diretamente com os efeitos degenerativos da exposição aos mais variados fatores de riscos.

Se o assédio moral é capaz de transformar o ambiente de trabalho em um meio hostil, humilhante, intimidatório, e, portanto, desequilibrado, não se discute a sua capacidade de influir negativamente na higidez física e mental do trabalhador. As consequências são de tal forma lesivas que já existe, até mesmo, um quadro sintomatológico apresentado pelas vítimas, intensificados à medida em que aumenta a durabilidade e a crueldade das condutas. [74]

Tratando do tema sintomatologia, expõe Marie-France Hirigoyen: [75]

"Esta sintomatologia é tão específica, que é possível para um clínico dotado de uma boa experiência nesse tipo de situação perceber o assédio moral unicamente a partir de suas conseqüências sobre a saúde das pessoas e assim distinguir as queixas abusivas".

Estresse, ansiedade, depressão, distúrbios psicossomáticos são alguns dos problemas enfrentados pelas vítimas de assédio moral. A forma como cada um os manifesta varia de pessoa para pessoa. Discorrendo, ainda, sobre os distúrbios psicossomáticos, Marie-France Hirigoyen expõe que:

"O desenvolvimento dos distúrbios psicossomáticos é impressionante e grave, e de crescimento rápido. Acontece sob a forma de emagrecimento intensos ou então rápidos aumentos de peso (quinze a vinte quilos em alguns meses), distúrbios endocrinológicos (problemas de tireóides, estômagos [...] crises de hipertensão arterial incontroláveis, mesmo sob tratamento, indisposições, vertigens, doenças de pele etc." [76]

As consequências de um meio ambiente de trabalho afetado negativamente por atos de assédio moral podem ser fulminantes para a saúde tanto física quanto mental do empregado. O caso abaixo é citado pela pesquisadora Marie-France Hirigoyen:

Pedro veio se consultar porque estava sendo assediado por um chefe recentemente admitido. Por ocasião da primeira consulta, ainda estava dinâmico, ativo, explicando com precisão as aberrações de comportamento do chefe. Recusou qualquer ajuda medicamentosa, pois sairia de férias nos dias subseqüentes e esperava que, na volta, as coisas melhorasse. Algumas semanas depois, quando voltou a se encontrar, perdeu nove quilos, estava pálido, abatido e trêmulo. Tinham-lhe, na última hora, suprimido as férias, no entanto solicitadas havia vários meses, advertindo-o de que, se se ausentasse do serviço, mesmo que por um curto período, seria repreendido. Seu patrão o sobrecarrega de trabalho e, literalmente, descompõe Pedro o dia inteiro, criticando sistematicamente tudo que ele faz. Pedro perdeu o sono. Em sua cabeça remói tudo que deveria ter dito e feito para se defender. Só adormece de madrugada, pouco antes de o despertador tocar. É forçado a comer, mas não sente fome [...]

Diante da degradação de seu estado de saúde, eu o aconselho a marcar rapidamente uma consulta com o clínico para uma avaliação. O médico diagnosticou nele hipertensão arterial, colesterol alto e distúrbios das batidas cardíacas. Pedro, porém, evitou solicitar a licença médica por medo de demissão. O reflexo de seu estado, apesar de tentar negar as evidências, aos poucos, é patente mediante o desmazelo com o próprio corpo, o descuido com o vestuário e o asseio. Esta recusa provavelmente indica que ele não agüenta os efeitos secundários dos medicamentos antidepressivos.

Pouco tempo depois, recebemos um telefonema do hospital onde Pedro fora internado de urgência devido a um mal-estar neurológico, ocorrido depois de ele ser destratado pelo chefe diante dos colegas [...]" [77]

A conduta de assédio moral, portanto, pode ser enquadrada como ofensora ao meio ambiente de trabalho. Diante disso, incorre o empregador em ato ilícito apto a prejudicar a saúde do trabalhador e, em última instância, ofendendo-o em seu direito à vida digna, tendo em vista a possibilidade de efetivar-lhe dano moral de natureza gravíssima.

3.1.6.Inobservância das obrigações previstas na CLT

A CLT impõe algumas obrigações ao empregador nas relações trabalhistas, cuja inobservância tem o condão de ensejar a dispensa indireta do empregado, justificando a ruptura do liame empregatício pelo empregado, com direito às mesmas parcelas rescisórias a que faria jus se tivesse sido dispensado sem justa causa.

A respeito, dispõe a norma consolidada, em seu art. 483:

"Art. 483 - O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando:

a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, ou alheios ao contrato;

b) for tratado pelo empregador ou por seus superiores hierárquicos com rigor excessivo;

c) correr perigo manifesto de mal considerável;

d) não cumprir o empregador as obrigações do contrato;

e) praticar o empregador ou seus prepostos, contra ele ou pessoas de sua família, ato lesivo da honra e boa fama;

f) o empregador ou seus prepostos ofenderem-no fisicamente, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;

g) o empregador reduzir o seu trabalho, sendo este por peça ou tarefa, de forma a afetar sensivelmente a importância dos salários ".

As práticas caracterizadoras do assédio moral podem ser perfeitamente enquadráveis nas hipóteses elencadas nas alíneas do art. 483 da CLT [78], que descreve condutas que não raro são utilizadas como instrumento para violentar a integridade física e psíquica ou a dignidade do trabalhador, configurando o assédio moral.

3.2 FUNDAMENTOS LEGAIS DE ÂMBITOS ESTADUAL E MUNICIPAL

É elemento fundamental da Federação a repartição de competências entre os estados membros.

O Brasil, cuja forma de Estado adotada é a Federativa, não olvidou a imprescindibilidade dessa repartição de competências, prevendo-a a Constituição de 1988, em seus arts. 21 a 32.

Para o propósito perseguido neste trabalho, interessa a repartição de competências legislativas.

O art. 22, inciso I, da Constituição da República estatui que compete privativamente à União legislar sobre "direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho".

Considerando que o combate pela via legislativa ao assédio moral no trabalho impende adentrar em alguns pontos desses ramos jurídicos, notadamente direito civil, penal e do trabalho, a atuação legiferante dos Estados e Municípios encontra óbice constitucional de relevo nessa seara.

Todavia, não obstante seja da União o poder de legislar, privativamente, sobre as matérias elencadas no art. 22 da Lei Fundamental, o texto constitucional em nenhum momento veda a atuação material dos demais entes federados nessas áreas.

Desse modo, Estados e Municípios podem e devem atuar materialmente no combate ao "mobbing" no trabalho, como, "v.g.", por meio de campanhas publicitárias.

Por outro lado, se, no plano legiferante, Estados e Municípios não podem obstar a prática de assédio moral mediante normas de direito civil, penal e do trabalho, estão, porém, autorizados a legislar sobre esse tema em relação a seus servidores, por competir-lhes elaborar normas sobre o regime jurídico dos mesmos.

A respeito do tema, o Estado do Rio de Janeiro editou a Lei n. 3921, de 23 de agosto de 2002, que veda o assédio moral no trabalho, no âmbito dos órgãos, repartições ou entidades da administração centralizada, autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista, do poder legislativo, executivo ou judiciário do Estado do Rio de Janeiro, inclusive concessionárias e permissionárias de serviços estaduais de utilidade ou de interesse público. Qualifica o assédio moral como infração grave, sujeitando o agente infrator à penalidade de advertência e, nos casos de reincidência, às penalidades de suspensão ou demissão.

Assim caracteriza o assédio moral a referida Lei do Estado do Rio de Janeiro:

"Artigo 2º - Considera-se assédio moral no trabalho, para os fins do que trata a presente Lei, a exposição do funcionário, servidor ou empregado a situação humilhante ou constrangedora, ou qualquer ação, ou palavra gesto, praticada de modo repetitivo e prolongado, durante o expediente do órgão ou entidade, e, por agente, delegado, chefe ou supervisor hierárquico ou qualquer representante que, no exercício de suas funções,abusando da autoridade que lhe foi conferida, tenha por objetivo ou efeito atingir a auto-estima e a autodeterminação do subordinado, com danos ao ambiente de trabalho, aos serviços prestados ao público e ao próprio usuário, bem como, obstaculizar a evolução da carreira ou a estabilidade funcional do servidor constrangido.

Parágrafo único - O assédio moral no trabalho, no âmbito da administração pública estadual e das entidades colaboradoras, caracteriza-se, também, nas relações funcionais escalões hierárquicos, pelas seguintes circunstâncias:

I - determinar o cumprimento de atribuições estranhas ou atividades incompatíveis com o cargo do servidor ou em condições e prazos inexeqüíveis;

II - designar para funções triviais, o exercente de funções técnicas, especializadas ou aquelas para as quais, de qualquer forma, sejam exigidos treinamento e conhecimento específicos;

III - apropriar-se do crédito de idéias, propostas, projetos ou de qualquer trabalho de outrem;

IV - torturar psicologicamente, desprezar, ignorar ou humilhar o servidor, isolando-o de contatos com seus colegas e superiores hierárquicos ou com outras pessoas com as quais se relacione funcionalmente;

V - sonegar de informações que sejam necessários ao desempenho das funções ou úteis à vida funcional do servidor;

VI - divulgar rumores e comentários maliciosos, bem como críticas reiteradas, ou subestimar esforços, que atinjam a saúde mental do servidor; e

VII - na exposição do servidor ou do funcionário a efeitos físicos ou mentais adversos, em prejuízo de seu desenvolvimento pessoal e profissional."

Alguns Estados, como Bahia e Pernambuco, têm projetos de lei em trâmite em suas assembleias legislativas, com o mesmo propósito. [79]

No âmbito dos Municípios, importa destacar que vários deles também normatizaram expressamente a proibição de prática de assédio moral nas dependências da Administração Pública Municipal. Elencaremos, a título exemplificativo, algumas leis editadas por esses entes federativos.

O Município de Iracemápolis foi quem primeiro editou norma sobre o assédio moral, promulgando a Lei Municipal n. 1.163/2000, que dispõe sobre a aplicação de penalidades à prática de assédio moral nas dependências da Administração Pública Municipal Direta por servidores públicos municipais

Tal diploma normativo estatui que:

... considera-se assédio moral todo tipo de ação, gesto ou palavra que atinja, pela repetição, a auto-estima e a segurança de um indivíduo, fazendo-o duvidar de si e de sua competência, implicando em dano ao ambiente de trabalho, à evolução da carreira profissional ou à estabilidade do vínculo empregatício do funcionário, tais como: marcar tarefas com prazos impossíveis, passar alguém de uma área de responsabilidade para funções triviais; tomar crédito de idéias de outros; ignorar ou excluir um funcionário só se dirigindo a ele através de terceiros; sonegar informações de forma insistente; espalhar rumores maliciosos; criticar com persistência; subestimar esforços.

No Município de São Paulo, a Lei n. 13.288, de 10 de janeiro de 2002, que dispõe sobre a aplicação de penalidades à prática de assédio moral nas dependências da Administração Pública Municipal Direta e Indireta por seus servidores públicos, em texto idêntico ao utilizado pelo Município de Iracemápolis, vaticina:

considera-se assédio moral todo tipo de ação, gesto ou palavra que atinja, pela repetição, a auto-estima e a segurança de um indivíduo, fazendo-o duvidar de si e de sua competência, implicando em dano ao ambiente de trabalho, à evolução da carreira profissional ou à estabilidade do vínculo empregatício do funcionário, tais como: marcar tarefas com prazos impossíveis; passar alguém de uma área de responsabilidade para funções triviais; tomar crédito de idéias de outros; ignorar ou excluir um funcionário só se dirigindo a ele através de terceiros; sonegar informações de forma insistente; espalhar rumores maliciosos; criticar com persistência; subestimar esforços.

A Lei Municipal n. 3.243/2001, de 15 de maio de 2001, do Município de Cascavel – PR, por sua vez, define assédio moral, nos seguintes termos:

...fica considerado como assédio moral todo tipo de ação, gesto ou palavra que atinja a auto-estima, a segurança, a dignidade e moral de um servidor ou funcionário, fazendo-o duvidar de si e de sua competência, causando-lhe constrangimento ou vergonha, implicando em dano ao ambiente de trabalho, à evolução da carreira profissional, à estabilidade ou equilíbrio do vínculo empregatício e à saúde física ou mental do servidor funcionário, tais como: marcar tarefas com prazos impossíveis; passar alguém de uma área de responsabilidade para funções triviais; tomar créditos de idéias de outros; ignorar ou excluir um servidor ou funcionário de ações triviais; tomar créditos de idéias de outros; ignorar ou excluir um servidor ou funcionário de ações e atividades pertinentes à sua função específica, só se dirigindo a ele através de terceiros; sonegar informações de forma contínua sem motivação justa; espalhar rumores maliciosos de ordem profissional ou pessoal; criticar com persistência causa justificável; subestimar esforços nos desenvolvimento de suas atividades; sonegar-lhe trabalho; restringir ou suprimir liberdades ou ações permitidas ou demais de mesmo nível hierárquico. funcional; outras ações que produzam os efeitos retro mencionados.

Por fim, vale destacar a redação sistemática da Lei n. 11.409, de 04 de novembro de 2002, do Município de Campinas – SP, que assim preceitua:

"Art. 2º Considera-se assédio moral para os fins de que trata a presente lei toda ação, gesto, determinação ou palavra, praticada de forma constante por agente, servidor, empregado, ou qualquer pessoa que, abusando da autoridade que lhe confere suas funções, tenha por objetivo ou efeito atingir a auto-estima ou a autodeterminação do servidor.

§ 1º. Considera para efeito do caput deste artigo:

I - determinar o cumprimento de atribuições estranhas ou de atividades incompatíveis com o cargo que ocupa, ou em condições e prazos inexeqüíveis;

II - designar para o exercício de funções triviais o exercente de funções técnicas, especializadas, ou aquelas para as quais, de qualquer forma, exijam treinamento e conhecimentos específicos;

III - apropriar-se do crédito de idéias, propostas, projetos ou de qualquer trabalho de outrem;

§ 2º. Considera-se também assédio moral as ações, gestos e palavras que impliquem:

I - em desprezo, ignorância ou humilhação ao servidor que o isolem de contatos com seus superiores hierárquicos e com outros servidores, sujeitando-o a receber informações, atribuições, tarefas e outras atividades somente através de terceiros;

II - na divulgação de rumores e comentários maliciosos, bem como na prática de críticas reiteradas ou na subestimação de esforços, que atinjam a dignidade do servidor;

III - na exposição do servidor a efeitos físicos ou mentais adversos, em prejuízo de seu desenvolvimento pessoal e profissional;

IV - em res´´trição ao exercício do direito de livre opinião e manifestação das idéias."

Ressalte-se, portanto, que a análise sistemática e integradora de todo o ordenamento jurídico brasileiro já permite aduzir a proteção conferida pelo Estado Brasileiro ao trabalhador, inibindo práticas atentatórias à sua dignidade, como as condutas de assédio moral.

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Sobre a autora
Rosana Santos Pessoa

Procuradora da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PESSOA, Rosana Santos. Assédio moral nas relações de trabalho e o sistema jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2446, 13 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14520. Acesso em: 19 mar. 2024.

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