Resumo: Por meio do presente trabalho, pretendemos comprovar a existência de vínculo empregatício entre os chamados "motoristas-auxiliares" e os proprietários autônomos de táxis. O não-reconhecimento da prática recorrente em todo o país de instituir supostos regimes de colaboração fundados na Lei n. 6.094/74 como relação de emprego afronta o princípio da primazia da realidade, do Direito do Trabalho. É especialmente com base nesse princípio que procuraremos demonstrar a relação empregatícia escamoteada por um falso regime de colaboração embasado na lei.
Palavras-chave: Motorista-auxiliar. Proprietário autônomo. Táxi. Princípio da primazia da realidade. Vínculo empregatício.
Sumário: 1. Considerações iniciais. 2. Requisitos do vínculo empregatício. 2.1. Pessoalidade. 2.2. Habitualidade. 2.3. Subordinação. 2.4. Onerosidade. 3. O caso dos "motoristas-auxiliares". 4. Caracterização do vínculo de emprego entre "motorista-auxiliar" e proprietário autônomo. 4.1. Pessoalidade. 4.2. Habitualidade. 4.3. Subordinação. 4.4. Onerosidade. 5. Conclusão. 6. Bibliografia.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A caracterização do vínculo empregatício entre duas partes contratantes e, consequentemente, do contrato de trabalho desempenha papel fundamental no reconhecimento dos direitos trabalhistas do empregado, tais como hora extra, décimo terceiro salário, férias remuneradas, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), aviso prévio, seguro-desemprego etc.
O enquadramento da situação fática nos requisitos da relação de emprego (examinados infra) significa a garantia da aplicação de todas as normas inerentes ao trabalhador. [01] Não podemos permitir que contratos de trabalho dissimulados em contratos civis deixem de produzir seus efeitos naturais [02]. A prática é recorrente em todo o país, e milhares de taxistas que fazem jus aos seus direitos trabalhistas deixam de auferir os seus benefícios em virtude de artimanhas dos empregadores, que procuram formas de burlar a lei trabalhista.
O homem, aliás, sempre buscou formas de transpassar leis para obter vantagens. Exemplo claro disso são os "contratos de cessão de uso de imagem" (entre aspas porque são simulações, enquadráveis no art. 167 do Código Civil) celebrados entre clubes de futebol e jogadores. Para escapar do Fisco, a maioria dos clubes brasileiros registra um salário ínfimo (para os padrões do jogador) no contrato de trabalho e um valor exorbitante (o verdadeiro salário) no "contrato de cessão de uso de imagem" (de natureza supostamente civil). Ora, na verdade esse último contrato é uma simulação. A essa situação os tribunais aplicam tranquilamente o art. 9º da Consolidação das Leis do Trabalho combinado com o art. 167 do Código Civil. [03] Resultado disso é a consideração do "contrato de cessão de uso de imagem" como integrante do contrato de trabalho; seus valores, portanto, são entendidos como componentes do salário do jogador. [04]
A percepção dessa manobra fraudulenta dos clubes pelos tribunais foi extremamente importante, porquanto a partir dessas decisões os direitos trabalhistas dos jogadores passaram a ser concedidos com base no salário composto dos valores somados do contrato de trabalho e do de "cessão do uso de imagem". Há aí grande diferença tanto para o jogador quanto para o Estado, pois o FGTS e o INSS, por exemplo, são diretamente proporcionais ao salário.
Pretendemos demonstrar a existência de simulação também na hipótese dos chamados "motoristas-auxiliares" (ou defensores), que na realidade não são auxiliares, mas certamente subordinados. Tomando como premissa basilar de nosso raciocínio o princípio da primazia da realidade, [05] examinaremos cada aspecto dos contratos pactuados entre defensores e proprietários para, ao final, concluirmos que se trata de pactos laborais propriamente ditos.
2. REQUISITOS DO VÍNCULO EMPREGATÍCIO
As atividades humanas desempenhadas em uma relação de trabalho são o fator impulsionador de todo um sistema econômico capitalista e que determinam os direcionamentos que deve o legislador observar para regular da forma mais eficaz e justa as relações sociais. As atividades humanas podem ser divididas em duas categorias marcadamente diversas, o contrato individual de trabalho [06], que mais corretamente deveria ser chamado de contrato de emprego, mas, por apego ao usual utilizaremos a expressão amplamente adotada pela doutrina, que denota a relação de emprego, nos lindes do art. 442 da Consolidação das Leis Trabalhistas [07], e a prestação de serviço, que emerge como a prestação de um serviço, de um trabalho autônomo.
Dessa feita, os serviços oriundos da atividade laborativa podem ser prestados de duas formas peculiares, quais sejam, o trabalho autônomo e o trabalho subordinado. A primeira forma de manifestação do labor humano, a prestação de serviços, é marcada pela liberdade que possui o prestador para escolher os meios que utilizará para prestar o serviço a que se comprometeu, além de ditar as regras que seguirá nessa relação de trabalho, não se podendo reconhecer na simples observância de instruções uma dependência, subordinação ao empregador. Nessa modalidade podemos verificar que o fator preponderante da relação contratual é mais a eficácia do serviço do que os meios que os métodos utilizados pelo autônomo na consecução desse fim. Na segunda forma de manifestação, no contrato de trabalho, o subordinado (empregado, por conseguinte) está inteiramente vinculado às decisões do empregador em todas as etapas do seu processo laborativo, isto é, sujeito à vontade de outra pessoa, que o dirige e coordena suas atividades.
Inegável que o vínculo estabelecido entre empregado e empregador é uma relação jurídica regida pela norma jurídica, tratando-se, pois, de um complexo de direitos e deveres que se estabelece entre as partes quando ambos aceitam aderir às cláusulas do contrato de trabalho, decorrendo, portanto, o vínculo empregatício da vontade das partes – autonomia da vontade.
A manifestação do contrato de trabalho [08] traz a lume a hipótese da relação de emprego, [09] que passa a existir entre empregador e empregado com a prestação dos serviços de forma subordinada. Nesse tocante precisas são as lições de Amauri Mascaro Nascimento quando assevera: "Definimos relação de emprego como a relação jurídica de natureza contratual tendo como sujeitos o empregado e o empregador e como objeto o trabalho subordinado, continuado e assalariado". [10]
A partir desse conceito, podemos observar três dos quatro elementos que caracterizam a relação de emprego, quais sejam, a subordinação, a não-eventualidade e a onerosidade, representada pela percepção de salários. O outro requisito imprescindível para a configuração a relação de emprego e, consequentemente, para o reconhecimento do vínculo empregatício, é a pessoalidade.
Analisaremos em abstrato cada um dos requisitos para o reconhecimento do vínculo empregatício.
2.1. Pessoalidade
Somente podemos enquadrar como empregado, o qual faz jus ao reconhecimento do vínculo empregatício, aquele trabalhador que presta seus serviços pessoalmente a terceiros, exercendo de per si uma atividade direta, sem poder delegar para outrem essa atividade [11]. Podemos vislumbrar nesse requisito a presença do elemento intuitu personae [12] que liga empregador e empregado, ou seja, o vínculo moral e psicológico que se estabelece entre ambos de modo a haver aí uma relação de confiança entre as partes. Fica evidente também a indissociabilidade entre o empregador e o empregado, pois aquele contrata o serviço deste levando em consideração suas qualificações, seus atributos. Podemos concluir disso que a relação de emprego é uma obrigação personalíssima, em que o empregado não se pode fazer substituir por outrem.
A obrigação principal contida em um contrato de trabalho é que o empregado coloque suas forças, sua energia pessoal, para a realização de determinado serviço. Observamos, pois, que esse atributo intrínseco da pessoa é elevado a objeto do contrato, sendo levadas pelo empregador em consideração as características subjetivas de cada pessoa para contratar aquela que, em seu juízo, é a mais hábil e eficiente para a consecução das tarefas a serem exercidas [13]. Essa escolha com base em atributo personalíssimo do empregado é que caracteriza a pessoalidade do contrato de trabalho.
Surge com a contratação um vínculo de colaboração, em que o trabalhador se compromete a utilizar de suas forças para promover o desenvolvimento das atividades do empregador para quem prestará seus serviços, até mesmo por depender o trabalhador do crescimento das atividades de seu empregador para a sua subsistência, pois sem o desenvolvimento há o fechamento dos postos de trabalho. Se ele não se empenhar, descumprindo o dever de lealdade e de colaboração que surge com a contratação, o empregador deixa de ter meios suficientes para cumprir a sua parte do contrato de trabalho, qual seja, remunerar o trabalhador pela atividade desempenhada.
É importante salientar que, para o reconhecimento da figura do trabalhador como um empregado, necessário se faz a presença concomitante dos quatro requisitos para a configuração do vínculo empregatício, em cuja análise persistimos, de modo que, se um deles não estiver presente, descaracterizada fica a relação de emprego. [14]
2.2. Habitualidade
Para a configuração do vínculo empregatício, a prestação dos serviços não pode ocorrer de forma descontínua, interrupta, ou seja, com afastamentos temporários razoáveis, fragmentação durante um período de trabalho e outro para o mesmo empregador. Não estamos querendo dizer com isso que a prestação de serviço deve ocorrer sem intervalos entre prestações, o que seria falacioso e atentaria contra a realidade usual dos contratos de trabalho, haja vista não serem poucos os trabalhadores que laboram em regime de escala, e que, portanto, não estão laborando diariamente, mas sim com um intervalo entre as atividades por ele desempenhadas, o que nem de longe desconfigura a relação de emprego. A habitualidade está na prestação contínua dos serviços a um tomador (com animus de definitividade [15]), na verdade na continuidade do vínculo com o empregador. [16]
A prestação não pode estar condicionada a um evento, a uma realização esporádica, ficando adstrita à realização e duração de determinado evento [17]. Essa assertiva deve ser sempre vista com cautela, uma vez que o trabalho temporário é uma relação de emprego, com a presença de todos os elementos caracterizadores do vínculo empregatício, inclusive a habitualidade. Assim, o que temos que concluir é que a natureza do trabalho não pode ser concernente a e dependente de evento esporádico. [18]
Basta que o trabalhador exerça as suas funções para um determinado empregador sem que suas atividades sejam esporádicas e sem que sejam somente exigidas quando do acontecimento de determinado evento.
2.3. Subordinação [19]
A subordinação implica a sujeição do empregado às normas pré-estabelecidas pelo empregador e às coordenadas de comando da atividade a ser exercida. O empregado aceita as condições e as modalidades que o empregador impõe para a realização da atividade laboral. O trabalhador consente, assim, com as normas determinantes do modo como deve prestar os seus serviços delimitadas pelo empregador. [20]
Cumpre destacar que não é o trabalhador que é subordinado às normas diretivas do empregador, e sim o modus operandi da sua atividade laboral, a maneira como deve ser exercida a atividade na prestação do serviço. [21] Há o que a doutrina convenciona chamar de subordinação jurídica do empregado ao empregador. [22]
Podemos concluir que o trabalhador sujeita a sua atuação, o modo como exercerá as suas atividades, às normas diretivas, à política adotada pelo empregador, e aos comandos determinativos da maneira a ser exercida a tarefa, impondo-se uma limitação à autonomia do empregado. Ocorre, dessa forma, uma imposição de limites por parte do empregador no tocante à atuação e à coordenação das atividades. O patrão supervisiona as atividades laborais de seus empregados, determinando-lhes todo um complexo normativo para que possam realizar suas atividades. [23]
2.4. Onerosidade
O contrato de trabalho implica uma alienação, por parte do trabalhador, de suas atividades, de modo que recebe do empregador parte daquilo que produz com o emprego de suas forças na consecução da atividade produtiva. Assim, o trabalhador transfere a titularidade daquilo que produz com suas forças, em teoria a ele pertencente, ao empregador, que o recompensa com parte do produto da atividade laborativa, mas que não equivale ao montante por ele produzido, o que caracteriza a remuneração, a onerosidade do contrato de trabalho. [24]
Caso não houvesse a remuneração como resultado (contraprestação) da alienação do trabalho do empregado, estaria presente aquilo que por tempos perdurou de modo institucionalizado no Estado brasileiro e que, infelizmente, perdura, apesar de sua ilegalidade, até a modernidade: a escravidão – a não ser que os serviços gratuitos assim o fossem por vontade própria do seu prestador, caso de trabalho voluntário. [25]
Com a remuneração, ocorre o fenômeno da alienação, em que o empregador transfere a titularidade do produto de sua força produtiva para o empregado em troca de uma recompensa. O trabalhador troca os futuros produtos do seu labor, incertos, por um montante prefixado no contrato de trabalho, que caracteriza o salário [26]. No caso do ordenamento jurídico brasileiro, ainda que haja a possibilidade de percepção de recompensa de terceira pessoa, e não diretamente do empregador, como a gorjeta, exige-se que o empregado receba uma quantia prefixada, a que se dá o nome de salário-mínimo. O salário-mínimo representa o básico, o essencial, para que o ser humano possa sobreviver e desenvolver-se em sua plenitude. Vale destacar as precisas lições do preclaro mestre Arnaldo Süssekind quando assevera que "[...] não é a falta de estipulação do quantum do salário ou o seu pagamento sob a forma indireta que desfiguram a condição do empregado, e sim a intenção de prestar o serviço desinteressadamente, por mera benevolência", [27] ou, acrescentamos, por exploração ilegal de suas forças.
3. O CASO DOS "MOTORISTAS-AUXILIARES"
Em alguns lugares são chamados de motoristas-auxiliares; em outros, de defensores. O certo é que desde há um bom tempo os motoristas de táxi vêm reclamando das condições em que trabalham. Para pagarem as diárias a que estão sujeitos – em grande parte dos casos o sistema é de diárias, mas há também a divisão da receita auferida no dia em porcentagens (40% para o proprietário e 60% para o motorista, por exemplo) –, os "auxiliares" têm que trabalhar exaustivamente. Chegamos ao ponto de haver declarações de vários motoristas afirmando que trabalhavam como escravos!
Ora, precisamos acordar pra uma realidade que não corresponde ao pacto formal celebrado entre o proprietário e o motorista [28]. O art. 1º da Lei n. 6.094/74 é claro quando determina que "é facultada ao Condutor Autônomo de Veículo Rodoviário a cessão do seu automóvel, em regime de colaboração, no máximo a dois outros profissionais". Há aí dois pontos a serem observados: a) "condutor autônomo de veículo rodoviário" pressupõe que o proprietário também dirige o veículo, e b) "regime de colaboração" nos induz à ideia de esforço mútuo e correspectivo. O que observamos rotineiramente são, em sua maioria, proprietários de veículos de táxi com uma verdadeira empresa. Muitos proprietários não são motoristas, mas têm a licença para seu veículo transitar na função de táxi e concedem o uso desse veículo a terceiros na forma de "contrato de locação". [29]
Está claro e evidente que o proprietário exerce, de fato, atividade empresária. Ele não colabora com os seus "auxiliares" justamente porque não há regime de colaboração, mas patente subordinação. É um sistema em que o proprietário é o dono dos meios de produção, e o empregador aliena sua força de trabalho para receber seu salário na medida da sua produção diária. [30] Apesar de o dono do táxi ostentar o meio de produção, a manutenção e o combustível do veículo geralmente ficam a cargo do defensor! De qualquer forma, o art. 2º, § 1º, da CLT alberga com perfeição a figura de que ora tratamos: "Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência [...]".
4. CARACTERIZAÇÃO DO VÍNCULO DE EMPREGO ENTRE "MOTORISTA-AUXILIAR" E PROPRIETÁRIO AUTÔNOMO
Para que haja a caracterização do vínculo empregatício, vimos que a relação entre o obreiro e o empregador não prescinde da presença dos requisitos da pessoalidade, da habitualidade, da subordinação e da onerosidade. Como o escopo deste trabalho é demonstrar a existência de relação de emprego entre "motorista-auxiliar" e proprietário autônomo de táxi, faz-se mister que enquadremos a situação fática em cada um desses requisitos.
4.1. Pessoalidade
Quando o motorista de táxi é contratado por empresa, por mais que o contrato firmado escamoteie a situação, passando-se por "contrato de locação" do táxi, os tribunais já vêm entendendo pacificamente a existência de vínculo empregatício. Depreende-se isso do enunciado n. 5.1, alínea t, da Orientação Normativa n. 8, cujo texto assim determina: "5.1. É considerado empregado: [...] t) o motorista de táxi que firma contrato de locação de veículo com empresa de táxi (Parecer-MPS/CJ/Nº 18/93)".
Ora, se é reconhecido o vínculo empregatício em casos tais, por conseqüência lógica também se reconhece a pessoalidade e com muito mais razão se a deve reconhecer no caso do defensor, contratado pelo proprietário autônomo. Explicamos. É sabido de todos que essas empresas mantêm todo um aparato voltado especialmente à contratação de motoristas. Essa contratação ocorre de forma massiva, de maneira que não há preocupação com quem, especificamente, está dirigindo cada veículo, mas sim com determinada quantidade de motoristas devidamente habilitados conduzindo certo número de veículos. É claro que aí há pessoalidade, pois a empresa não quer que maus motoristas dirijam seus carros, por isso os contratados não se podem fazer substituir por outra pessoa.
Ocorre que, nas relações interpessoais, esse aspecto da pessoalidade fica ainda mais patente. É manifesto o caráter intuitu personae do contrato em questão. Um proprietário de veículo de transporte individual de pessoas, pelo fato de possuir um só automóvel, tem uma preocupação muito maior com a pessoa que conduzirá seu táxi do que a sociedade empresária cuja atividade gira em torno desse mesmo ramo empresarial. Isso porque, nessa linha de pensamento, qualquer prejuízo que o proprietário (permissionário) vier a ter em virtude de um comportamento de um defensor ser-lhe-á, sem dúvida, muito mais danoso do que seria a uma sociedade empresária com vários empregados. A confiança que o permissionário deposita no "auxiliar" é mais evidente nesse caso, pois o primeiro confia a manutenção da sua única fonte de renda a um ou, no máximo, dois defensores (o art. 1º da Lei n. 6.094/74 permite um máximo de dois, e o proprietário, como quer, mais do que ninguém, manter a farsa da "colaboração", obedece à lei).
4.2. Habitualidade
Os dias de trabalho dos motoristas variam, mas normalmente trabalham no mínimo de segunda a sexta-feira, com jornada diária de pelo menos oito horas (normalmente é maior). Ora, é inescondível a presença do requisito da habitualidade. Se o proprietário tem a certeza de que o motorista voltará no dia seguinte para trabalhar, está caracterizada a não-eventualidade da prestação do serviço. Ademais, Francisco de Mattos Rangel adverte que "[...] nunca é eventual o trabalho relativo à finalidade da empresa". [31]
Pelo fato de o contrato de trabalho ser um pacto de trato sucessivo, a camuflagem se dá, em grande parte das vezes, por meio de contrato de locação, de execução também diferida. Ocorre que, uma vez observada a presença dos outros requisitos do pacto laboral, caracteriza-se o contrato de trabalho, mesmo no caso de contrato que se diz "de cessão de automóvel em regime de colaboração" nos termos da Lei n. 6.094/74.
A mencionada lei se aplica à situação em que um condutor e o proprietário autônomo de um táxi contratam, inexistindo subordinação jurídica e salário, uma vez que os lucros são divididos igualmente, apesar de normalmente haver pessoalidade e continuidade, características comuns a praticamente todos os contratos de execução diferida. É inegável que, concorrendo todos os requisitos para a constituição de um contrato de trabalho (pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade), a realidade não mais se conforma à fattispecie prevista no art. 1º da Lei n. 6.094/74, pois apresenta algo a mais. É justamente esse o caso em tela, em que o defensor está plenamente enquadrado na posição de empregado perante o proprietário do táxi, como continuamos a expor. Não há apenas pessoalidade e continuidade, mas também subordinação e onerosidade.
4.3. Subordinação
Em reforço de nossa argumentação – contudo sem emitir qualquer juízo de valor a respeito da situação, a não ser aquele que pertine ao caso –, foi amplamente discutida no Rio de Janeiro (e o assunto chegou até ao Supremo Tribunal Federal mediante o RE 359.444/RJ) a questão dos "motoristas-auxiliares". A Lei Municipal n. 3.123/00, de autoria do vereador Pedro Porfírio, teve sua constitucionalidade questionada no Supremo, o qual, em sessão plenária, por 10 votos a 1 (vencido o relator Min. Velloso) reputou-a quase integralmente constitucional (apenas dispositivos poucos e menos relevantes para o nosso caso foram considerados inconstitucionais, como um que concernia a direito penal). Todos os votos vencedores seguiram linha argumentativa no sentido sociológico, julgando a lei uma importante conquista para os motoristas-auxiliares.
A lei transformou os motoristas-auxiliares em permissionários, isto é, passou-os à mesma condição jurídica dos proprietários dos veículos. Essa lei foi tão comemorada pela comunidade dos motoristas-auxiliares do Rio de Janeiro justamente pelo fato de que trabalhavam excessivamente para conseguirem pagar as diárias aos proprietários. Com a lei, ter-se-iam libertado desse vínculo, que os prendia aos proprietários em virtude da obrigação de lhe pagarem uma média de 150 a 170 reais por dia. Ora, que vínculo é esse? Inegável que um vínculo de subordinação, de dependência. O vínculo é tão forte que se chegou a compará-lo à escravidão! Se não há subordinação numa relação dessa índole, não podemos reconhecê-la em nenhuma outra.
Percebemos que os motoristas são completamente dependentes dessa atividade. O capital que auferem com esse labor é de onde eles retiram o sustento seu e de sua família. O defensor está evidentemente subordinado ao permissionário, na medida em que se submete a horário previamente estipulado. Não trabalha no horário que lhe mais apraz – afinal, o proprietário mantém dois motoristas em "regime de colaboração", cada um ficando responsável por exercer a atividade de taxista em um período do dia –, não fica com todo o dinheiro que recebe com o produto do seu esforço e, economicamente, depende deveras da remuneração percebida com esse emprego.
Imaginemos uma situação em que o proprietário decida que não mais necessita dos serviços do defensor. Seria catastrófica para o último a perda dessa fonte de renda, visto que boa parte dos defensores exerceu essa profissão durante grande parte de sua vida, não tendo gozado de oportunidade de desenvolver habilidades em outras profissões. Dessa forma, ficaria à deriva até mesmo no que tange aos benefícios a que teria direito qualquer outro empregado (hora extra, décimo terceiro salário, FGTS, férias etc.). Pode não haver, formalmente (contratualmente), subordinação jurídica, contudo a realidade demonstra que, além da subordinação ao horário, também a dependência econômica é enorme e evidente. [32]
Muitos motoristas-auxiliares são dispensados em caso de doenças ou de acidentes, pois não conseguem pagar as diárias. É justamente por motivos dessa natureza que deputados federais já apresentaram projetos de lei no sentido de impedir essa tentativa de camuflar o vínculo empregatício do motorista-auxiliar com o proprietário do táxi por meio de um regime supostamente "de colaboração", nos termos da Lei n. 6.094/74. Os projetos de lei de que falamos são o 3953/04, o 3272/04 e o 3232/04, de autoria dos deputados Selma Schons (PT-PR), Eduardo Valverde (PT-RO) e Confúcio Moura (PMDB-RO), respectivamente, propostas essas que pretendem alterar a Lei 6.094/74, para permitir a contratação de motoristas-auxiliares pela CLT. São projetos com o fito de reconhecer juridicamente o que de fato já se comprova há um bom tempo.
4.4. Onerosidade
Os defensores prestam o serviço de motorista aos permissionários e em troca disso recebem um salário. Não é dado ao motorista se apropriar de todo o dinheiro oriundo dos pagamentos recebidos pelas corridas que fez. Isso porque o contrato estipula que ao produto pecuniário diário da sua atividade deve ser dado determinado destino, para que só então possa desfrutar do seu salário. Ele é remunerado pelo dono do veículo, haja vista que não retira sua renda do pagamento efetuado pelos passageiros para quem realiza corridas. [33] Quando o sistema é de diárias, ele paga parte do valor auferido durante o dia para somente depois perceber o seu real salário; se o sistema é de porcentagem, também o motorista apenas recebe a sua remuneração após pagar a cota que pertence ao dono do táxi. É cediço que o salário, via de regra, é pago de forma mensal e com pelo menos uma base fixa, mas não necessariamente, como podemos depreender do art. 444, da CLT.
A remuneração percebida pelos "auxiliares", apesar de paga não-mensalmente, está estipulada contratualmente, com seu cálculo, sua forma de pagamento e suas demais condições. Também não é um valor fixo, em virtude da peculiaridade de que se reveste a situação. O aspecto que aqui deve saltar aos olhos é a natureza contraprestativa do salário. [34] Há correspectividade entre a atividade que o defensor exerce e a remuneração que percebe: se trabalha mais, recebe mais. Como o emprego de taxista é naturalmente suscetível a essas variações, também o é o salário; nada disso, contudo, desnatura a qualificação dessa renda como salarial. [35] Vale dizer que na remuneração estão incluídas também as gorjetas, consoante o art. 457, caput, da CLT.