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Medidas de segurança.

A impossibilidade de manutenção do instituto face à sua vinculação ao pressuposto da periculosidade

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07/04/2010 às 00:00
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4 Análise do instituto medida de segurança

Indispensável se faz, no momento, tecer comentários acerca dos pressupostos hoje necessários à aplicação das medidas de segurança.

Diferentemente do que se tornou possível no século XIX, quando do surgimento do instituto em questão, hoje se torna imprescindível o cometimento de um injusto penal, ou seja, de um fato típico e antijurídico, para que o portador de doença mental seja submetido a este tipo de sanção criminal. Portanto, excluem-se da incidência da medida comportamentos considerados como meros desajustamentos de conduta, tal qual a vadiagem, a prostituição, a loucura, a mendicância, que, por si só, demandariam em tempos passados a aplicação de uma medida aflitiva como forma de defesa social.

Outro fator que se afigura como pressuposto necessário à aplicação de tais medidas curva-se à periculosidade criminal do agente. A esse tipo de periculosidade dá-se o sentido de "probabilidade de reiteração em ilícitos penais", de retorno a uma prática criminosa, voltando-se o seu conceito, portanto, para ações futuras daqueles indivíduos tidos como inimputáveis.

Aníbal Bruno corrobora o exposto ao aduzir que:

Essa condição de periculosidade, que se conceitua juridicamente na fórmula probabilidade de delinqüir, é um estado de desajustamento social do homem, de máxima gravidade, resultante de uma maneira de ser particular do indivíduo congênita ou gerada pela pressão de condições desfavoráveis do meio. Maneira de ser que pode exprimir-se na estrutura constitucional do indivíduo, anátomo-físico-psicológica, anormalmente estruturada, ou resultar de deformação imprimida social-cultural, em que se desenvolveu a vida do homem. Aí está, nos casos extremos, uma criminosidade latente à espera da circunstância externa do momento para exprimir-se no ato de delinqüir. (BRUNO, Aníbal, 1984, p. 289)

A realização de perícia médica psiquiátrica será o meio utilizado para que, após o cometimento de um injusto penal pelo doente mental, dita periculosidade seja comprovada. Para tanto, a perícia deverá levar em consideração aspectos que dizem respeito à vida pregressa do doente mental infrator, como, por exemplo, seus antecedentes pessoais, familiares, sua história social, os motivos e circunstâncias que o levaram a praticar a conduta delituosa, determinando, a partir desses elementos a existência ou não dessa periculosidade. [07]

O que ocorre, contudo, é que ainda hoje continua sendo feita uma ligação extremamente forte entre loucura e perigo como se essas duas condições estivessem absolutamente atreladas entre si. Tal posicionamento deve ser analisado de forma extremamente cautelosa, pois pode afetar de forma direta o destino do louco infrator.

O doente mental, simplesmente por ter praticado um injusto penal, não necessariamente deve ser considerado como perigoso. O problema que aqui se apresenta se reduz a essa generalização que habitualmente é difundida, o que gera ainda mais preconceito e colabora com a estigmatização criada em torno dos denominados inimputáveis. A perícia, portanto, deve se restringir à comprovação da probabilidade de reiteração em ilícitos penais. Caso tal probabilidade não seja vislumbrada não caberá a aplicação da medida, visto que um de seus pressupostos se volta à comprovação da periculosidade criminal, e não periculosidade social do agente.

Contudo, interessante nos faz indagar neste instante a capacidade atribuída ao perito para analisar a probabilidade do louco infrator, ou quem quer que seja, praticar um delito. Tal possibilidade é ilógica, sendo inconcebível sua utilização como meio de legitimação de uma reação coercitiva de tal monta. Ninguém é capaz de antever acontecimentos futuros; nem nós mesmos sabemos o que podemos fazer em tempos que ainda estão por vir. Assim sendo, não cabe ao Direito Penal punir determinados agentes com base apenas em um critério subjetivo, como é o da periculosidade.

4.1 Espécies

O art.96 do Código Penal elenca em seus incisos as duas espécies hoje existentes de medidas de segurança, a saber, internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou sujeição a tratamento ambulatorial.

Vale ressaltar, no entanto, que atualmente essas são as únicas espécies de medidas de segurança aplicáveis aos inimputáveis ou semi-imputáveis. Todas as outras existentes em legislações anteriores não mais prevalecem.

Nesse diapasão, será por meio de uma dessas medidas que se buscará atingir o suposto escopo do instituto, qual seja, o tratamento do louco infrator de modo a tornar possível sua reinserção no meio social e, por conseguinte, sua não reiteração em práticas delituosas.

A primeira delas, medida de internação, possui caráter essencialmente aflitivo, tendo em vista a privação da liberdade daquele que será a ela submetido. Por outro lado, temos a segunda espécie de medida de segurança, denominada de tratamento ambulatorial. Neste caso em particular, diferentemente do que se observa com as medidas de segurança detentivas, não ocorre uma efetiva privação da liberdade do indivíduo. O tratamento se realiza em meio aberto, recebendo o paciente acompanhamento psiquiátrico durante toda sua duração.

Cumpre salientar que, apesar da internação ser, em regra, o tipo de medida mais aplicada atualmente, o tratamento ambulatorial deveria ser privilegiado nesse sentido, pois, ao não afastar o doente mental infrator do convívio social, propicia ao mesmo maiores possibilidades de readaptação.

Ocorre, contudo, que a modulação da medida de segurança deverá observar o disposto no artigo 97 do Código Penal, que ao abordar o assunto assim dispõe: "Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação (art.26). Se, todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial."

Necessário se faz observar, neste instante, como o instituto em voga se distancia das finalidades de tratamento por ele ditadas. Ao se restringir, num primeiro momento, à análise do crime praticado pelo louco infrator, torna-se visível o caráter meramente excludente das medidas de segurança. Se comete crime punível com reclusão, obrigatória será a internação do doente mental infrator, por tempo indeterminado, independentemente das condições pessoais apresentadas pelo agente, não se perquirindo, pois, acerca do tipo de tratamento mais adequado ao caso concreto quando da escolha da medida.

Ora, se a justificativa para a aplicação das medidas de segurança, em teoria, se restringe ao alcance da cura do louco infrator de modo a possibilitar sua reinserção no meio social, não deveria o magistrado estar vinculado apenas à condição pessoal do agente quando da modulação da medida, submetendo-o, assim, de acordo com o quadro clínico apresentado, ao tipo de tratamento que melhor se adapte às suas reais necessidades?

Outrossim, vale aqui destacar que uma vez aplicada a medida esta ficará vinculada à cessação da periculosidade do agente. Desse modo, será realizado exame pericial pela autoridade administrativa responsável pelo tratamento no sentido de averiguar as condições pessoais do doente mental infrator, remetendo ao juiz relatório minucioso que o habilite a resolver sobre sua possível revogação ou permanência.

Isto posto, estabelece-se então todo trajeto a ser percorrido pelo louco infrator desde o momento em que seja a ele aplicado o instituto ora em apreço até sua revogação, podendo esta ocorrer, quem sabe, no instante em que seja comprovada a cessação de sua dita periculosidade.


5 Pena e medida de segurança: A supressão de direitos como conseqüência da "diferença"

A doutrina sempre procurou destacar as diferenças existentes entre pena e medida de segurança, seja em relação à sua natureza, seja em relação à sua finalidade, o que prepondera nos dias de hoje como pressupostos que irão delimitar a aplicação de um ou outro instituto.

Sob esse ponto de vista, a pena se diferenciaria da medida de segurança, num primeiro momento, pelo fato de ser intrínseco a ela o caráter aflitivo referente à conduta criminosa praticada pelo agente. Por ter praticado um fato criminoso, este deverá ser punido. Já no que diz respeito à medida de segurança, teoricamente, foi retirado de seu conteúdo qualquer finalidade punitiva. Sua característica maior se volta para o tratamento daquele que cometeu o crime sem ter a capacidade de entender o caráter ilícito de sua conduta, enquadrando-se nesse plano o doente mental infrator. Destinar-se-ia, portanto, à sua cura e readaptação social.

A medida de segurança foi supostamente formulada com fim exclusivamente preventivo, ou seja, visa não possibilitar que o indivíduo venha a reincidir na conduta criminosa, julgando um comportamento futuro e não o crime efetivamente praticado. É tratamento fundado na periculosidade do agente e que se destina à defesa social. A pena, diferentemente, teria por fim castigar aquele que causou um mal para a sociedade, recaindo, pois, sobre a repressão do próprio delito, o que demonstra seu escopo retributivo, embora possua também uma finalidade preventiva com vistas à ressocialização do infrator.

A pena possui limites de duração preestabelecidos de acordo com o tipo penal praticado. Assim, aquele que comete, por exemplo, um homicídio, será privado de sua liberdade por um prazo que, de acordo com o artigo 121 do Código Penal, poderá variar de 6 (seis) meses a 20 (vinte) anos. Nesse mesmo sentido, embora venha o indivíduo a cometer outros delitos, sua pena não poderá ultrapassar o prazo máximo de 30 (trinta) anos. De maneira contrária, e diga-se desde já inconstitucional, aquele que vier a praticar um crime sem ter a capacidade de entender sua conduta no momento dessa prática não terá tempo predeterminado para ser submetido a uma espécie de conseqüência jurídica, também de caráter aflitivo, por ser a este indivíduo aplicada uma medida de segurança.

A pena funda-se na culpabilidade. A medida de segurança se pauta exclusivamente na periculosidade do doente mental infrator.

Importante ressaltar, neste momento, que os critérios acima empregados para a diferenciação entre pena e medida de segurança engendram apenas cerceamento no que diz respeito aos direitos dos portadores de sofrimento mental. Com o objetivo de "beneficiar" esta categoria de indivíduos, excluindo sua culpabilidade, reservou-lhes o Direito Penal espécie de sanção que por se diferenciar, ao menos teoricamente, da pena, o submete a uma intervenção estatal ilimitada que, encoberta por uma falsa função terapêutica, não se coaduna com os princípios de um Estado de Direito.

É nesse contexto que a inimputabilidade e o estigma da periculosidade, que possibilita a aplicação das medidas de segurança, retira daqueles indivíduos considerados "irresponsáveis" direitos e garantias individuais a favor do alcance de uma suposta defesa social. Aos mentalmente sãos, aplica-se uma pena com todas as garantias inerentes ao instituto. Ao louco-delinqüente, estigmatizado, excluído, inimigo, cabe apenas a segregação eterna, ou até, quem sabe, o momento em que tenha sido comprovada a cessação de sua periculosidade.

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Como bem demonstra Zaffaroni, o que hoje pode ser observado é a utilização de dois tipos diferenciados de tratamento penal:

(a) um para os infratores que pertencem às camadas socialmente aptas para a convivência e (b) outro para aqueles que não pertencem a elas. Os primeiros são retribuídos com uma pena limitada e proporcional, ao passo que os segundos são neutralizados com uma pena desproporcional e indeterminada (medida) [...] (ZAFFARONI, 2007, p.101)

Necessário se faz questionar, porém, por que aplicar àquele que não possui sequer capacidade para entender sua conduta uma medida que, na prática, se apresenta ainda mais gravosa do que a pena. Se ambas as espécies de sanção penal possuem caráter estritamente aflitivo, ou seja, privam o indivíduo de sua liberdade, exigem o cometimento de um fato típico e antijurídico para sua aplicação e possuem o mesmo escopo, qual seja, a defesa social, por que o louco que comete um injusto penal, apesar de não poder se submeter a uma pena, tendo em vista a "proteção" que o Direito Penal lhe concedeu nesse sentido, pode ser submetido a uma espécie de sanção diferenciada cuja diferença leva apenas à exclusão de direitos e garantias protegidos constitucionalmente?

A resposta a ser dada se resume no preconceito hoje existente que vê no "diferente" a figura de um "inimigo" e, por conseguinte, no louco a noção de perigo. Portanto, este deve ser neutralizado, mesmo que esta segregação se vislumbre numa privação eterna de sua liberdade. Como a pena não possibilitaria uma exclusão com tal extensão, nada melhor do que a criação de um "novo" instituto que o permita. Assim, muda-se o nome de "pena" para "medida de segurança" retirando do indivíduo todas as limitações impostas à primeira.

O que importa aqui ressaltar é o absurdo hoje existente em relação à possibilidade de utilização de um Direito Penal de autor, quando em questão injusto penal praticado pelo doente mental infrator. É inadmissível, num Estado Democrático de Direito, a aplicação de sanção que vise apenas conter o caráter considerado "perigoso" de uma determinada categoria de indivíduos. Nosso Direito Penal é de ato, de culpabilidade, devendo, pois, se restringir a esta última quando da aplicação de medida aflitiva a qualquer cidadão.

Ao empregar o discurso da periculosidade e do tratamento, afastando a culpabilidade para aplicação da medida de segurança ao doente mental infrator, o Direito Penal alija estes indivíduos de todos os direitos que lhes deveriam ser garantidos quando da prática pelos mesmos de um injusto penal. Rotula-o como perigoso, e através da estigmatização o afasta definitivamente do meio social. Assim, deixamos de analisar o passado, ou seja, o crime propriamente praticado, para nos restringirmos numa probabilidade, em condutas que podem vir a ocorrer.

Nesse contexto, a sociedade, arraigada por preconceitos tais, se fecha para o diferente de forma a excluí-lo de sua convivência passando a ter como meio de proteção a neutralização daqueles que não se adaptam às normas de comportamento por ela ditadas. Os "diferentes", supostamente, se apresentarão como um risco para sua tranqüilidade e, portanto, devem ser excluídos, não importando a forma como esta exclusão venha a ocorrer. Dessa maneira, o louco infrator não tem respeitados direitos mínimos como o direito à dignidade humana, à igualdade, o direito de ser diferente. O estigma da periculosidade, que passa a prover toda essa estrutura de medo, se apresenta agora como o fator que irá legitimar o confinamento muitas vezes eterno do louco infrator.

Percebe-se, portanto, que direitos para esta categoria de indivíduos parecem não existir. Estes, quando existem, são utilizados para serem de pronto excluídos em favor dos direitos daqueles que não têm que se submeter à "perigosa" convivência com os mesmos. O estereótipo criado para o doente mental infrator legitima apenas a violação de direitos e garantias mínimas, sob o disfarce de tratamento que o ajuste à vida social até que seja eliminada sua periculosidade, o que somente exprime um poder de punir arbitrário e ilimitado, cujo fim último se respalda apenas no alcance do controle daqueles tidos com indesejáveis.

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Sobre a autora
Francine Machado de Paula

Pós-graduanda em Ciências Penais pelo Instituto de Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAULA, Francine Machado. Medidas de segurança.: A impossibilidade de manutenção do instituto face à sua vinculação ao pressuposto da periculosidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2471, 7 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14617. Acesso em: 5 nov. 2024.

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