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Medidas de segurança.

A impossibilidade de manutenção do instituto face à sua vinculação ao pressuposto da periculosidade

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07/04/2010 às 00:00
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8 PAI – PJ: a eficácia do tratamento que inclui

A par de todo esse processo de segregação e crueldade ao qual encontra-se submetido o louco infrator, foi criado no ano de 2000 e implementado em 2001, pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em parceira com o Centro Universitário Newton Paiva, o Programa Pólos Produtores de Cidadania da UFMG e a Escola Brasileira de Psicanálise, o "Programa de Atenção Interdisciplinar ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental Infrator", que, por servir de exemplo às diversas práticas segregacionais existentes quando da aplicação das medidas de segurança, merece aqui ser exposto.

Como forma de prestar assistência ao portador de doença mental infrator, o PAI-PJ se orienta por práticas de inserção social, diferenciando seu trabalho das medidas seculares de contenção utilizadas comumente como forma de "tratar" o louco infrator, o que possibilita o resgate da sua cidadania e o seu reconhecimento como sujeito de direitos.

Por meio de uma equipe interdisciplinar, composta por psicólogos, assistentes sociais, jurídicos e estagiários, o Programa chama para si a responsabilidade de oferecer os subsídios necessários à autoridade judicial quando da aplicação das medidas de segurança. Desse modo, naqueles processos em que sejam instaurados incidentes de insanidade mental e determinado, pelo juiz criminal, a intervenção do PAI-PJ, este apresentará projeto clínico capaz de propiciar a modulação individual da medida, estabelecendo assim a forma de tratamento mais adequada de acordo com as peculiaridades de cada caso. [12]

Desfaz-se, desta forma, a lógica "pena de reclusão-internação". Cada caso será averiguado conforme as particularidades do indivíduo, com o escopo de conjugar tratamento, responsabilidade e inserção social. A internação somente ocorrerá naqueles casos que demandem intervenção de crise, sendo esta realizada não em Hospitais de Custódia e Tratamento ou em Manicômios Judiciários, mas na própria Rede Pública de Saúde. Evita-se, com isso, a mera institucionalização do louco infrator, possibilitando a este indivíduo um tratamento eficaz e efetivo.

Nesse sentido, interessante observar que o PAI-PJ, ao utilizar este método de tratamento, acaba proporcionando ao louco infrator uma intervenção clínica equivalente àquela realizada quando em questão o doente mental que não comente nenhum tipo de injusto, já que o "paciente infrator" terá o seu quadro clínico acompanhado pela própria Rede Pública de Saúde.

Como forma de evitar a reincidência em condutas criminosas, o doente mental infrator será convocado a responder psicologicamente por seu ato, a construir uma reflexão sobre sua prática "irresponsável". Como bem dispõe Fernanda Otoni de Barros:

Mesmo que no momento do ato não sabia o que fazia, construir um saber sobre as condições de seu ato, mesmo que depois do crime, constitui uma forma de responder por sua ação no espaço público e mais do que isso, promove-se por esse ato a construção de um saber que serve de orientação, o orienta sobre o fora de sentido, fora da lei. [13]

O que se observa através do trabalho realizado pelo Programa, é que no momento em que o Direito Penal retira a responsabilidade do doente mental infrator pelo ato cometido, simplesmente segregando-o em estabelecimentos que se dizem propícios à realização de um tratamento, não dá ao mesmo a possibilidade de vir trazer suas razões, de entender o sentido do seu ato, o que afasta sua implicação com o mesmo e torna mais dificultosa sua inserção no meio social.

Nicole Fumian Signorelli, ao abordar o assunto atesta que:

Torna-se importante garantir ao "louco infrator" a possibilidade de responder por seus atos, sendo esta uma forma de viabilizar a sua reinserção social. Mas para que isso se faça possível, é preciso escutá-lo, apreender sua posição frente ao ato, ao tratamento e à medida. Deve ser permitido que responda de seu lugar, que apresente suas razões e construa suas medidas. (SIGNORELLI, 2001, p.123).

Durante esse processo de tratamento e responsabilização o paciente recebe do PAI-PJ todo o acompanhamento terapêutico necessário durante o decorrer do processo criminal, sendo primordial o envolvimento de sua família neste instante. Para tal, o Programa presta o auxílio necessário aos familiares do doente mental infrator, seja por meio de atendimentos individuais ou através do encontro de grupos de familiares, orientando-os sobre a necessidade de sua participação nas diversas etapas do tratamento, tanto no sentido de observação da evolução ou estabilização do quadro clínico do paciente, quanto no sentido de apresentar-lhes as saídas existentes na hipótese de ocorrência de crises que demandem uma maior intervenção.

O processo de inserção será assim desenvolvido, sendo sempre privilegiado o tratamento realizado em meio aberto. Para aqueles pacientes submetidos à internação, e que ainda não se sentem seguros o suficiente para encarar sozinhos, quando do recebimento de alta, a realidade da saída, ainda utiliza o Programa um método denominado de "liberdade vigiada". Dessa forma, segundo Barros:

Um estagiário de Psicologia, determinado pelo juiz, passa a acompanhar o cidadão pela cidade. Realizam a transição, fazem a ponte. A saída do regime de internação se faz acompanhar de uma certa contenção simbólica [...], substituindo a contenção dos muros pela contenção da lei que o AT encarca. Em um dado momento, este cidadão acompanhado atravessa a ponte e ganha a cidade, o paciente ascende à posição de cidadão, conta com seu próprio saber na sua circulação pelo mundo da vida, responde de forma razoável ordem estabelecida, partilhando regras, definindo seu itinerário. [14]

Inseri-los no convívio social, esta tem sido a tarefa desempenhada pelo PAI-PJ. Aqui, o risco é assumido, a segregação cede lugar para o tratamento, o estigma da periculosidade é desmascarado e ao louco infrator é dada a possibilidade de ter respeitado direito que o Direito Penal parece lhe ter retirado: de ser tratado como sujeito de direitos, como cidadão, e não apenas como mero objeto de intervenção.


9 CONCLUSÃO

O que temos percebido ao longo dos tempos, é que o Direito Penal, ao se utilizar do discurso do tratamento quando da aplicação de uma medida de segurança ao portador de doença mental infrator, tem por fim apenas afastar da sociedade aquela categoria de indivíduos que sempre se mostrou indesejável em razão do seu comportamento desviante e "perigoso".

O portador de sofrimento mental, ao ter para si prolatada sentença absolutória, porém, com vistas à aplicação de uma medida de segurança, tem tido seu destino assim traçado: é segregado em Hospitais de Custódia e Tratamento podendo por lá permanecer por toda a eternidade, não sendo raras as ocasiões em que tal acontecimento pode ser observado. Como já abordado anteriormente, a realidade das instituições hoje destinadas a receber estes indivíduos nos anuncia a constante falta de medicamentos adequados para cada tipo de enfermidade apresentada, de profissionais especializados, o que acaba provocando a cronificação do quadro clínico do paciente não sendo alcançada, assim, sua cura, motivo que acaba dando ensejo a uma custódia eterna.

Assim sendo, percebe-se que embora os anseios teoricamente anunciados pelo instituto sejam os de tratamento, a medida de segurança, do modo como vem sendo aplicada, não passa de uma pena, sem limites, que tem por objetivo único a exclusão do louco infrator do meio social, o que se torna inadmissível face à adoção de um Direito Penal de ato e não de autor.

Para que a manutenção do instituto, portanto, se torne legítima e compatível com as garantias e direitos fundamentais constitucionalmente enunciados, necessário que se adote novas formas de tratamentos psicoterapêuticos e sociais que possibilitem ao doente mental infrator sua efetiva reinserção na sociedade. Dessa forma, deve-se desconstruir a idéia da utilização de internações em meio fechado como regra, pois esta nada mais pode oferecer além de uma resposta à incessante busca pela defesa social.

Para que haja um efetivo tratamento, e não apenas uma pena disfarçada de tratamento, que hoje é o que temos na maioria absoluta dos casos, necessário se faz a utilização de um método multidisciplinar, tal qual o utilizado pelo PAI-PJ, que conjugue, na apreciação dos casos, o saber jurídico, psiquiátrico e psicológico, analisando-se em cada um deles, de acordo com cada anomalia apresentada, qual a melhor medida a ser aplicada. A lógica "pena de reclusão-internação", portanto, não pode, de maneira alguma, se adequar a estas necessidades.

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Além disso, deve também ser afastada a possibilidade de decisão do juiz acerca da manutenção de uma medida de tal monta quando demonstrado através de laudo psiquiátrico a cessação da periculosidade do agente. Perigo aqui não deve jamais ser confundido com doença. O que deve ser buscado, através do tratamento, é a estabilização do quadro clínico do paciente, pois embora em alguns casos a cura seja algo possível de se alcançar, em outros essa possibilidade não existe.

Portanto, se não possui a capacidade de entender o caráter ilícito de sua conduta, sendo, assim, inculpável, não deve o louco infrator ser submetido a uma espécie de punição penal simplesmente pela enfermidade mental que apresenta. Apesar de toda estigmatização criada em torno do doente mental infrator, doença mental não é sinônimo de perigo, embora seja esta a lógica usualmente utilizada quando em questão a aplicação do instituto. Não é por ser diferente que o portador de doença mental é perigoso. Portanto, o fato deste vir a cometer um injusto penal, não pode gerar uma previsão absoluta de que este, por ter cometido ato tipificado como crime, voltará a delinqüir, ou será capaz de provocar um mal para si ou para a sociedade. O risco de ataque a bem jurídico, assim como é assumido em relação aos indivíduos considerados imputáveis, deverá sê-lo também em relação àqueles considerados inimputáveis, pois este faz parte da própria natureza humana, não tendo o Direito Penal legitimidade para utilizar o seu poder punitivo de forma essencialmente retributiva em relação a condutas futuras que, sem nenhum argumento científico, não passam de julgamentos preconceituosos e estigmatizantes que visam apenas a exclusão do "diferente".

Ao louco deve ser garantida, portanto, a possibilidade de retorno à sociedade, através da utilização de um tratamento efetivo e eficaz em termos práticos, realizado em meio aberto, quando excluída sua culpabilidade em razão de doença mental. A internação, desse modo, deverá se restringir aos casos de crise, que demandem necessariamente uma intervenção mais drástica. Dessa forma, excluída estará a possibilidade do Direito Penal se utilizar de critérios meramente subjetivos, como é o da periculosidade, para intervir eternamente na esfera de liberdade do louco infrator.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PRADO, Luis Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

SIGNORELLI, Nicole Fumian. Louco infrator: inimputável mas responsável. In: BARROS, Fernanda Otoni de. (Org.) Contando Causo. Belo Horizonte: Unicentro Newton Paiva; Del Rey, 2001, p.121-125.

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ZAFFARONI, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.


Notas

  1. BRUNO, Aníbal. Direito penal, parte geral, tomo 3:pena e medida de segurança. 4.ed. Rio de Janeiro, Forense, 1984, p .256.
  2. ALVIM, Rui Carlos Machado. Uma pequena história das medidas de segurança. São Paulo: IBCCRIM, 1997, p.17.
  3. FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de segurança e direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p.19.
  4. PERES, M.F.T. e NERY FILHO, A. A doença mental no direito penal brasileiro: inimputabilidade, irresponsabilidade, periculosidade e medida de segurança. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, vol.9(2): 335-55 maio-ago, 2002, p. 338.
  5. FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de segurança e direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 35.
  6. BRUNO, Aníbal. Direito penal, parte geral, tomo 3: pena e medida de segurança. 4.ed. Rio de Janeiro, Forense, 1984, p.315-336.
  7. WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. O discurso psiquiátrico na imposição e execução das medidas de segurança. Revista de estudos criminais. Porto Alegre: Notadez v .6, n. 21 (jan./mar.2006), p.141.
  8. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão.24.ed. Petrópolis, Vozes, 2001, p.157.
  9. MATTOS, Virgílio de. Trem de doido: o direito penal e a psiquiatria de mãos dadas. Belo Horizonte: Una Editora, 1999, p. 92.
  10. Ao conceituar as instituições totais Erving Goffman as apresenta como aqueles locais de "[...] residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e administrada".
  11. MATTOS, Virgílio. Crime e psiquiatria: uma saída: preliminares para a desconstrução das medidas de segurança. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p.120-123.
  12. Nesse sentido, interessante a leitura da cartilha do Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator, disponível em < http://www.tjmg.jus.br/corregedoria/pai_pj/cartilha_final.pdf>, que esclarece de forma pormenorizada a forma como este trabalho vem sendo atualmente desenvolvido pelo PAI-PJ em Minas Gerais.
  13. BARROS, Fernanda Otoni de. Um programa de atenção ao louco infrator. Disponível em <http://carceraria.tempsite.ws/fotos/fotos/admin/formacoes/4e8330439b0d639375735e5aef645e6c.doc >. Acesso em: 26/03/2010.
  14. BARROS, Fernanda Otoni de. Um programa de atenção ao louco infrator. Disponível em <http://carceraria.tempsite.ws/fotos/fotos/admin/formacoes/4e8330439b0d639375735e5aef645e6c.doc >. Acesso em: 26/03/2010.
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Sobre a autora
Francine Machado de Paula

Pós-graduanda em Ciências Penais pelo Instituto de Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAULA, Francine Machado. Medidas de segurança.: A impossibilidade de manutenção do instituto face à sua vinculação ao pressuposto da periculosidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2471, 7 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14617. Acesso em: 26 abr. 2024.

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