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A necessidade do Instituto da delação premiada diante da macro-criminalidade

04/04/2010 às 00:00
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No conjunto normativo brasileiro sete leis fazem referência à delação premiada:

1) art. 159 do Código Penal, sobre crimes de extorsão mediante sequestro (redação dada pela Lei nº 9.269, de 02 abr. 1996, ao parágrafo 4º do art. 159 do CP);

2) Lei nº 8.072, de 25 jul. 1990, sobre crimes hediondos (art. 8º, parágrafo único);

3) Lei nº 8.137, de 27 dez. 1990, sobre crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo (art. 16, parágrafo único);

4) Lei nº 9.034, de 03 maio 1995, sobre crime organizado (artigo 6º);

5) Lei nº 9.613, de 03 mar. 1998, sobre lavagem de dinheiro (artigo 1º, parágrafo 5º);

6) Lei nº 9.807, de 13 jul. 1999, sobre programa de proteção a vítimas e testemunhas (artigo 14);

7) Lei nº 10.409, de 11 jan. 2002, sobre repressão a tóxicos (artigo 32, parágrafo 2º).

Nas palavras de Damásio de Jesus, "delação é a incriminação de terceiro, realizada por um suspeito, investigado, indiciado ou réu, no bojo de seu interrogatório (ou em outro ato). ‘Delação premiada’ configura aquela incentivada pelo legislador, que premia o delator, concedendo-lhe benefícios (redução de pena, perdão judicial, aplicação de regime penitenciário brando etc.)." [01]

Não são poucos os articulistas e doutrinadores que desde logo se colocaram contra aquele que se convencionou chamar instituto da "delação premiada", dando-o por defesa do Estado à prática abjeta da traição, beneficiando aqueles que estariam a seguir os passos de Judas e de Silvério dos Reis, somente para citar dois traidores históricos. A crítica, todavia e sob tais argumentos, revela-se exagerada e ideologicamente estrábica. Ora, não estavam Cristo ou Tiradentes a cometer crimes que pudessem como tais ser hoje considerados (salvo sob a ótica fanática dos judeus ortodoxos de então ou tendo em conta os interesses mercenários das Cortes Portuguesas nos idos coloniais). Diferença clarividente há entre trair um inocente e delatar um criminoso!

Uma ética aos avessos é a que aqueles esperam do co-autor do crime: jamais, em nome da honra, informar à autoridade competente quem, além dele, perpetrou o ato criminoso. Para eles, a delação em tais circunstâncias seria algo como que imoral, não justificando qualquer "incentivo" por parte do legislador.

Entre a fidelidade do criminoso diante de seu comparsa e a necessária aplicação da lei penal frente ao cometimento de um crime, porém, melhor postar-se ao lado da segunda. Entre a paz pública aviltada pela criminalidade e os questionáveis escrúpulos do delinquente, há que se optar pela primeira. Pensar diversamente pode satisfazer os melindres de teóricos do Direito Penal, mas está longe de conduzir qualquer caso concreto a uma solução efetivamente pragmática: o crime solvido, seus autores punidos e a segurança pública ("dever do Estado, direito e responsabilidade de todos", nos precisos termos do artigo 144 da Constituição da República) respeitada.

Assim é que a delação premiada "dá à persecução penal um concreto instrumento para que se busque a redução da impunidade no país e efetivo combate à criminalidade organizada", como afirma Vanise Röhrig Monte. [02]

O instituto em tela, todavia, dada a natureza do delator, há que ser, sim, examinado sob exaustiva cautela porque, como alerta Mittermayer, "apresenta também graves dificuldades. Tem-se visto criminosos que, desesperados por conhecerem que não podem escapar à pena, se esforçam em arrastar outros cidadãos para o abismo em que caem; outros denunciam cúmplices, aliás inocentes, só para afastar a suspeita dos que realmente tomaram parte no delito, ou para tornar o processo mais complicado, ou porque esperam obter tratamento menos gravosos, comprometendo pessoas em altas posições". [03]

Nestes tempos de desvelado interesse midiático despertado dentre delegados, promotores e procuradores de Justiça e juízes, quando comissões parlamentares de inquérito se transformam em palcos de demagogos de talento artístico no mínimo discutível, dar à palavra de alguém que possa estar a fazer parte de um teatro inquisitório valor indevido pode conduzir a caminhos em muito distantes das garantias de defesa constitucionalmente estabelecidas.

Neste rumo vai a inquietude de Luiz Flávio Gomes, com a dicção que lhe é própria:

"Claro que o correto é o Estado se aparelhar cada vez mais para não necessitar da delação. Mas enquanto isso não acontece, a prioridade deve ser um detalhado regramento desse instituto, para se evitar denúncias irresponsáveis, o sensacionalismo da mídia, o vedetismo das CPIs, o afoitamento de autoridades da Polícia e da Justiça etc.. O que não parece suportável é o atual nível de insegurança jurídica gerada pelas delações, que têm produzido efeitos muito mais midiáticos que práticos". [04]

Igualmente oportuna a preocupação de Eduardo Araujo da Silva ao alertar que "dois aspectos que devem ser considerados pelo juiz quando da análise desse meio de prova: (a) o acusado não presta o compromisso de falar a verdade em seu interrogatório; (b) está na situação de beneficiário processual e poderá figurar como beneficiário penal. A combinação desses fatores conduz à conclusão de que o co-réu pode colaborar falsamente com a Justiça, incriminando indevidamente os demais acusados em troca de benefícios previstos em lei. (manutenção do sistema de proteção, cumprimento de pena em regime especial, concessão de perdão judicial, diminuição de pena)". [05]

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A concretização do instituto sob exame, portanto, merece tratamento e aplicações especiais, por evidente exigindo a delação confrontação segura com as demais provas produzidas, isto no sentido de se verificar sua veracidade, tudo sobre o manto do mais amplo contraditório. Máxime se considera como ainda novidade no sistema legal brasileiro, tendo em especial conta suas mui próprias características, deve a delação premiada se ver aplicada a crimes que formem um conjunto de delitos cujo combate apresente especial interesse social, dentre os quais de se destacar os produzidos pelas chamadas organizações criminosas.

Ao dito "crime organizado", havido sob o âmbito da macro-criminalidade, há que se dar atenção substancialmente maior em confrontação com aquele havido sob mero concurso momentâneo de agentes, isto porque revela superior periculosidade daqueles que estabelecem o consórcio delituoso com o intuito de praticar não apenas um ou dois crimes, mas vários e continuados delitos.

Os artigos 25, parágrafo 2º e 16, parágrafo único, das Leis 7.492/1986 e 8.137/1990, respectivamente, estabelecem que nos crimes nelas previstos, "cometidos em quadrilha ou co-autoria, o co-autor ou partícipe que através da confissão espontânea revela à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços". A alusão a uma "trama delituosa" bem aponta especial interesse voltado à solução de crimes praticados por e através de organizações criminosas.

Vistas as coisas assim, parece não de todo apropriado desde logo se estender a aplicação do instituto da delação premiada a todos e quaisquer delitos penais, reservando-a àqueles havidos na já referida esfera da macro-criminalidade.


Bibliografia

. GOMES, Luiz Flávio Gomes. Corrupção Política e Delação Premiada. Disponível na Internet: http://www.lfg.com.br, acesso em 07 de março de 2010.

. JESUS, Damásio de. Estágio atual da "delação premiada" no Direito Penal Brasileiro. Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em 07 de março de 2010.

. MITTERMAYER, C. J. A. Tratado da prova em matéria criminal. Tradução de Hebert Wüntzel Heinrich. 3 ed., Campinas: Bookseller, 1996.

. MONTE, Vanise Röhrig. A necessária interpretação do instituto da delação premiada, previsto na Lei 9.807/99, à luz dos princípios constitucionais. Revista Ajuris , Porto Alegre, 2001, v. 16, nº 82, p. 237.

. SILVA, Eduardo Araujo da. Crime organizado: procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003.


Notas

  1. JESUS, Damásio de. Estágio atual da "delação premiada" no Direito Penal Brasileiro. Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em 07 de março de 2010.
  2. MONTE, Vanise Röhrig. A necessária interpretação do instituto da delação premiada, previsto na Lei 9.807/99, à luz dos princípios constitucionais. Revista Ajuris , Porto Alegre, 2001, v. 16, nº 82, p. 237.
  3. MITTERMAYER, C. J. A. Tratado da prova em matéria criminal. Tradução de Hebert Wüntzel Heinrich. 3 ed., Campinas: Bookseller, 1996.
  4. GOMES, Luiz Flávio Gomes. Corrupção Política e Delação Premiada. Disponível na Internet: http://www.lfg.com.br, acesso em 07 de março de 2010.
  5. SILVA, Eduardo Araujo da. Crime organizado: procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003.
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Sobre o autor
Edir Josias Silveira Beck

Juiz de Direito,Professor Universitário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BECK, Edir Josias Silveira. A necessidade do Instituto da delação premiada diante da macro-criminalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2468, 4 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14620. Acesso em: 29 mar. 2024.

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