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Relação socioafetiva: desbiologização do conceito de filiação

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As recentes técnicas de reprodução humana assistida heteróloga colaboraram para que o dogma do biologismo fosse mitigado, haja vista que um dos polos da filiação será necessariamente firmado por laços afetivos.

RESUMO

A socioafetividade no Direito de Família moderno vem se apresentando como um novo paradigma da filiação. Por anos preponderou no meio jurídico e social o modelo familiar patriarcalista, matrimonializado e hierarquizado. Com o passar dos anos percebeu-se que este arranjo não comportava a nova gama de valores incorporados pela sociedade, além de não contribuir para o desenvolvimento pleno dos membros da família. A relação socioafetiva passou a ser considerada como o critério que melhor se harmoniza com essa nova postura, desbiologizando o conceito de filiação. As recentes técnicas de reprodução humana assistida heteróloga colaboraram para que o dogma do biologismo fosse mitigado, haja vista que um dos polos da filiação será necessariamente firmado por laços afetivos.

Palavras-chave: 1. Família. 2. Filiação. 3. Relação socioafetiva. 4. Direito ao estado de filiação. 5. Biodireito. 6. Reprodução humana assistida heteróloga.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 AS ORIGENS DA FAMÍLIA. 1.1 A FAMÍLIA ROMANA. 1.2 O MODELO FAMILIAR NA VISÃO DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. 1.3 A FAMÍLIA SEGUNDO A ATUAL CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. 1.4 A FAMÍLIA E O CÓDIGO CIVIL DE 2002. 2 DO PARENTESCO. 2.1 PARENTESCO NATURAL OU CONSAGUÍNEO. 2.2 PARENTESCO CIVIL 2.3 PARENTESCO POR AFINIDADE. 3 ASPECTOS GERAIS DO INSTITUTO DA FILIAÇÃO. 4 AS NOVAS TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA. 4.1 REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA HETERÓLOGA. 5 DESBIOLOGIZAÇÃO DO CONCEITO DE FILIAÇÃO. 5.1 JURISDICIONALIZAÇÃO DA SOCIOAFETIVIDADE. 5.2 PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE. 6 SÚMULA 301 DO STJ: VERDADE DO DNA E RETROCESSO. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS


INTRODUÇÃO

Vivenciamos atualmente uma total reformulação do conceito de família. O tradicional modelo de família já não é suficiente para comportar uma gama de novas situações introduzidas em nosso meio social e jurídico em decorrência da globalização e da aquisição de novos valores incorporados na sociedade contemporânea.

A família é núcleo social protegido pela Constituição Federal de 1988, quando em seu art. 226 prescreve ser ela a base da sociedade. Toda a comunidade encontra ou deveria encontrar nela o seu ponto de partida. É o espelho sem o qual a sociedade não poderá prosseguir seu caminho rumo ao bem comum.

É inquestionável que o modelo tradicional de família encontra seu alicerce na ascendência genética, sustentado pelo paradigma do biologismo, onde se determinava a filiação pela origem biológica, com o auxílio de presunções legais tendentes a facilitar a sua identificação prática, adotadas em razão das limitações científicas que impediam, antes do advento dos testes de DNA, a certeza a respeito da origem genética. Contudo, participamos ativamente da transposição deste modelo para outro, mais contextualizado e sintonizado com a evolução social e tecnológica que o mundo hoje presencia, não podendo esta vinculação da relação jurídica de filiação à origem genética ser tomada como um dado perene, algo fixo e indiferente ao avanço da sociedade.

Em verdade, o biologismo deve ser visto como um dos critérios determinantes da filiação, mas não o preponderante. A exemplo desta nova postura observa-se que a doutrina e jurisprudência pátria e alienígena já delineiam uma tendência maior em aproveitar o filho havido por estas novas técnicas reprodutivas aos pais que intentaram o projeto parental, que imprimiram esforços no sentido de realizar o desejo de serem pais, que almejam amar a criança, enchendo-a de afeto.

A legislação nacional é tendente no sentido de proteção à família e aos interesses da criança. Impõe-se ao legislador o dever de labutar em prol do menor, oferecendo-lhe meios protetivos que propiciem melhores condições de desenvolvimento social, afetivo e humano.

Assim, surgem alguns novos problemas a serem discutidos, donde devem ser apresentadas soluções mais próximas do ideal. Dentre alguns problemas a serem enfrentados está também a solução dos conflitos de direitos que podem surgir a partir das novas relações nascidas com as recentes técnicas de reprodução. De um lado está o direito de paternidade daqueles que intentaram o projeto parental, de outro está o direito ao estado de filiação, e aqui se inclui o direito fundamental de ter pais.

Durante muito tempo o direito manteve-se inerte frente a essas novas situações, principalmente por se sustentar em presunções legais quanto à filiação, e posteriormente deslumbrou-se com o advento dos testes de DNA e sua absoluta certeza.

Entretanto, o mundo percebeu que nem sempre a verdade biológica e nem a legal se coadunam com os interesses da criança. A família mudou, passou de núcleo sob a custódia absoluta do "chefe de família" para uma nova roupagem, funcionando agora como instrumento de desenvolvimento pessoal de cada um dos seus membros. E neste ponto, os dois critérios de determinação da filiação citados anteriormente não se mostram aptos a abarcar todos os novos valores adotados pela sociedade.

Percebendo a fragilidade dos dois critérios frente à evolução social, o direito tratou de jurisdicionalizar um conceito mais comum às ciências sociais, a socioafetividade.

A socioafetividade ocupa com louvor o espaço antes ocupado pelos critérios biológico e legal no que concerne à filiação. Mostrou-se como o grande coringa no direito familiarista.

E não poderia ser de outro modo. A socioafetividade é o sentimento que deve sempre preponderar no meio familiar, traduzido nas condutas de cooperação, atenção, amor, ajuda, educação.

Trata-se de um tema de extrema relevância no mundo jurídico, uma vez que representa uma problemática atual e interessante no âmbito do biodireito, direito civil e constitucional, haja vista o incremento de novas situações surgidas a partir da descoberta de técnicas de reprodução medicamente assistida (focando as reproduções heterólogas) que estão acontecendo cotidianamente com a utilização do novo conceito de família vinculado á afetividade.


1 AS ORIGENS DA FAMÍLIA

A família é núcleo social protegido pela nossa Carta Magna, quando em seu Art. 226 prescreve ser ela a base da sociedade. Toda a comunidade encontra ou deveria encontrar nela o seu ponto de partida. É o espelho sem o qual a sociedade não poderá prosseguir seu caminho rumo ao bem comum.

Arx Tourino (apud MORAES, 2004, p. 705-706), assim conceitua juridicamente a família:

O conceito de família pode ser analisado sob duas acepções: ampla e restrita. No primeiro sentido, a família é o conjunto de todas as pessoas, ligadas pelos laços do parentesco, com descendência comum, englobando, também os afins – tios, primos, sobrinhos, e outros. É a família distinguida pelo sobrenome: família Santos, Silva, Costa, Guimarães e por aí afora, neste grande país. Esse é o mais amplo sentido da palavra. Na acepção restrita, família abrange os pais e filhos, um dos pais e os filhos, o homem e a mulher em união estável, ou apenas irmãos... É na acepção stricto sensu que mais se utiliza o termo família, principalmente do ângulo do jus positum.

Desta feita, em sentido amplo, a família é vista como o conjunto de pessoas que descendem de um mesmo tronco genealógico, unidos por laços sanguíneos, abrangendo desta forma os parentes em linha reta ou colateral, bem como os parentes por afinidade conforme declara o Código Civil Brasileiro em seus dispositivos referentes às relações de parentesco.

Por seu turno, em sentido estrito a família é vista como representativa do conjunto de pais e filhos decorrentes dos laços do matrimônio ou das novas configurações surgidas ao longo do tempo, as quais a Constituição da República tratou de dar proteção, embora tenha se esquecido de outros arranjos não isolados.

Mas estes não são os conceitos que se quer apresentar neste trabalho. Busca-se algo mais sintonizado com o atual estágio da sociedade contemporânea. E, para tanto, necessário se faz perfazer a sua trajetória no direito brasileiro, para enfim indicar o tom do critério que tem ganhado destaque.

É cediço que a origem da família é bastante imprecisa e controversa a despeito de inúmeros estudos e pesquisas investigatórias sobre o tema. Diversos autores relacionam a origem remota da família à promiscuidade sexual originária, na qual todas as mulheres pertenciam a todos os homens.

Nessa mesma linha de promiscuidade, o mundo conheceu o tipo familiar poliândrico, em que ressalta a presença de vários homens para uma só mulher, e o tipo familiar oriundo do matrimônio por grupo, caracterizado pela união coletiva de algumas mulheres com alguns homens.

Friedrich Engels, em sua obra sobre a origem da família, ao descrever o fato de que as relações familiares das civilizações primitivas não se assentavam em relações individuais, afirma que a família teve, inicialmente, um caráter matriarcal, visto que as relações sexuais ocorriam entre todos os membros que integravam a tribo e disso decorria que, ao contrário do pai, a mãe era sempre conhecida, e, assim, era ela quem, sozinha, alimentava e educava seus filhos (VENOSA, 2005, p. 19).

Continua o renomado autor informando ser muito improvável que essa estrutura fosse homogênea em todos os povos do passado. Com o tempo, na vida primitiva, as guerras, a carência de mulheres, e uma inclinação natural para a exclusividade, fizeram com que os homens passassem a procurar mulheres em outras tribos. Seriam os primeiros passos contra o incesto no meio social rumo às relações individuais (VENOSA, 2005, p. 19).

Destarte, em que pese existir variadas teses acerca da origem da família, o certo é que com o passar dos anos as relações familiares passaram a se assentar - ou desde o início assim o foram - em relações individuais baseadas na exclusividade – embora algumas civilizações até hoje mantenham relações poligâmicas -, surgindo, assim, a organização familiar de inspiração monogâmica que acabou propiciando o exercício do poder paterno, conforme coloca Venosa (2005, p. 19), in verbis:

A monogamia desempenhou um papel de impulso social em benefício da prole, ensejando o exercício do poder paterno. A família monogâmica converte-se, portanto, em um fator econômico de produção, pois esta se restringe quase que exclusivamente aos interiores dos lares, nos quais existem pequenas oficinas.

O conceito, a compreensão e a extensão da família se alteraram significativamente no curso da história. A família, atualmente, possui uma conotação jurídica e social bastante diferente das civilizações do passado. Entretanto, é inegável que muitas características da família brasileira contemporânea possuem raízes nos modelos de família existentes no passado.

1.1 A FAMÍLIA ROMANA

Desde a sua descoberta em 1500, até a primeira metade do século passado, o Brasil experimentou um grande fluxo de imigrantes europeus, notadamente de Portugal, cujas origens remontam ao modelo familiar romano, razão pela qual, indiscutivelmente, nosso país também apresenta resquícios deste modelo, de modo que se torna crucial tecer alguns comentários acerca da família romana.

O arranjo familiar romano caracterizava-se por ser rigidamente patriarcal, tendo na figura do pater famílias seu senhor absoluto, da qual todos os membros deviam total obediência. Este possuía, além do comando absoluto sobre todos os membros da família, considerável autonomia frente ao Estado, visto que este dificilmente interferiria em assuntos familiares.

A família romana patriarcal era tipicamente monogâmica, principalmente em relação à mulher. Entretanto, esta exclusividade não era em decorrência do amor sexual individual, mas sim decorrência lógica do próprio patriarcalismo que reinava na sociedade romana, baseada em aspectos econômicos, símbolo do triunfo da propriedade privada, onde os únicos objetivos da monogamia eram a preponderância do homem na família e a procriação de filhos que só pudessem ser seus para dele herdarem.

No direito romano, o afeto natural, muito embora pudesse existir, não era o elo entre os membros da família. O pater poderia nutrir o mais profundo sentimento por sua filha, no entanto, não legava bem algum a ela. O que realmente vinculava determinadas pessoas em torno de um núcleo familiar era a religião doméstica e o culto aos antepassados. A mulher, ao se casar, abandonava o culto dos antepassados do lar de seu pai e passava a cultuar os do seu marido (VENOSA, 2005).

A família romana era ampla e hierarquizada, incluindo pai, mãe, filhos, escravos, clientes, e tantos outros que viviam sob o mesmo teto e sob a autoridade irrestrita do pater, que era ascendente comum mais velho do sexo masculino.

Sabe-se que o pater exercia múltiplos papéis na condução de sua família. Era chefe político, sacerdote e juiz. Seu poder era tão absoluto que a ele cabia era o chamado ius vitae ac necis, direito de vida e morte sobre todos os membros de seu grupo, impondo penalidades e tratando-os como coisas pertencentes ao seu patrimônio. A própria expressão família, que deriva do latim famulus, se referia ao conjunto de escravos domésticos e bens postos à disposição do pater. Era ele, e tão somente ele, que adquiria e administrava os bens da família, que exercia o patria potestas sobre os filhos e a manus sobre a mulher (RIBEIRO, 2002, p. 5). A mulher vivia totalmente subordinada à autoridade marital, nunca adquirindo autonomia, restando sempre subordinada à autoridade de algum homem, primeiro seu pai, e depois de casar-se passava ao poderio de seu marido. Chefiava, oficiava o culto dos deuses domésticos e distribuía justiça.

O pater famílias era, assim, o senhor absoluto da domus. Era o sacerdote que presidia o culto aos antepassados; era o juiz que julgava seus subordinados; era o administrador que comandava os negócios da família (FIUZA, 2008, p. 927). Desta forma, a família romana centrava-se no poder paterno ou marital, que por sua vez, é resultado da religião predominante nesse modelo de instituição familiar. A família como grupo era essencial para a perpetuação do culto familiar e os vínculos que existiam entre seus membros eram a religião doméstica e o culto dos antepassados. O afeto, portanto, embora pudesse existir, não era o principal fundamento de união entre os componentes do grupo familiar.

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Para a perpetuação da família, não bastava apenas gerar um filho. Este deveria ser necessariamente do sexo masculino para cumprir os objetivos de perpetuação do culto aos antepassados – visto que a filha não poderia ser continuadora do culto de seu pai quando contraísse núpcias - e, ainda, precisava ser fruto de um casamento religioso, tendo em vista que o Cristianismo condenou as uniões livres e instituiu o casamento como sacramento, passando, portanto, essa instituição a ser considerada um dogma da religião doméstica (VENOSA, 2005, p. 20, 21).

Percebe-se que o arranjo familiar romano, fundados no matrimônio, não possuía qualquer resquício de amor ou afetividade. Não tinha, portanto, como objetivos imediatos, o amor, afeto. Visava apenas à união de duas pessoas com vistas a cultuar os antepassados do marido e a gerar um filho do sexo masculino que continuasse o culto dos seus antepassados.

A partir do século V, com o imperador Constantino, os princípios do cristianismo passaram a exercer forte influência sobre a família romana, fazendo surgir questões de ordem moral sob inspiração do espírito do amor, da solidariedade e da caridade, fazendo com que o modelo tradicional romano entrasse em declínio.

1.2 O MODELO FAMILIAR NA VISÃO DO CÓDIGO CIVIL DE 1916

As normas elaboradas no século passado refletiram fielmente o meio social que regulava. Naquela época, a sociedade estava mergulhada no patriarcalismo, já que a grande parte da população vivia no campo. Guardavam-se profundas marcas do tradicional modelo de família da Antiguidade. A mulher devia dedicar seu tempo única e exclusivamente aos afazeres domésticos, não lhe sendo deferidos os mesmos direitos do homem.

O homem, chefe da família, representava a hierarquia máxima do núcleo familiar. Ele detinha o controle sobre todos os membros do grupo, incluindo filhos, esposa e empregados. Todos os membros da família deviam obediência absoluta ao chefe da família. A administração dos bens da família e todas as decisões a respeito dela cabiam única e exclusivamente a ele. O Código Civil de 1916, e quase a totalidade das leis da época refletiram aquele pensamento ultrapassado (VENOSA, 2005).

O pátrio poder era direito subjetivo exclusivo do homem, cabendo a ele a condução do destino de sua família, resquícios muito fortes da tradição romana.

A mulher, nesta época, era totalmente submissa aos ditames do esposo, não tendo qualquer autonomia dentro do núcleo familiar. Não possuía direito de administrar seus próprios bens, precisando da autorização do marido para o exercício de diversos direito na seara cível. Até para trabalhar era necessário outorga do marido, sendo raríssimos os casos de mulheres casadas labutando, já que a sociedade machista daquela época aceitava que apenas o homem deveria trabalhar para o sustento e manutenção de seu lar. Somente com a publicação do Estatuto da Mulher Casada, nos idos de 1962, quando, então, a mulher deixou de ser relativamente incapaz após o casamento, passando a ser notada juridicamente na sociedade, ainda que de modo sutil. Isto porque, ao se casar, a mulher passava a ser relativamente incapaz, cabendo ao marido a tomada da maioria das decisões, não havendo igualdade de direitos na relação conjugal.

Para o ordenamento pátrio daquela época, o matrimônio era a única forma de agrupamento familiar protegido, instituição legitimadora de direitos. Os filhos havidos fora dos laços conjugais eram considerados ilegítimos, tamanha era a rigidez quanto ao casamento. O concubinato não era um arranjo familiar bem quisto pela sociedade, e os filhos desta relação não possuíam igualdade de direitos e tratamento pelo meio social. O casamento era fator de legitimação dos filhos.

Desta feita, a família brasileira regulada pelo Código Civil de 1916, a exemplo do modelo romano, ao definir o casamento como única forma legítima de constituição familiar, trazia consigo certa carga de proteção aos interesses econômicos. O casamento representava muito mais a união de bens do que a união de pessoas pelo vínculo afetivo. Disso depreende-se que a afetividade possuía papel coadjuvante, tanto no matrimonio quanto nas relações paterno-filiais.

Lôbo Netto (2000, p. 3), em louvável colocação, afirma que:

A família patriarcal perpassou a história deste país e marcou, profundamente, a formação do homem brasileiro. Suas funções mais evidentes eram econômico-patrimoniais, políticas, procracionais e religiosas. A função de realização da comunidade afetiva, que passou a ser determinante ao final do Século XX, era secundária. A filiação biológica, desde que originada na família matrimonializada, era imprescindível para o cumprimento dessas funções e papéis, notadamente de preservação da unidade patrimonial.

Em face de uma sociedade basicamente rural, revelava uma família que funcionava como uma unidade de produção, importando para tanto ser numerosa, representando uma maior força de trabalho e maiores condições de sobrevivência de todo o grupo. Este modelo de família era chefiado por um homem, que além de exercer o papel de pai e marido, detinha toda a autoridade e poder sustentados numa estrutural patrimonial. Daí, as características patriarcais e hierarquizadas do modelo centrado na chefia do marido, ocupando a mulher e os filhos uma posição de inferioridade no grupo familiar (GRUNWALD apud BOEIRA, 2003, p. 2).

Note-se que a família, constituída no matrimônio indissolúvel, era percebida não apenas pelos laços de sangue, mas também pelo patrimônio que carregava, de modo que influenciou fortemente na própria manutenção do Estado, que se viu obrigado a protegê-la (GRUNWALD, 2003). A família tradicional, unida pelo casamento, era o mecanismo apropriado para transmitir os bens por via hereditária por gerações (VENOSA, 2005, p. 245).

Vista como necessária à sua sobrevivência, o Estado disciplina regras que devem ser seguidas necessariamente pelos cônjuges, interferindo e fiscalizando o comportamento destes dentro da sociedade doméstica, e em especial, destes relativamente aos filhos, fornecendo aos contraentes do matrimônio uma pequena margem de autonomia, a fim de que o Direito Civil não perca seu objetivo: regulação dos interesses privados (AMORIM, 2002, p. 1). É sensível notar que as normas do direito de família são quase todas de ordem pública, não permitindo aos cônjuges dispor delas segundos suas vontades, restando apenas autonomia, limitada, no que concerne ao regime de bens.

As normas do passado aceitavam a família apenas como o núcleo formado pelo casamento indissolúvel de homem e mulher. Qualquer manifestação diferente não tinha a proteção do Estado e ainda sofria com a rejeição da sociedade. A mulher divorciada, ou mãe solteira não detinha o mesmo tratamento dispensado às casadas. Diversos entraves ao exercício de direitos eram sentidos pelas mulheres que se encaixavam nesta situação.

Maria Berenice Dias (2005) [01], ex-desembargadora do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em importante contribuição nos traz a seguinte asserção:

Eleito o casamento como modelo de família, foi consagrado como a única modalidade aceitável de convívio. Como forma de impor obediência à lei, por meio de comandos intimidatórios e punitivos e por normas cogentes e imperativas, são estabelecidos paradigmas comportamentais na esperança de gerar posturas alinhadas com o perfil moral majoritário. A jurisprudência igualmente não resiste à sedutora arrogância de punir quem vive de maneira diversa do aceito como certo. Na tentativa de desestimular atitudes que se afastem do único parâmetro reconhecido como legítimo, nega juridicidade a quem se rebela e afronta o normatizado. Com isso, acaba-se não só negando direitos, também se deixa de reconhecer a existência de fatos. A desobediência é condenada à invisibilidade. O transgressor é punido com a negativa de inserção no âmbito do jurídico. Tudo que surge à margem do modelo posto como correto não merece regulamentação. Situações reais simplesmente desaparecem.

O declínio da religião contribuiu para que o Estado onipotente passasse a regular as relações afetivas, mostrando toda sua vertente intervencionista. Almejando o estabelecimento de padrões de estrita moralidade e objetivando regulamentar a ordem social, engessou a família em uma instituição matrimonializada. Cristalizando a família no conceito único do casamento, impuseram, de forma autoritária, deveres, penalizando comportamentos que comprometessem sua higidez, além de impedir sua dissolução. O modelo tradicional da família sempre foi o patriarcal, sendo prestigiado exclusivamente o vínculo heterossexual (DIAS, 2005) [02].

Continuando, a prestigiada autora informa que não é fácil determinar as causas, mas a laicização do Estado, provavelmente, foi um dos movimentos sociais que mais "revolucionou os costumes e especialmente o Direito de Família, provocando sensíveis mudanças em seu próprio conceito" (DIAS, 2005).

Desta forma, o modelo familiar que predominou no Brasil do século XIX, e em grande parte do século seguinte, era eminentemente patriarcal, com a centralização do poder na figura do chefe de família, heterossexual e monogâmica.

1.3 A FAMÍLIA SEGUNDO A ATUAL CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA

A Revolução Industrial não representou apenas uma reformulação das unidades produtivas. Seus efeitos fizeram-se sentir no modelo de família até então vigente, uma verdadeira e pobre cópia do arranjo da Roma antiga.

Os crescentes movimentos sociais, como por exemplo, a revolução feminista e os direitos sexuais, não se esquecendo da urbanização desenfreada que se viu com o passar dos anos, provocaram profundas alterações na família brasileira.

A urbanização provocou a diminuição do número de membros da família, ao passo que a necessidade de mão-de-obra crescia em sentido oposto, fazendo com que a mulher, juntamente com o homem, passasse a integrar o mercado de trabalho.

Tal fenômeno teve repercussão direta no seio familiar pátrio, conforme pondera o professor Venosa (2005, p. 22):

A passagem da economia agrária à economia industrial atingiu irremediavelmente a família. A industrialização transforma drasticamente a composição da família, restringindo o número de nascimentos nos países mais desenvolvidos. A família deixa de ser uma unidade de produção na qual todos trabalhavam sob a autoridade de um chefe. O homem vai para a fábrica e a mulher lança-se no marcado de trabalho. No século XX, o papel da mulher transforma-se profundamente, com sensíveis efeitos no meio familiar.

Diante desta maior participação da mulher no mercado de trabalho, e a consequente diminuição dos integrantes da família, o poder absoluto deferido ao pai de família começa a ser abalado, cedendo espaço a um arranjo fundado em laços afetivos.

Uma das consequências lógicas decorrente do progressivo destaque do afeto nas relações familiares é a despatrimonialização da família, que passa a ser vista não apenas como meio transmissor da herança de pai para filhos.

Com a aquisição de diversos direitos e a maior participação da mulher no mercado de trabalho, esta já não se submete a todos os caprichos da sociedade machista, colocando por terra a verdade insublimável da indissolubilidade absoluta do matrimônio. Venosa (2005, p. 22) apoia este posicionamento quando diz:

A unidade familiar, sob o prisma social e jurídico, não mais tem como baluarte exclusivo o matrimônio. A nova família estrutura-se independentemente das núpcias. Coube à ciência jurídica acompanhar legislativamente essas transformações sociais, que se fizeram sentir mais acentuadamente em nosso país na segunda metade do século XX, após a segunda guerra. Na década de 70, em toda a civilização ocidental, fez-se sentir a família conduzida por um único membro, o pai ou a mãe. Novos casamentos dos cônjuges separados fazem uma simbiose de proles. (...) Em poucas décadas, portanto, os paradigmas do direito de família são diametralmente modificados.

Acompanhando tal evolução, o pai de família já não exerce o pátrio poder em seu interesse exclusivamente, mas sim em prol dos filhos, devendo oferecer-lhes um ambiente salutar de desenvolvimento pessoal.

O conceito de família está mudando, acompanhando a evolução social. Com isso fica mais claro a desbiologização do conceito de filiação e a concepção de Paternidade socioafetiva. Paternidade aqui entendida em sentido latu sensu, incluindo também a maternidade. O art. 226 § 7º da Constituição Federal de 1988 pôs fim à preeminência da paternidade biológica, trazendo a noção de paternidade responsável: o direito da filiação não é somente o direito da filiação biológica, mas é também o direito da filiação vivida (DUARTE, 2004).

Paulatinamente o modelo tradicional de família foi cedendo espaço a um novo arranjo, alicerçado mais no afeto do que em meras presunções ou ligações sanguíneas. Direitos foram sendo acrescidos à esfera jurídica da mulher, igualando sua participação na tomada das decisões familiares, acabando com a figura do "chefe de família". Aos filhos não mais é permitida qualquer discriminação odiosa que tempos atrás vigorava, denotando a igualdade de direitos a todos os filhos, independentemente da forma de filiação.

Os movimentos feministas da década de 50 do século passado culminaram numa onde de conquistas sócio-jurídicas das mulheres. Na maioria das legislações, a mulher alcança os mesmos direitos dos homens.

Com isso, a relação entre pais e filhos transforma-se, estes passando mais tempo na escola e em atividades outras, longe do contato com os pais.

As mudanças sociais, a pressão do mercado, a desatenção e desgaste das religiões fizeram com que o número de divórcios aumentasse consideravelmente. As uniões surgidas sem casamento passam a ser reconhecidas e aceitas socialmente. A unidade familiar já não encontra seu ponto de equilíbrio exclusivamente no matrimônio.

Destarte, o Estado não podia manter-se distante, admirando silente esta realidade. Muitos foram os fatos que colaboraram para o derradeiro enfraquecimento da visão machista e centralizadora do homem. Dentre os inúmeros motivos, destacamos a evolução das técnicas científica, aliada à globalização, contribuindo para o declínio do patriarcalismo, derrogando o dogma do biologismo.Por quase toda a história, a família sempre esteve em posição de supremacia, gozando de um conceito dogmático por ser considerada a base da sociedade.

As relações afetivas foram primeiramente absorvidas pela religião, que em tempos primórdios era o regulador da sociedade, impondo regras duras e inflexíveis, convertendo-as em união divina abençoada pelos céus, as quais somente poderiam ser dissolvidas pela morte, ainda que o afeto entre os cônjuges já não existisse mais.

O distanciamento entre o Estado e a Igreja determinou a busca por outros referenciais para a manutenção das estruturas convencionais. Novas configurações familiares surgiram, instaura-se o tempo do pluralismo da entidade familiar.

O modelo tradicional de família não se mostra harmonizado com a visão moderna que devemos ter das novas formas familiares. Adotando-se um conceito moderno de família, mais adequado ao séc. XXI, torna-se necessário analisar principalmente a multiplicidade social, distante do ranço e da mesmice preconceituosa que sempre preponderou na legislação brasileira (DUARTE, 2004).

Essa mudança do paradigma ocorreu, principalmente, devido à Constituição Federal de 1988, que em seus artigos 226 e 227, inovou trazendo a previsão da liberdade quanto ao planejamento familiar, incorporando ao ordenamento novos tipos de entidades familiares baseadas no afeto, e não mais inteiramente no aspecto biológico. A família, doravante, deve gravitar em torno de um vínculo de afeto, de recíproca compreensão e mútua cooperação (VENOSA, 2005, p. 33). Este é o entendimento sufragado por Albuquerque Júnior (2007):

Se é inquestionável que o direito de família tradicional, fulcrado na ideologia liberal, tomou para si como parâmetro um conceito de filiação que se alicerça na ascendência biológica, hoje não constitui novidade afirmar que o direito de família contemporâneo abraçou a filiação de ordem socioafetiva como o seu principal referencial (ainda que não o único, por certo).

Tornava-se imperioso, então, igualar os direitos dos filhos, desvinculando-os da condição jurídica de seus pais, tendo estes os deveres de assisti-los, educá-los, amá-los, independentemente de serem casados ou não.

O Código Civil de 1916 apresentava um caráter individualista e patrimonialista muito destacado. Preocupava-se basicamente em regular as relações patrimoniais, cujo princípio basilar era o da autonomia da vontade, que tinha por objetivo garantir a estabilidade e a segurança das atividades econômicas de cunho privado.

O início de século XIX foi marcado pelo liberalismo máximo e autonomia dos indivíduos (maior destaque aos homens). Procurava-se a ampla igualdade formal, devendo cada indivíduo arcar com o ônus de seus próprios atos, havendo pouca interferência do Estado.

Com o passar dos anos, a sociedade foi percebendo que a ampla liberdade não era suficiente, necessitava-se da intervenção estatal na diminuição das desigualdades sociais.

Após duas grandes guerras mundiais, o homem passou a olhar para o todo, deixando de lado o individualismo exacerbado que marcou o início do século anterior. Nesse sentido, Monteiro (2007, p. 10) assinala:

Movimentos sociais, o avanço da industrialização e a eclosão de duas grandes guerras mundiais fizeram necessária a intervenção do Estado não só na economia, mas também nas relações privadas. Essa intervenção fez surgir a denominada socialização do direito civil que se voltou primordialmente para a proteção do indivíduo integrado na sociedade.

Destarte, as atenções se voltaram para a pessoa em si mesma, e não mais ao patrimônio. Os valores patrimoniais cederam espaço para os valores existenciais, a pessoa humana passou a ser o centro da ordem jurídica e sua dignidade foi elevada ao status de valor supremo do ordenamento. A pessoa passou a ser o valor central e o vértice interpretativo da ordem jurídica brasileira. Os velhos institutos jurídicos passaram a ser vistos sob a perspectiva da pessoa humana.

Tal fenômeno é conhecido por repersonalização do Direito Civil. O Código Civil anterior tinha como núcleo a noção de patrimônio, colocando as pessoas e seus interesses à margem das discussões. A repersonalização do direito civil significou trazer a pessoa humana e suas necessidades fundamentais para o centro das atenções jurídicas. A constitucionalização das relações familiares trouxe a repersonalização do Direito de Família, e, agora, dadas relações são intersubjetivas, e não mais individuais, objetivando a realização do indivíduo. Portanto, para a concretização desse direito fundamental deve ser considerada família tanto aquela união legalizada pelo casamento ou sedimentada por duradouro tempo de convivência - união estável -, bem como a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes - família monoparental. Constitucionalmente, todas são merecedoras de proteção do Estado Social Democrático de Direito como núcleo familiar, assim entendido o agrupamento de pessoas envolvidas por laços de sangue, vínculos afetivos e comunhão de interesses.

O Estado, na figura da Constituição da República de 1988, passou a desempenhar um importante papel na transição de uma visão patrimonialista da família para um novo conceito, centrado mais na pessoa humana. E isto é visto com os inúmeros dispositivos de direito privado que passaram a ser regulamentado diretamente pelo texto constitucional, principalmente no que concerne à família, com especial destaque ao macroprincípio da dignidade da pessoa humana, previsto expressamente no art. 1º, III, do texto maior.

Corroborando esta passagem, Teixeira (2005, p. 42) afirma:

Por ter sido portadora de valores sociais latentes, a Constituição passou a ocupar o centro da ordem jurídica, influenciando todos os demais ramos do direito. Ela passou a ser o pólo prioritário de irradiação dos princípios fundamentais do ordenamento, a partir da consciência da unidade do sistema e do respeito à hierarquia das fontes normativas. Esse fenômeno é conhecido por inúmeras denominações: publicização, descodificação, despatrimonialização, repersonalização e constitucionalização do direito civil.

Tal mudança se mostra salutar, digno de um Estado Social, que intervém nos setores privado almejando a proteção do ser humano. Essa postura é raramente vista em Estados liberais, onde predomina a liberdade ampla e o individualismo. O Direito Civil repersonalizou-se, constitucionalizou-se, afastou-se da concepção individualista e conservadora de antigamente.

Como consequência da repersonalização do direito civil, a afetividade ganhou destaque nas relações familiares e trouxe reflexos diretos na relação paternal. Antes, preponderantemente hierárquica e patriarcal, a relação paterno/materno filial transmuta-se para uma perspectiva dialogal, ou seja, é perpassada pela compreensão mútua e pelo diálogo (TEIXEIRA, 2005, p. 60).

A doutrina, a jurisprudência pátria e principalmente a sociedade defendem a afetividade como fator determinante da filiação, não importando laços de sangue que por vezes apenas castigam e oferecem uma vida inteira de sofrimento aos menores. Se antes a família envolvida por consanguinidade predominava quase que absolutamente, esta já não mais exprime uma realidade perene. Novos núcleos familiares são formados, com as mais diversas configurações.

Lôbo Netto (2006, p. 795), em breve, mas elucidativa passagem, afirma, in verbis:

Muito se avançou no Brasil no que a doutrina jurídica especializada denomina paternidade (e filiação) socioafetiva, assim entendida a que se constitui na convivência familiar, independentemente da origem do filho. A denominação agrupa duas realidades observáveis: uma, a integração definitiva da pessoa no grupo social familiar; outra, a relação afetiva tecida no tempo entre quem assume o papel de pai e quem assume o papel de filho. Cada realidade, por si só, permaneceria no mundo dos fatos, sem qualquer relevância jurídica, mas o fenômeno conjunto provocou a transeficácia para o mundo do direito, que o atraiu como categoria própria. Essa migração foi possível porque o direito brasileiro mudou substancialmente, máxime a partir da Constituição de 1988, uma das mais avançadas do mundo em matéria de relações familiares, cujas linhas fundamentais projetaram-se no Código Civil de 2002.

Como resultado desta transeficácia para o mundo do direito, temos na Constituição da República atual a mudança de paradigma da filiação, havendo mesmo a constitucionalização de diversas normas de caráter privado, com destaque para a total igualdade dos cônjuges na tomada de decisões acerca da família, isonomia entre os filhos, independentemente de sua origem, proteção especial à família e seus diversos arranjos.

A família contemporânea não é fim em si mesma, mas meio de desenvolvimento do menor, sendo a filiação um dever, e não mais poder. Vale mais o princípio da prevalência do interesse do menor em detrimento da vontade dos pais. A família deve servir de meio necessário ao desenvolvimento das relações interpessoais, transformando-se em instrumento de felicidade, e respeito à dignidade humana de cada membro.

A supremacia do princípio da dignidade humana provoca um desmoronamento nas estruturas atrasadas e arraigadas em valores tiranos, materiais e autoritários, elevando a figura do afeto como norteador absoluto das relações familiares. Esta mudança trouxe grandes mudanças na relação entre pais e filhos.

1.4 A FAMÍLIA E O CÓDIGO CIVIL DE 2002

O século XX experimentou grandes mudanças num período de tempo muito curto, de forma que a codificação civil de 1916 já não comportava a imensa gama de novos valores incorporados na sociedade, além de trazer tantos outros há muito superados. A família brasileira sentiu reflexos direitos desta mudança de pensamento, de orientação, de tal modo que diversas leis esparsas foram sendo publicadas no intuito de regulamentar as relações de cunho privado aos novos valores que afloravam no meio social.

A edição de um novo código civil já era anseio da sociedade desde os idos de 1970, como forma de salvaguarda da segurança jurídica que se mostrava fragilizada ante a ausência de regulamentação dos novos princípios e valores acrescidos ao modelo familiar brasileiro, fruto de anos de superação, guerras, lutas por direitos de minorias e vários outros movimentos sociais.

A Constituição de 1988 trouxe em seu bojo a previsão de diversos institutos privados, mas que não suplantava a falta que um novo código civil fazia à sociedade.

Os gritos suplicantes da sociedade e do meio jurídico ecoaram no Congresso Nacional. Em 1975 fora apresentado o projeto do atual Código Civil, que tramitou por incríveis 25 anos naquela casa legislativa. Devido à longa tramitação, o projeto original do Código se mostrava defeituoso, desarmonizado com a ordem vigente.

Após vários retoques, diversas proposições de alteração e muita discussão, enfim, o novo Código Civil foi promulgado em 11 de janeiro de 2002, com início de vigência para 11 de janeiro do ano seguinte. O novo diploma legal tinha por objetivo precípuo a sistematização da matéria civil e a regulamentação das relações de cunho privado - incluindo-se aí as relações familiares - à luz dos novos paradigmas trazidos pela Constituição Federal, no entanto, pode-se dizer que após tantos anos de gestação, ele ainda fora bastante tímido quanto ao êxito de sua missão.

Silvio Rodrigues (2004, p. 15) vê no atual Código Civil o aglutinador das significativas inovações legislativas e conceituais acerca deste ramo do direito que, a partir da Constituição Federal, como visto, tem-se mostrado extremamente dinâmico.

Mesmo merecedor de críticas, não se deve deixar de lado alguns avanços normativos. Tentando-se manter fiel à nova conjuntura ontológica – predominância da dignidade da pessoa humana -, o novo Código expurgou as designações pejorativas e odiosas que outrora se dispensava aos companheiros, filhos havidos fora do casamento, tais como concubinato, filhos ilegítimos, adulterinos e incestuosos.

Outros significativos avanços: a não determinação obrigatória da exclusão do patronímico do marido do nome da mulher quando da conversão da separação em divórcio; a obrigação de prestar alimentos ao cônjuge responsável pela separação quando este não tiver condições de própria subsistência; a nova denominação dada ao pátrio poder, agora chamado poder familiar.

Ainda no campo dos avanços do atual Código Civil, este trouxe relevantes dispositivos concernentes à proteção da dignidade da pessoa humana, com reflexos no direito de família, conforme Teixeira (2005, p. 56):

O Código Civil de 2002 inaugurou um capítulo especialmente voltado para os direitos da personalidade (art. 11 a 21). Tais dispositivos são apenas uma complementação da Cláusula Geral de Proteção à pessoa, esculpida no art. 1.º, III, da Constituição Federal, não encerrando uma tipificação, mas meros exemplos de proteção à personalidade, que não se esgotam em si mesmos, uma vez que são várias as formas de agressão à pessoa, bem como os modos de sua proteção.

Em que pese duras críticas, o atual Código Civil trouxe alguns avanços significativos, cabendo ao intérprete do direito suprir falhas, lacunas ou impropriedades técnicas, sempre tendo como parâmetro a Constituição da República de 1988.

Controvertidas são as situações decorrentes das técnicas de reprodução humana assistida, verdadeiros choques de direitos. Como responder aos inúmeros questionamentos surgidos, tais como o que fazer com a situação da criança gerada por estes meios pleitear o conhecimento de sua ascendência genética; E se ao descobrir cobrar alimentos do doador; E o doador, que não tinha interesse algum em ser pai, torna-se responsável, etc.

Estes são apenas pequenos exemplos da problemática surgida com o advento das técnicas de reprodução assistida, as quais permitiram a inúmeros casais com problemas de procriação atualmente poderem realizar o projeto parental.

Antes de adentrar no tema específico, faz-se imperiosa uma abordagem geral das relações de parentesco e filiação, para somente então, com sólida base de raciocínio, apresentar a ascensão da socioafetividade no direito pátrio.

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Sobre o autor
Aurimar de Andrade Arrais Sobrinho

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão - UFMA, Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB e Técnico Judiciário do TRE-MA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARRAIS SOBRINHO, Aurimar Andrade. Relação socioafetiva: desbiologização do conceito de filiação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2495, 1 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14662. Acesso em: 22 dez. 2024.

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