PRESCRIÇÃO EM PERSPECTIVA COMO JUSTIFICANTE DA FALTA DE INTERESSE DE AGIR
Prescrição em perspectiva, também conhecida como prescrição virtual, prescrição retroativa antecipada, prescrição pela pena ideal ou hipotética, prognose prescricional, prescrição precalculada ou prescrição projeta, em suma, é a possibilidade do reconhecimento da prescrição retroativa considerando uma provável pena a ser aplicada ao autor do fato. Trata-se, portanto de um processo indutivo, grande argumento, aliás, para sua repulsa por parte da doutrina e da jurisprudência.
O reconhecimento da prescrição em perspectiva vem sendo combatida por parte da doutrina, como, por exemplo, Luiz Vicente Cernicchiaro, Damásio Evangelista de Jesus, Júlio Fabbrini Mirabete e Raúl Zafaroni, sob argumentos diversos, dentre os quais podemos destacar a suposta ofensa aos princípios da legalidade, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, do princípio da obrigatoriedade da ação penal e da presunção de inocência.
Há de ser ressaltado que, por trás dos argumentos levantados em cada um dos aspectos acima citados, há um apego considerável à legalidade kalseniana, o que, em tese, conflita com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da razoabilidade e proporcionalidade, devendo esses princípios, no entanto, conviverem em harmonia sistemática. Corroborando com o exposto, as palavras de TRAVESSA (2008, p. 173):
"O princípio da legalidade, após o esgotamento do modelo clássico positivista, deve ser aplicado em consonância com os interesses sociais e guiado pelos valores sociopolíticos vigentes em sociedade. Por isso, a noção de legalidade não está presa à aplicação isolada das regras, e, sim, na harmonia entre estas e valores insculpidos na ordem jurídica pelo constituinte, fulcrado em um fundamento pelos positivistas kelsenianos".
Defende-se que a dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, seria violada uma vez que a formalidade exacerbada de processar um determinado indivíduo pela simples observância da lei, sem que haja qualquer utilidade no processo, coisifica o homem, trazendo-lhe humilhação e discriminação social, sendo essa utilização com desvio de função do processo, contrária ao Estado Democrático de Direito. Sendo assim, é proporcional o desapego à legalidade tradicional em benefício da dignidade humana.
Em argumento mais pragmático, não é razoável admitir que seja levado ao crivo do judiciário demanda necessariamente fadada ao insucesso apenas como forma de, supostamente, cumprir a lei, aliás, levando a sociedade a uma expectativa certamente frustrada em virtude do reconhecimento da prescrição após a prolação da sentença.
Outro ponto favorável à tese diz respeito à razoável duração do processo, elevado a nível constitucional pela EC n. 45. Diz-se isso pois tanto o processo a ser atacado pela prescrição futura teria encerrado seu trâmite de forma mais curta com o reconhecimento da prescrição retroativa, quanto àqueles processos viáveis teriam sua duração abrandada, preocupando-se o órgão ministerial apenas com a eficaz persecutio criminis. Ademais, ponto intimamente ligado a este argumento, é a economia das verbas públicas com demandas moribundas, vez que alto o custo da movimentação da máquina judiciária.
Há de se relevar, no entanto, que o STF, segundo afirma TRAVESSA (2008 p. 80), há mais de 17 anos vêm negando o reconhecimento do instituto, como se assenta nos julgamentos seguintes: HC 66.913-1/DF, Min. Sydney Sanches, DJ 18.11.1988, RHC 76.153-2/SP, Min. Ilmar Galvão, DJ 27.03.1998, HC 82.155-3/SP, Min. Ellen Gracie, DJU 07.03.2003 e HC 83458/BA, Min. Joaquim Barbosa, DJ 06.02.2004.
Insiste-se em afirmar que a falta de previsão legal é a grande repulsa ao conhecimento da espécie de prescrição em comento. De fato, não há no ordenamento jurídico, regra expressa no sentido da possibilidade de tal prescrição, no entanto, há de ser verificado, como dito em linhas anteriores, que o órgão ministerial, na propositura da ação, e ao longo desta, deve possuir interesse de agir na demanda, condição da ação. Caso não haja esse interesse, a ação sequer deve ser proposta, sob pena de ser violada a função de fiscal da lei, também conferida ao Ministério Público; mas, caso proposta, deve ser rejeitada pelo juiz, nos termos do art. 395, do CPP, razão pela qual não há falar-se em ofensa ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, tal qual sustenta parte da doutrina, entre eles Marcellus Polastri Lima.
Pela relevância, corroborando com todo o exposto, faz-se necessária a transcrição da ementa de julgado proferido pela 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em RCCR n. 1997.35.00.000060-0, com publicação no DJU de 29/07/2005, com relatoria do Des. Fed. Tourinho Neto, nos seguintes termos:
PENAL. PROCESSO PENAL. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. ART. 171 DO CP. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO NÃO PROVIDO. PRESCRIÇÃO ANTECIPADA, OU PROJETADA, OU PRECALCULADA, OU EM PERSPECTIVA.
- A doutrina e a jurisprudência divergem, predominando, no entanto a orientação que não aceita a prescrição antecipada. É chegada a hora, todavia, do novo triunfar.
- A prescrição antecipada evita um processo inútil, um trabalho pra nada, chegar-se a um provimento jurisdicional de que nada vale, que de nada servirá. Desse modo, há de se reconhecer-se ausência do interesse de agir.
- Não há lacunas no Direito, a menos que se tenho o Direito como lei, ou seja, o Direito puramente objetivo. Desse modo, não há falta de amparo legal para aplicação da prescrição antecipada.
- A doutrina de plenitude lógica do direito não pode substituir em face da velocidade com que a ciência do direito se movimenta, de sua força criadora, acompanhando o progresso e as mudanças das relações sociais. Seguir a lei ‘a risca, quando destoantes das regras contidas nas próprias relações sociais, seria mutilar a realidade e ofender a dignidade mesma do espírito humano, porfiosamente empenhado nas penetrações sutis e nos arrojos de adaptação consciente’ (Pontes de Miranda).
- Recurso em sentido estrito não provido.
O mesmo pensamento deve ser utilizado quando se analisar a ação já recebida, vez que presentes os requisitos legais, mas que perde sua utilidade ao longo do processo, ou seja, é plenamente possível a falta de interesse superveniente.
Desta forma, encontra-se na própria lei processual penal o argumento necessário ao reconhecimento da prescrição virtual, caindo por terra o argumento daqueles que defendem seu não reconhecimento. Neste sentido as palavras de GRECO (2007, p. 757):
"embora como ‘pano de fundo’ se encontre a efetiva possibilidade de ocorrência da futura prescrição, o juiz não a reconhecerá, tampouco o Ministério Público a poderá requerer, mas, sim, ambos fundamentarão os seus pedidos e decisões na falta de interesse de agir, na modalidade interesse-utilidade da medida, condição esta indispensável ao regular exercício do direito de ação, que deve existir durante toda a vida processual".
No mesmo vetor os ensinamentos de NUCCI (2005, p. 536):
tal modalidade de prescrição baseia-se essencialmente na perda do direito material de punir pelo Estado, já que faltará a este uma das condições para a propositura da ação penal, qual seja, o interesse de agir, posto que não se alcançará com a propositura da ação penal o resultado que dela se espera, no caso, a punição de indivíduo que praticou ato ilícito.
Faz-se mister, portanto, concluir que há embasamento legal e principiológico-constitucional para o reconhecimento da prognose prescricional, devendo o membro do Ministério Público, na função constitucional de custos legis, sempre que verificado, mediante prévia análise, que, seguramente, o fato supostamente cometido será abarcado pelo instituto da prescrição retroativa, requerer o reconhecimento da falta de interesse de agir com base no art. 395 do CPP, vez que a sanção penal, se aplicada, não atingirá sua finalidade legal, tornando-se inútil. Da mesma forma o magistrado, se verificada a falta de interesse de agir do órgão ministerial, deve decretá-la de ofício, por se tratar de norma de interesse público, pouco importando se em sua fundamentação houver ou não a denominação abominada por parte da doutrina e da jurisprudência, qual seja, prescrição perspectiva.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 13. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.
BRASIL. Código Penal (1984). DECRETO-LEI No 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Organização do texto: Anne Joyce Angher. 5. ed. São Paulo: Rideel, 2007.
BUZAID, Alfredo, apud DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 6 ed. Salvador: JusPODIVM. 2006.
FERRARI, Eduardo Reale. Prescrição da ação penal: suas causas suspensivas e interruptivas. São Paulo: Editora Saraiva, 1998.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 8ª ed. Niterói: Editora Impetus, 2008.
JARDIM, Afrânio Silva. Ação Penal Pública – Princípio da obrigatoriedade. Rio de Janeiro: Forense, 1988.
LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, vol. 1.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2005.p. 536.
PONTES, Manuel Sabino. Investigação criminal pelo Ministério Público: uma crítica aos argumentos pela sua admissibilidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1013, 10 abr. 2006. Disponível em <http://jus.com.br/artigos/8221>. Acesso em 18/11/2008.
TRAVESSA, Julio Cezar Lemos. O reconhecimento antecipado da prescrição penal retroativa. Salvador: Juspodivm, 2008.
Notas
- LIEBMAN, Henrico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, vol. 1.
- BUZAID, Alfredo, apud DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 6 ed. Salvador: JusPODIVM. 2006, v. I, p.173.
- Há de se ressaltar que são imprescritíveis "a prática de racismo" e "a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático", isso por determinação expressa da Constituição Federal (art. 5º, XLII e XLIV)
- BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 13. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2008,p. 728.
- TRAVESSA, Julio Cezar Lemos. O reconhecimento antecipado da prescrição penal retroativa. Salvador: Juspodivm, 2008, p. 58-64.
- Ob. Cit. p. 63.