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Provas ilícitas em matéria processual penal.

Da teoria geral da prova à juridicidade positiva brasileira

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2. Inadmissibilidade das provas ilícitas

Antes de iniciar a análise da prova sob a sua acepção de ilicitude, cumpre tratá-la sob a perspectiva lícita, a fim de formalizar algumas noções fundamentais a compreensão desta em seu caráter ilícito.

Neste momento da investigação, notou-se que, para se chegar aos fins pretendidos, em muito contribuiria trazer a colação a síntese conclusiva do pensamento de Melendo, no seguinte sentido:

[...] la prueba es verificación – de afirmaciones – utilizando fuentes que llevan al proceso por determinados medios – aportadas aquélla por los litigantes y dispuestos éstos por el juez – con las garantías jurídicas establecidas – ajustándose al procedimiento legal – adquiridas para el proceso – y valoradas de acuerdo a normas de sana críticas – para llegar el juez a una convicción libre. [sem os grifos do original] [35]- [36]

A prova lícita é, portanto, uma verificação, não se confundindo com averiguação, nos termos definidos pelo autor, de afirmações, pois na realidade o que se prova são as afirmações quanto aos fatos e não os fatos em si. Tal atividade se dá através de fontes fornecidas pelas partes e meios especificados pelo juiz, respeitadas as garantias jurídicas postas em cada ordenamento (por exemplo: o direito à privacidade, à intimidade, à vida privada etc., bem como as disposições processuais quanto aos meios e fontes de prova admitidos); trazidas ao processo seguindo estes termos, a fim de que possam ser devidamente valoradas, dando ao julgador a possibilidade de se convencer livre e motivadamente, com base nos princípios do livre convencimento motivado e da persuasão racional. [37]

Ao final, Melendo discorre "la prueba es libertad. Sin libertad no hay prueba" [grifos do original] [38]- [39]. E mais adiante arremata: "Sólo con libertad, el litigante, la parte, podrá aportar todas las fuentes, y el juez podrá hacer uso de todos os medios" [grifos do original] [40]- [41]. Por fim, no sentido empreendido na investigação procedida pelo autor, a prova quando vista para além do sentido técnico-processual, pode certamente ser compreendida como um sinônimo de liberdade.

2.2. Prova ilícita: um possível conceito construído a partir da diferença entre a prova ilícita e a prova ilegítima

Em fim, é chegada a hora de adentrar ao objeto central da investigação. Todas as considerações passadas foram necessárias, para trazer a colação uma correta compreensão do fenômeno jurídico ora estudado. Não seria, pois, metodologicamente prudente entrar diretamente na discussão do objeto da pesquisa sem antes investigar suas fontes, essenciais ao desenvolvimento de estudo coerente e responsável, comprometido, portanto, apenas com a ciência jurídica, com a isenção inerente e, claro, necessária.

Importante frisar, antes de tudo, que a prova ilícita não se confunde com a prova ilegítima. Nesse sentido, muito útil se faz a diferenciação proposta por Fernandes:

[...] a prova é vedada em sentido absoluto quando o direito proíbe em qualquer caso sua produção. Haverá prova vedada em sentido relativo quando, embora admitido o meio de prova, condiciona-se a sua legitimidade à observância de determinadas formalidades. A violação será sempre ilegal, mas a violação de uma proibição de natureza substancial torna o ato ilícito, enquanto a violação de impedimento de ordem processual faz com que o ato seja ilegítimo. Em síntese, a prova ilegal consiste em violação de qualquer vedação constante do ordenamento jurídico, separando-se em prova ilícita, quando é ofendida norma substancial, e prova ilegítima, quando não é atendido preceito processual. [42]

Importa, para fins deste estudo, a concepção da prova ilícita, uma vez que esta é objeto central do estudo. Feitas tais diferenciações, é possível pontuar que a prova ilícita é aquela que fere direito material ou norma constitucional, ou seja, normas de natureza extraprocessual, conforme afirmado anteriormente (ponto 1.3), como por exemplo as provas que violam direito à intimidade, inviolabilidade do domicílio e inviolabilidade do sigilo de correspondência e das telecomunicações. Direitos estes assegurados pela inadmissibilidade das provas ilícitas.

Resta, nesta parte, analisar sob um aspecto jurídico-positivo duas questões: (a) a prova ilícita por derivação e (b) a prova autônoma; duas questões normatizadas na norma adjetiva penal. Análise essa que será procedida nos dois seguintes sub-tópicos deste ponto.

2.3. Prova ilícita por derivação e a sistemática do CPP: breves considerações

A noção de prova ilícita por derivação, presente na sistemática processual penal brasileira, decorre da chamada teoria dos fruits of the poisonous tree [43] do direito norte-americano, que veda a possibilidade de utilização da prova que decorra de uma prova considerada ilícita. [44] Oliveira ao discorrer sobre este tema justifica:

Se os agentes produtores da prova ilícita pudessem dela se valer para obtenção de novas provas, a cuja existência somente se teria chegado a partir daquela (ilícita), a ilicitude da conduta seria facilmente contornável. Bastaria a observância da forma prevista em lei, na segunda operação, isto é, na busca das provas obtidas por meio das informações extraídas pela via da ilicitude, para que se legalizasse a ilicitude da primeira (operação). Assim, a teoria da ilicitude por derivação é uma imposição pela aplicação do princípio da inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente.[grifos do original] [45]

Percebe-se, de acordo com o disposto do § 1º - acrescido a partir da Lei 11.690/08-, do art. 157, do CPP, que essa teoria encontra-se positivada no ordenamento brasileiro, ou seja, dispõe o aludido dispositivo: "São também inadmissíveis as provas derivadas das provas ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras". Portanto, são vedadas na sistemática brasileira as provas decorrentes de provas ilícitas, exceto em duas hipóteses: (a) não ficar evidenciado nexo de causalidade entre elas ou (b) quando a prova decorrente possa ser logicamente conseguida por outros diversos. [46]

2.4. A questão da prova autônoma no processo penal pátrio: linhas gerais

Também acrescido pela Lei 11.690/08, o § 2º, do art. 157, do CPP, normatizou a questão da prova autônoma no sentido de que são consideradas fontes independentes as que, por si só, mediante os trâmites investigativos normais, seja na fase do inquérito ou na instrução criminal, seria apta a levar ao fato objeto da prova. Ao proceder a uma análise dessa possibilidade jurídico-positiva, Tourinho Filho diz:

[...] se a despeito de ter havido prova ilícita existirem outras provas autônomas e independentes e que por si sós autorizam um decreto condenatório, não há cuidar de imprestabilidade da prova. A ilicitude de uma não contamina a outra, se esta, óbvio, tiver origem independente. [47]

Note-se, portanto, que o ponto em comum entre a prova autônoma e a prova ilícita por derivação é a ilicitude, sendo que na primeira esta não chega a contaminar a prova, como ocorre com a segunda, pois pode ser considerada uma prova independente da ilicitude da primeira (mediante aplicação de critérios de proporcionalidade e prudência do julgador, a fim de se evitar o arbítrio, ou seja, a admissibilidade ou não da prova ao bel prazer do juiz). A linha que separa os critérios justos de proporcionalidade do arbítrio judicial é muito tênue, o que faz esta opção do legislador ser um tanto quanto arriscada, em face da inexatidão dos requisitos a serem seguidos. Sobre a questão da proporcionalidade em matéria de provas ilícitas, esta será aprofundada no momento seguinte da pesquisa. [48]


3. Viabilidade de aproveitamento das provas ilícitas no processo penal

A isenção foi algo que se prezou desde o início da pesquisa e neste momento não será diferente. Buscou-se catalogar as possibilidades existentes na doutrina acerca da possibilidade de aproveitamento das provas ilícitas, as quais não serão omitidas, mesmo quando aparentemente inviáveis, uma vez que a opinião pessoal do pesquisador quando à viabilidade ou não da aplicação não importa por ora, sendo, pois, em todos os momentos desta investigação mantido um único compromisso, este firmado com o direito enquanto ciência.

Na aludida empreitada, foram encontradas quatro possibilidades propostas pelos estudiosos da temática, as quais serão catalogadas a seguir: [49]

(a) Na hipótese defendida por Cordeiro, Tornaghi e Mendonça Lima, propõe-se a admissibilidade da prova ilícita ao processo criminal, desde que não haja impedimento na lei processual, devendo ser punido quem a produziu pelo eventual delito cometido;

(b) Nuvolone, Frederico Marques, Fragoso e Pestana de Aguiar recomendam, em face da unidade do ordenamento jurídico, a impossibilidade de admissão da prova ilícita ao processo, pois esta é vedada pela Constituição e pela norma adjetiva penal;

(c) Já Cappelletti, Vigoriti e Comoglio afirmam a inconstitucionalidade da prova obtida por meio de violação de norma posta na Constituição, por isso devendo ser inadmissível ao processo penal;

(d) Por fim, Baur, Barbosa Moreira, Renato Maciel, Hermano Duval, Camargo Aranha e Moniz Aragão sugerem a admissão de prova obtida violando-se a Constituição, somente em situações excepcionais, na hipótese de ser utilizada visando a proteção de valores mais relevantes do que os violados quando da colheita da prova.

Como visto, foram identificadas quatro hipóteses sobre a viabilidade ou não da utilização das provas ilícitas, sendo duas a favor e duas contra, cada uma sustentada em um fundamento diferente. Não se visualiza necessidade de maiores comentários quanto aos três primeiros entendimentos. Já em relação ao quarto entendimento, este claramente deságua na questão da proporcionalidade, que será debatida no sub-tópico seguinte.

3.2. Princípio da proporcionalidade em matéria de provas ilícitas: a posição de Gomes Filho

Em função da questão das provas ilícitas em sede de processo criminal dizer respeito a "necessidade de se assegurar uma mais correta reconstrução dos fatos" [50] e de se limitar a atividade probatória frente à tutela de determinados valores assegurados no ordenamento, estes mais relevantes que a busca da verdade, é que surge a problemática da ponderação de interesses, ou seja, a proporcionalidade [51], como princípio autorizador da superação das vedações probatórias. [52]

De acordo com Gomes Filho:

A apologia desse critério em matéria probatória é muito antiga e, já no sistema das provas legais, a gravidade de certos crimes era invocada como justificativa do instituto da prova privilegiada, através do qual se podia qualificar como plena (suficiente, portanto, para condenação) uma prova meramente indiciária. [grifos do original] [53]

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O autor encontra menção a esse tipo de ponderação inclusive na obra de Jeremias Bentham, conforme o trecho que segue a colação:

[...] aconselhava-se que a importância da causa e a importância da prova para a decisão fossem um contrapeso para as limitações postas pela lei à investigação dos fatos: deve-se escolher entre dois males, pois se trata de pesar e comparar o perigo que resulta à justiça em virtude da falta de provas, e o inconveniente que resulta aos indivíduos pelo incômodo a que estão sujeitos para a prática. [54]

Diante desse quadro, o autor propõe interessante possibilidade aplicável à ponderação de valores em sede de prova ilícita. Na visão de Gomes Filho, em síntese, seria viável a utilização desse tipo de prova, quando em favor do acusado, seja esta a única prova capaz de demonstrar a sua inocência. Já em situação inversa, ou seja, pro societate o critério de proporcionalidade deveria ser rejeitado. Por fim, o autor observa que são muito raros no Brasil os casos em que a defesa utiliza-se de prova ilícita para comprovar a inocência do acusado, diferentemente do que ocorre na atividade policial.


Considerações finais

É chegada a hora de tecer alguns comentários sobre a investigação. Apresentar conclusões definitivas em sede de tema tão polêmico seria um tanto quanto arriscado. Mas, é preciso explanar algumas breves considerações, a fim de ponderar algo acerca do conteúdo estudado.

Ora, como dito desde as primeiras colocações, o tema provas ilícitas é um dos temas jurídicos atualmente mais controvertidos. Tal fato impõe ao investigador uma posição de total isenção para com a pesquisa. Entretanto, expor um posicionamento ao final desse trabalho é, no mínimo, importante após tamanha empreitada.

Dessa forma, é importante considerar que a busca por um justo processo penal, embasado nos preceitos constitucionalmente postos no ordenamento jurídico pátrio, exige do intérprete uma atividade hermenêutica focada em ideais de justiça e equidade. Assim, acredita-se que a aceitação da prova ilícita no processo penal é viável, mas tão somente em situações de extrema excepcionalidade. Isso posto, entende-se que o posicionamento defendido por Baur, Barbosa Moreira, Renato Maciel, Hermano Duval, Camargo Aranha e Moniz Aragão, sintetizado na alínea "d", do ponto 3.1, apresenta-se como uma solução interessante. Porém, a viabilidade de tal entendimento deve ser condicionada a adequação proposta por Gomes Filho, no sentido de que essa espécie de prova só pode ser admitida ao processo criminal, quando for o único meio capaz de demonstrar a inocência do acusado, pois se mostra como a possibilidade mais compatível com uma interpretação proporcional das normas adjetivas penais, visando a um processo penal justo e equitativo.


Referências

JARDIM, Afrânio Silva Jardim. O ônus da prova na ação penal condenatória. Direito processual penal. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

TORRES, Anamaria. Devido processo legal e natureza da prova: da verdade, da certeza, da convicção, da probabilidade. Princípio da legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito (Coordenadores: Cláudio Brandão, Francisco Cavalcanti e João Maurício Adeodato). Rio de Janeiro: Forense, 2009.

Legislação

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.

______. Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Rio de Janeiro: Senado, 1941.

Livros

DANTAS, Ivo. Constituição & processo. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2007.

FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

MALATESTA, Nicola Framarino dei. A lógica das provas em matéria criminal (Tradução: Paolo Capitanio). Campinas: Bookseller, 1996.

MELENDO, S. Sentis. La prueba. Los grandes temas del derecho probatorio. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1978.

MITTERMAIER, C. J. A. Tratado da prova em matéria criminal (Tradução: Herbert Wüntzel Heinrichi). Campinas: Bookseller, 2004.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever (Tradução: Pedro Süssekind). Porto Alegre: L&PM, 2009.

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

TROURINHO FILHO, Fernando da Costa, Código de Processo Penal Comentado. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. Volume 1.

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Sobre o autor
Saulo Romero Cavalcante dos Santos

Advogado. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Caruaru (ASCES). Pesquisador na área de Direito Processual Penal, com ênfase na constitucionalização do processo penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Saulo Romero Cavalcante. Provas ilícitas em matéria processual penal.: Da teoria geral da prova à juridicidade positiva brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2483, 19 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14705. Acesso em: 20 dez. 2024.

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