Sumário:1. Introdução: ética, moral e Direito; 2. O Estado, a modernidade e os "fins éticos" da Administração Pública; 3. O Código de ética do STM e os princípios estruturantes do regime jurídico administrativo; 4. Referências bibliográficas.
1.Introdução: ética, moral e Direito
Para o positivismo jurídico clássico, tradicionalmente opositor do jusnaturalismo, não seria necessário, de forma alguma, que as leis satisfaçam exigências da moral para que sejam válidas (embora frequentemente façam isso). [01] Todavia, a aplicação do Direito requer decisões humanas cuja lógica ou racionalidade implica uma decisão sobre o que o direito "deve ser"; e isso já é um juízo moral. Por este motivo não é possível negar que há uma ligação necessária entre o Direito e a moral. [02] O Direito postula uma fundamentação moral, restando superada a decantada separação entre tais esferas, eis que tal distinção "não se coaduna nem com os discursos constitucionais democráticos, nem com avançadas teorias da interpretação que preconizam a compreensão do Direito à luz de paradigmas pronunciadamente axiológicos." [03]
Juarez Freitas leciona que, exatamente por envolver a Administração Pública em um dos polos, a relação juspublicista reclama ser aperfeiçoada como o objetivo de estimular o reconhecimento de elevados paradigmas éticos, para a construção de um Estado que não acabe por sufocar o que existe de mais elevado e digno no indivíduo e, ao mesmo tempo, um Estado onde a vontade geral não seja uma mera abstração, mas efetivamente consagre paradigmas éticos de correção, lealdade e moralidade. [04] Daí a necessidade de se compreender o comportamento humano e social e, fundamentalmente o Estado, a partir da ética, mormente porque a ciência jurídica nunca deixou de reconhecer a necessidade de se levar em conta as noções que as pessoas têm do bem e do mal, do que é certo e errado, da moralidade e da não moralidade, nas relações pessoais e sociais. O próprio vocábulo ética advém do grego ethos e significa modo de ser ou caráter. Como ciência normativa, a ética rege os princípios da vida humana, sendo conceituada por Adolfo Sanches Vásques como "a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade." [05] É esse mesmo autor quem assinala que o objeto do estudo da ética é a moral, destacando que o conceito de ética e, por consequência, a moral, são relativos, o que vale dizer, ambos caracterizam-se por sua historicidade, variando seus princípios e normas de acordo com a evolução histórica da sociedade. [06]
A tradição filosófica revela que a justiça sempre constituiu o centro da reflexão ética, embora variasse de significação, conforme o contexto histórico, social e cultural da época. [07] Na antiguidade, a justiça apresentava um significado de virtude moral que preside todas as demais virtudes e orienta o homem à convivência com seus semelhantes. Particularmente, a ética aristotélica subordina a ética à política e coloca a justiça no centro do sistema, sendo considerada a maior de todas as virtudes morais e indispensável ao funcionamento de uma comunidade. [08] Para Santo Tomás de Aquino, a justiça também comanda todas as virtudes morais e preside a busca do bem comum na sociedade, todavia, a ética tomista inova em relação à ética aristotélica no ponto em que acrescenta a força da fé, sendo que para o filósofo, o modelo ético humano é iluminado por três virtudes fundamentais da revelação: fé, esperança e amor. [09] Já nas idades moderna e contemporânea, a justiça revela-se como princípio da ordem social sobre o qual se assentam as instituições. Superando a moral das virtudes, a moral kantiana, introduz o Direito aliado ao dever e à necessidade de compatibilizar o exercício da liberdade exterior e sócio-política. É a consagração da ética das normas, a ética do cumprimento da lei moral, dos deveres pessoais e sociais, enfim, uma ética da moralidade. [10] Esse pensamento kantiano, em certa medida, orientou os discursos éticos atuais." [11]
Muito embora Kant não trate da justiça, isto não significa uma lacuna no seu sistema ético, pois a teoria moral do pensador introduz o Direito como um instrumento utilizado para compatibilizar o exercício das liberdades sociais e políticas. A função do Direito é delimitar a liberdade, sendo certo que ele também se define a partir da liberdade. [12] Segundo Henrique Vaz, a filosofia kantiana define "a moralidade como sendo a relação de todas as ações com a legislação por meio da qual e somente por meio da qual é possível um reino dos fins. O dever define-se, então, como a necessidade inerente ao agir dos seres racionais enquanto membros desse reino, de onde lhes advém a prerrogativa da dignidade e o fundamento do respeito pela lei neles imanente." [13] Na ética de Kant, a moralidade subjetiva é regulada por regras práticas de conduta subordinadas ao imperativo categórico, "a lei estabelece a compatibilidade (a moralidade) das liberdades que é o mútuo respeito." [14] Evidencia-se, portanto, que a ética política kantiana nega a política eudaimonística aristotélica. A propósito, o clássico pensamento de Paulo Bonavides assinala que
"... a teleologia jurídica do Estado, na sua formulação absoluta feita por Kant, será sempre inequívoca aspiração da humanidade culta e progressiva, a coroar-se naturalmente no dia em que, tendo o Estado conduzido por suas mãos o ente humano a melhor destino social e econômico, ajudando-o nas sociedades primárias e desamparadas, a levantar-se das condições rudimentares da servidão material, logre aquela ordem justa, de reformação moral do homem, fadada a conciliar a independência política é ética do indivíduo com sua independência econômica." [14]
Por outro lado, Ronald Dworkin refuta a visão de que não existem princípios morais objetivamente identificáveis e de que os argumentos morais se encontrariam apenas nas esferas de subjetividade do sujeito (como classe, raça ou gênero). O autor afirma que este "ceticismo moral", muito na moda, peca por ser inadequado à presente realidade constitucional, cujo sistema é fortemente pautado em princípios ético-jurídicos. [15] Quando da tomada de decisão a respeito de uma norma constitucional deve ser respeitada a sua "integridade", o que afasta a possibilidade de posturas fundadas em uma "moral subjetivista", ou seja, que são lastreadas em convicções particulares. [16]
O fato é que, nos tempos atuais, em que os avanços tecnológicos e científicos fizeram surgir uma globalização excludente que, ao tempo em que aproxima alguns países numa linguagem quase universal, exclui outros, novos e importantes desafios se apresentam. [17] Como decorrência desses grandes progressos científicos e tecnológicos e da intervenção das grandes potências econômicas na ordem política das nações, que são obrigadas a ceder ante o poder do mercado global, [18] assiste-se à descaracterização da ética, que perde seu caráter de justiça. Para não sucumbirem frente aos mega-Estados (grandes macroestruturas econômicas), os chamados países em desenvolvimento têm sua ordem jurídica sacrificada: a ética que antes visava à busca do bem humano cede espaço agora à ética do lucro, que gera opressão e exclusão de pessoas e grupos.
Induvidosamente a civilização ocidental depende das considerações éticas; padrões que intervém como direcionamento da vida, dos comportamentos pessoais e das ações coletivas. Nessa linha, pode-se dizer que a busca da perfeição e da justiça a partir de valores é um desafio inarredável na construção da ética. Os conceitos éticos não podem escapar ao exame atento da filosofia do Direito. [19] Tome-se como exemplo a atual conjuntura política brasileira, em que a sociedade, tem verificado que, no âmbito nas relações políticas, a corrupção e a má-fé atingem níveis dificilmente superáveis. Depara-se com uma situação problemática, onde impera, assim, a máxima maquiavélica segundo a qual para a execução e conservação do poder, todos os fins são lícitos. [20]
2 O Estado, a modernidade e os "fins éticos" da Administração Pública
O agigantamento do Estado moderno, caracterizado pela multiplicação das finalidades que lhe foram reconhecidas como próprias e pela intensificação dos seus poderes, implicou o aumento significativo da intervenção estatal na vida privada dos indivíduos. Em verdade, o Estado é hoje muito mais administrativo que legislativo. [21] A substituição do Estado liberal determinou uma modificação na forma de prestação das atividades estatais, direcionadas agora para o atendimento concreto das necessidades materiais da sociedade, característica do Estado de bem-estar. [22]
As relações entre o Estado e o cidadão sofreram substanciais alterações. Com efeito, a dimensão principiológica da Carta Constitucional acabou por provocar uma reviravolta no território do tradicional Direito Administrativo, inaugurando uma nova era no relacionamento entre a Administração Pública e os cidadãos (servidores e/ou particulares), que não são mais vistos como meros administrados (súditos desprovidos de vontade), mas sim como parte necessária da relação política da qual o outro polo é ocupado pelo Estado. Ainda, a história veio demonstrar que a função administrativa não se restringe à dinâmica burocrática legal. A constante intervenção estatal na vida privada dos indivíduos não pode ser considerada como uma atividade não-fundamental. Daí a constitucionalização da Administração Pública, sendo que é através do exercício da função administrativa que o Estado se revela (liberal ou social, presente ou ausente, eficiente ou ineficiente, ético ou corrupto).
A expansão do poder e a constante intervenção estatal na vida privada dos indivíduos, aliada à complexidade que as relações jurídicas privadas assumiram, não raro, têm demonstrado que a regulação jurídica apresenta-se insuficiente. Acresça-se a isso a situação de absoluta descrença que impera no âmbito das relações políticas, ante a desconfiança dos cidadãos frente ao Poder Público, e percebe-se urgente e necessária a procura pela inserção de conteúdos éticos nos ordenamentos jurídicos. Só assim é possível a construção de um novo modelo de sociedade em que reste garantida aos cidadãos uma vida digna e feliz. [23]
Nesse passo, convém destacar o pensamento de Newton Bignotto que, investigando a fundo as teorizações de Maquiavel, pondera que o divórcio entre a ética e a política não é suficiente para espelhar todo o seu pensamento, pois, em que pese sustentar que o príncipe não necessita possuir todas as qualidades, antes devendo aparentar possuí-las, o pensador florentino não exclui que essas qualidades sejam essenciais ao exercício do poder, ainda que apenas existam de maneira simulada. [24] Bignotto afirma que, no campo político, não existe um lugar do qual se possa proclamar a verdade dos valores, pelo menos daqueles típicos do cristianismo, no entanto, a política depende sim do julgamento dos valores morais, visto que os homens sempre avaliam seus governantes a partir de noções herdadas da tradição. Desse modo, não seria possível sustentar-se uma ética geral, absolutamente divorciada da política, mormente porque, diante das representações que os homens fazem dos atos de seus governantes, tem-se claro que a ética tem assento na vida pública. [25]
Nada obstante, seja na vida política seja na vida privada, a sociedade tem vivido uma mudança dos padrões de moralidade. A este tempo Zygmunt Bauman tem atribuído a característica da "liquidez": de conceitos, de valores, de pressupostos, de princípios, de costumes. [26] A violação dos princípios éticos se dá no âmbito público e no privado, até porque o homem público não tem natureza diferente de qualquer outro homem. Como averba Jesús González Pérez, há uma mesma ética para o homem público e a mulher pública e para o homem privado e a mulher privada, [27] de sorte que não é possível imaginar que a conduta reta e a preservação dos interesses públicos se circunscrevem exclusivamente aos agentes públicos. [28]
Circunscrevendo a ética ao Estado Democrático de Direito e reconhecendo a inevitável interpenetração entre os dois, que torna, a um só tempo, os Poderes Públicos como criadores e súditos dos valores positivados, Romeu Felipe Bacellar Filho enfatiza que
"a ética significa o estudo do agir humano, da conduta humana relacionada ao próprio fim do homem enquanto indivíduo. O Estado Democrático de Direito, assim definido no preâmbulo de nossa Constituição, PE destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida na ordem interna e internacional, com a solução pacífica dos conflitos". [29]
Por sua vez, Jaime Rodriguez-Arana Muñoz concebe a ética "como un elemento fundante, de la dignidad de la persona y aspira a que podamos vivir, todos los hombres, una vida auténticamente humana." [30] Advertindo que a ética pública é um dever imposto não apenas à Administração Pública e seus agentes, mas também a quem quer que se relacione com o Poder Público, o jurista espanhol ressalta que o fim da ética pública é a atuação do servidor público a serviço do bem comum e, portanto, afirma a conduta imparcial, objetiva e íntegra dos funcionários na gestão dos assuntos públicos. Com efeito, o "proprietário" da Administração Pública é o cidadão, de sorte que esta organização administrativa só se justifica se destinada a satisfazer o interesse geral. [31]
Encarecendo a atenção para o fato de que a cidadania e a dignidade da pessoa humana foram elevadas a fundamento do Estado Democrático de direito (artigo 1º, da Constituição Federal de 1988), Bacellar Filho leciona que o interesse perseguido no exercício da função estatal encontra seu princípio e fim no interesse próprio dos cidadãos, tanto numa perspectiva individual quanto coletiva. E, nessa ordem de ideias, leciona que, "constituindo a Administração Pública aparelhamento do Estado voltado, por excelência, à satisfação das necessidades coletivas, a legitimidade do Estado-Administração depende da sua eficiência na prestação dos serviços essenciais para a proteção dos direitos fundamentais." [32] Aliás, é somente com esse fim que se concebe a Administração Pública: um aparelhamento do Estado estruturado e organizado para a promoção do bem-comum. Em última medida, a concretização do valor máximo do sistema jurídico brasileiro: a dignidade da pessoa humana.
Em termos concretos, o Brasil tem dado passos largos no tocante à regulamentação do assunto "ética na Administração". Recentemente, por exemplo, o Superior Tribunal Militar editou o seu Código de Ética. Seguindo uma orientação geral extraída de pressões internacionais e internas pelo aprimoramento das condutas da Administração Pública, cada vez mais são observadas regras inibitórias à manifestação de vontade livre dos agentes. Aliás, não faltam normas relativas aos deveres éticos dos servidores públicos no Brasil e no mundo ocidental contemporâneo. A última década do século XX e esta primeira do XXI retratam um período de intensos debates sobre o assunto e de prolífera produção regulamentar pelas entidades supranacionais, internacionais e nacionais. [33] Como não poderia deixar de ser, tal discussão reforça a ideia de cumprimento de dois princípios fundamentais da Administração brasileira, previstos expressamente no caput do artigo 37 da Constituição de 1988: a moralidade e a eficiência. Mas isso não significa que a atuação ética remeta-se apenas a estes postulados.
E quando se fala em "deveres éticos" é importante considerar a diferença entre uma punição de caráter disciplinar e uma de caráter ético; em que pese, na prática, o comum seja confundir tais diferentes mecanismos sancionatórios. O próprio Código de Ética dos Servidores do Poder Executivo Federal, [34] em sua exposição de motivos, nega tal discrepância, ao tempo que, paradoxalmente, reduz o espectro jurídico-normativo da norma rumo à defesa de sua efetividade por intermédio do "senso social", da "educação, da "conscientização", da "vontade íntima" e da "liberdade". Todavia, a óptica mais adequada à realidade nacional talvez seja aquela que reafirma a diferenciação, inibindo a existência de subterfúgios a serem utilizados pela Administração para justificar a ausência de lei que disponha sobre a matéria. É necessária a atuação do legislador; não basta a boa-vontade do agente administrativo para a criação de normas que se pretendam sancionatórias ou disciplinares.
Ocorre que em muitos casos, no Brasil, os códigos de ética têm sido editados por atos normativos que refletem verdadeiros "regulamentos autônomos", em que pese a não recepção de tal instituto pelo artigo 84, inciso IV, da Constituição. Dispensa-se, descompromissadamente, a atividade legislativa realizada pelos órgãos competentes, a fim de prestigiar a celeridade dos processos de normalização interna dos Poderes Públicos. Tal atuação, evidentemente, pode acarretar sérios debates a respeito das normas, códigos, resoluções e portarias que não tenham a estrita finalidade de regulamentar uma lei preexistente. Veja-se que o próprio sistema constitucional pode ser afrontado quando a Administração pretende penalizar um servidor sem que os "tipos" e as respectivas "sanções" estejam previamente cominadas em lei (artigo 5°, incisos II e XXXIX da CF).
O respeito ao princípio da tipicidade quando em foco os atos administrativos sancionatórios, éticos e disciplinares é uma condição fundamental para a própria credibilidade do sistema. [35] Daí a conclusão de que o princípio da tipicidade tem que ser aplicado ao Direito administrativo em geral (e nos ético-disciplinares em particular). Tendo esse princípio uma dupla função: uma de instituir previsibilidade das ações e outra de limitar a discricionariedade. Professores como Romeu Felipe Bacellar Filho, têm defendido muito esta tese, propondo textualmente de que é preciso que no Direito administrativo seja ampliada a especificação precisa em lei tanto dos tipos quanto das penas (ou seja, os pressupostos da aplicação legal também têm que constar em lei). E mais do que isso, essa tipicidade não pode ser somente uma tipicidade formal, ela tem que ser uma tipicidade também material. [36]
Por consequência, impõe-se a conclusão de que são inconstitucionais quaisquer sanções imputadas a agentes públicos, mesmo após regular processo administrativo, se a penalidade foi criada apenas por via de resolução administrativa e não pode lei específica; vício este do qual padece a pena de censura prevista no artigo 44 do Código de Ética do STM, bem como de todas as várias outras normas semelhantes que vêm sendo editadas pelos Poderes Públicos no Brasil.