A criação do Conselho Nacional de Justiça, através da Emenda Constitucional nº 45/2004, estabeleceu um marco na fiscalização do Poder Judiciário. A criação do sistema de metas de nivelamento; a resolução nº 7/2005, que normatizou a nomeação de cônjuges, companheiros e parentes, a fim de suprimir as práticas nepotistas; e a fixação de pena nos processos disciplinares em face de magistrados, de modo a demonstrar que não há incidência do chamado corporativismo, são exemplos de atividades, exercidas por aquele Conselho, que modificaram a estrutura do Poder Judiciário brasileiro.
As recentes notícias de decisões do Conselho Nacional de Justiça nos processos disciplinares vêm criando polêmica. No dia 23 de fevereiro de 2010, o Conselho aplicou a pena de aposentadoria a 10 magistrados no Estado do Mato Grosso, incluindo o então Presidente do Tribunal de Justiça Estadual e um ex-Presidente, que respondiam por desvio de R$ 1,4 milhão de reais do Tribunal de Justiça daquele Estado.
No dia 20 de abril de 2010, o Conselho Nacional de Justiça decidiu por aposentar uma juíza no Estado do Pará, conhecida manter por 26 dias uma adolescente presa em cela masculina com cerca de 30 homens, na delegacia de polícia do município Abaetetuba.
A pena de aposentadoria, assim como as demais aplicáveis ao magistrado, está prevista na Lei Orgânica da Magistratura, a Lei Complementar federal nº 35:
"Art. 42 - São penas disciplinares:
I - advertência;
II - censura;
III - remoção compulsória;
IV - disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço;
V - aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço;
VI – demissão".
No que se refere à pena de demissão, o mencionado diploma versa as hipóteses para a aplicação dessa pena:
"Art. 47 - A pena de demissão será aplicada:
I - aos magistrados vitalícios, nos casos previstos no art. 26, I e Il
;II - aos Juízes nomeados mediante concurso de provas e títulos, enquanto não adquirirem a vitaliciedade, e aos Juízes togados temporários, em caso de falta grave, inclusive nas hipóteses previstas no art. 56".
Por sua vez, o artigo 26 da Lei Complementar nº 35 assim dispõe:
"Art. 26 - O magistrado vitalício somente perderá o cargo (vetado):
I - em ação penal por crime comum ou de responsabilidade;
II - em procedimento administrativo para a perda do cargo nas hipóteses seguintes:
a) exercício, ainda que em disponibilidade, de qualquer outra função, salvo um cargo de magistério superior, público ou particular;
b) recebimento, a qualquer título e sob qualquer pretexto, de percentagens ou custas nos processos sujeitos a seu despacho e julgamento;
c) exercício de atividade politico-partidária".
Ocorre que a Constituição Federal, garante a vitaliciedade aos magistrados, conforme preceitua o artigo 95:
"Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias:
I - vitaliciedade, que, no primeiro grau, só será adquirida após dois anos de exercício, dependendo a perda do cargo, nesse período, de deliberação do tribunal a que o juiz estiver vinculado, e, nos demais casos, de sentença judicial transitada em julgado;
II - inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII;
III - irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I".
Desse modo, é de simples conclusão que a Lei Maior prevê a vitaliciedade para os magistrados, não tendo sido recepcionada pela Carta de 1988, portanto, a pena de demissão prevista na Lei Complementar nº 35, que só pode ser aplicada aos magistrados que ainda não tiverem adquirido a vitaliciedade.
No âmbito do processo administrativo, portanto, a pena máxima prevista para o magistrado é de aposentadoria compulsória, que vem sendo aplicada pelo Conselho Nacional de Justiça. Em se tratando de crime comum, mediante sentença penal transitada em julgado a pena de demissão pode ser aplicada.
Tramita no Senado Federal a Proposta de Emenda Constitucional nº 89/2003, que visa alterar a incongruência ocorrida pela não recepção do dispositivo constante na Lei Orgânica da Magistratura pela Carta da República.
Por essa proposta, teriam nova redação os artigos 93 e 95 da Lei Maior. A inclusão do inciso VIII-A ao artigo 93, disporá que "o ato de aposentadoria dos magistrados não terá caráter disciplinar" e a inclusão do parágrafo 2º ao artigo 95, permitindo ao magistrado a perda do cargo "por decisão do tribunal a que estiver vinculado, tomada pelo voto de dois terços de seus membros", nos casos de "infração do disposto no parágrafo anterior", "procedimento incompatível com o decoro de suas funções" e "recebimento de auxílio ou contribuições de pessoas ou entidades, ressalvadas as exceções previstas em lei".
Na esteira da PEC 89/2003, é fundamental observar dois dispositivos da Lei federal nº 8.112/90, o regime jurídico dos servidores públicos civis:
"Art. 127. São penalidades disciplinares:
I - advertência;
II - suspensão;
III - demissão;
IV - cassação de aposentadoria ou disponibilidade;
V - destituição de cargo em comissão;
VI - destituição de função comissionada.
Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos:
I - crime contra a administração pública;
II - abandono de cargo;
III - inassiduidade habitual;
IV - improbidade administrativa;
V - incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição;
VI - insubordinação grave em serviço;
VII - ofensa física, em serviço, a servidor ou a particular, salvo em legítima defesa própria ou de outrem;
VIII - aplicação irregular de dinheiros públicos;
IX - revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo;
X - lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio nacional;
XI - corrupção;
XII - acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas;
XIII - transgressão dos incisos IX a XVI do art. 117".
Observa-se que não é facultada ao servidor público a pena de aposentadoria compulsória como penalidade, e que a pena de demissão nem pode ser considerada a mais gravosa: há caso, por exemplo, de cassação da aposentadoria, que, sem dúvida, é uma punição de alta acuidade.
A pena de demissão era aplicada ao magistrado no momento anterior à promulgação da Carta de 1988, haja vista a Lei Orgânica da Magistratura ter sido editada em 1979, não tendo sido apenas o dispositivo específico, portanto, recepcionado pela nova ordem constitucional.
Pode-se alegar que a pena de demissão foi concebida no período do regime militar, ou seja, era conveniente que houvesse uma punição severa ao magistrado pela via administrativa.
Sabe-se que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu a vitaliciedade ao magistrado a fim de permitir a execução, à perfeição, da jurisdição e garantir a independência do Poder Judiciário.
Ocorre que, se aprovada a referida Proposta de Emenda Constitucional nº 89/2003 e retornando ao ordenamento jurídico brasileiro a possibilidade de demissão do magistrado em sede administrativa, esse controle seria feito pelo próprio Poder Judiciário, no caso do texto da PEC, pelo tribunal ao qual o juiz estiver vinculado.
Destarte, a pena de demissão em sede de processo administrativo seria aplicada ao magistrado pelo próprio Poder Judiciário, não havendo, portanto, qualquer interferência na independência daquele Poder e, mais especificamente, na atuação do próprio magistrado, garantindo sua autonomia funcional.
Carece a Proposta de Emenda Constitucional nº 89/2003, contudo, de alteração do inciso primeiro do artigo 95 da Lex Mater, que prevê a vitaliciedade, salvo em caso de magistrado em exercício de suas funções há menos de dois anos e em caso de sentença judicial transitada em julgado.
Se esse dispositivo não for alterado, apenas inserindo na Carta da República o parágrafo 2º que a PEC objetiva, restará a citada Proposta possuidora de vícios de inconstitucionalidade.
Outrossim, a pena de demissão, superior à pena de aposentadoria compulsória, deveria ser aplicada pelo Conselho Nacional de Justiça, o mesmo órgão que tem aplicado a pena de aposentadoria compulsória em diversos casos.
A Lei Maior, com alteração conferida pela Emenda Constitucional nº 45/2004, assim define:
"Art. 92. São órgãos do Poder Judiciário:
I-A o Conselho Nacional de Justiça;"
Conferir a capacidade de aplicação de pena de demissão apenas ao tribunal ao qual o magistrado se vincula, não dando essa faculdade ao Conselho Nacional de Justiça, acarretará em uma errônea subordinação do referido Conselho a qualquer outro tribunal, salvo a opção contida no seu regimento interno de avocar processo administrativo disciplinar. Entretanto, a competência para aplicação da pena de demissão deve ser originária do CNJ.
Em consulta ao regimento interno daquele Conselho, é possível verificar como uma das competências do Plenário:
"Art. 4º Ao Plenário do CNJ compete o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos magistrados, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidos pelo Estatuto da Magistratura, o seguinte:
VI - julgar os processos disciplinares regularmente instaurados contra magistrados, podendo determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas previstas em lei complementar ou neste Regimento, assegurada a ampla defesa;"
Desse modo, a fim de garantir a autonomia do Conselho Nacional de Justiça, a Proposta de Emenda Constitucional deve ser alterada para permitir apenas àquele Conselho a capacidade de aplicação de pena de demissão, dada a sua gravidade, assim como ocorre no caso da aplicação de pena de aposentadoria compulsória, cuja PEC pretende fulminar.
A vitaliciedade tem como fundamento garantir a independência do Poder Judiciário nos seus julgamentos, impedindo a subordinação ou qualquer outro ato que venha a violar o Estado Democrático de Direito e diminuir a autonomia funcional do magistrado.
Contudo, tem se verificado que, sob o manto da vitaliciedade, diversos magistrados têm cometido gravosas infrações não apenas ao próprio Poder Judiciário, mas a toda sociedade.
Retirar a vitaliciedade do magistrado e, desse modo, permitir a aplicação da pena de demissão, inserta na Lei Orgânica da Magistratura, não significa o fim da independência do Poder Judiciário e a coação ao exercício da função do magistrado: ela permitirá que o próprio Poder Judiciário dirima, por exemplo, casos de corrupção e outros atos abomináveis.
O servidor público civil está sujeito à pena de demissão. O magistrado também deve ser, vez que é ser humano, passível de erros e condutas reprováveis, como qualquer um. Cabe ao Conselho Nacional de Justiça a decisão de querer ou não que um agente político da Justiça continue a exercer suas funções. Não há que se comparar o servidor público ao magistrado, mas sim o processo de investidura nos seus cargos: mediante prévia aprovação em concurso público, resguardadas as peculiaridades de cada caso, o que demonstra a dificuldade se alcançar tal posição no serviço público. E, nessa esteira, se um magistrado comete ato falho, prejudicial à sociedade, se comprovada a má-fé, não merece a aposentadoria compulsória.
Discute-se se a aposentadoria compulsória é uma premiação ou uma punição. Há que se entender essa pena, atualmente aplicada pelo Conselho Nacional de Justiça como uma espécie de premiação, haja vista que não há interrupção na percepção dos vencimentos. O magistrado, ora aposentado, poderá iniciar uma nova profissão ainda percebendo os vencimentos quando exercia suas funções.
Em tempos de reforma do Código de Processo Civil e do Código de Processo Penal, sendo este último, dotado de diversos tipos de medidas cautelares como, por exemplo, a suspensão do exercício da profissão, da atividade econômica ou função pública, é fundamental, também, a reforma da impunidade que porventura pode ocorrer quando da ocorrência de um ato gravoso por parte de magistrado.
A iniciativa da Proposta de Emenda Constitucional nº 89/2003 é louvável, porém carecendo de alterações, a fim de que haja a perfeita adequação do magistrado ao crivo do Conselho Nacional de Justiça.