Curioso notar como nosso Sistema de Controle de Constitucionalidade Difuso é capaz de gerar uma gama infinita de decisões judiciais que alimentam as mais acirradas discussões em âmbito tributário.
Uma questão que tem suscitado muita controvérsia é a que se refere aos limites de abrangência do instituto da imunidade previsto no parágrafo terceiro do artigo 155 da Constituição Federal de 1.988.
Recentemente a empresa distribuidora de combustíveis "Esso" obteve decisão, já transitada em julgado, favorável à imunidade de suas operações com base no referido artigo constitucional.
E, embora sua vitória judicial tenha se concluído com a perda de prazo pela União Federal, é fato que a "Esso" passou a gozar dos benefícios da norma imunizadora, liberando-se, vez por todas, do recolhimento daquele tributo.
Por outro lado, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (Segunda Turma), em data ainda mais recente, ao julgar o RE nº 227832-1, referente à pretensão de uma empresa mineradora de ver reconhecido seu direito à imunidade em comento, decidiu pela não aplicação do parágrafo terceiro do artigo 155 da Constituição Federal.
Analisados, porém, os votos proferidos pela maioria vencedora dos Senhores Ministros encontramos, data maxima venia, um enunciado de premissas falsas, em total antinomia à atual Carta Magna.
Tomando como exemplo o voto do então Relator Ministro Carlos Velloso, verificamos que este, apoiando-se em precedente daquela mesma turma sobre questão relativa ao PIS, buscou distinguir o fato gerador da Cofins (faturamento) do fato gerador das operações relativas a energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do país.
Não raro, aliás, nos deparamos com inúmeros julgados nesse mesmo sentido em primeiro e segundo graus.
O primeiro grande equívoco deste raciocínio é a total desconsideração ao que prescreve o artigo 2º da Lei Complementar nº 70/91, onde defini-se como base de cálculo da Cofins a "receita bruta" das empresas, ou melhor, "receita bruta das vendas de mercadorias e de serviços".
Ora, foi o próprio Supremo Tribunal Federal que, em outra ocasião, decidiu que o termo ´faturamento´ corresponde à "receita bruta".
Não encontraremos, porém, a definição de "receita bruta" senão no Direito Privado, mais precisamente no inciso I do artigo 187 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1.976, que cuida das Sociedades por Ações. Reza o mencionado dispositivo que receita bruta se constitui do produto das vendas e serviços.
Nem mesmo com o advindo da Medida Provisória nº 1.724, de 29 de outubro de 1998, e de sua decorrente lei, alterou-se o conceito supra, visto que nitidamente inconstitucional a orientação que manda seja considerada "receita bruta" a "totalidade das receitas" (§1º, art. 3º, M.P. nº 1724/98).
Isto porque o artigo 110 do Código Tributário Nacional, com índole de Lei Complementar, determina que "a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de Direito Privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados o pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias".
Destarte, uma vez já existente definição daquele instituto em esfera de Direito Privado e uma vez que esta definição não se harmoniza com aquela, tem-se como base de cálculo para a exação da Cofins a receita bruta de venda de bens e serviços, nada mais.
Já o Ministro Nelson Jobim, inovando, argüiu que, uma vez que o lucro, tido como hipótese de incidência do Imposto sobre a Renda, é decorrente do faturamento, a imunidade pretendida abarcaria também o Imposto de Renda.
Todavia, não há como acolher tal entendimento, visto que os fatos geradores do Imposto sobre a Renda e da Cofins não se confundem. Muito pelo contrário! Segundo inteligência do Ministro aposentado do STJ, Dr. Francisco Cláudio de Almeida Santos, o primeiro é a renda verificada pelo acréscimo do produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos, que, "no caso da empresa, se traduz no lucro, apurado após o balanço, ato contábil complexo que guarda bastante distância das atividades empresariais desenvolvidas no exercício social, e o fato gerador da Cofins, na espécie, é o produto das operações de venda ou prestação de serviços da empresa"(extraído site do jornal Correio Braziliense).
Outra inexatidão do julgamento refere-se ao raciocínio que culmina por considerar que a imunidade pleiteada atentaria contra os princípios da capacidade contributiva (art. 145, § 1º), da igualdade tributária (art. 150, II) e da universalidade da contribuição social, nos termos do artigo 195 da Constituição Federal.
Neste encadeamento de idéias ter-se-ia por verdadeira a seguinte afirmativa: tendo a Constituição da República conferido à Seguridade Social, como seu postulado primeiro, a universalidade das contribuições para o seu custeio, tornou sem efeito qualquer isenção ou imunidade também prevista em nosso ordenamento jurídico, tal como se eles não pudessem coexistir jamais.
Incompreensível é o teor do referido argumento, haja vista que a maioria das espécies tributárias, atendendo aos fins a que se destinam, também obrigam a todos em geral, em obediência ao princípio da igualdade e da capacidade contributiva.
Assim, se levado na conta de único e possível o procedimento de veridicidade adotado por aqueles eminentes Ministros do STF, não há como não estendê-lo aos demais tipos tributários, para riscar, definitivamente, do ordenamento vigente os institutos da isenção e da imunidade.
Carece totalmente de lógica jurídica a afirmação retro, visto que desprovida de toda e qualquer coerência.
Desta forma, obrigam-nos a aceitarmos como verdade o produto de um encadeamento de falsas premissas.
Michel Foucault, ao expor suas perspectivas sobre o que é a "verdade", lembra que a afirmação de que o Sol girava em torno da Terra, antes da descoberta de Copérnico, devia ser considerada tão verdadeira quanto seu inverso, porquanto fruto histórico de um procedimento de veridição todo próprio para a época.
Contudo, hodiernamente, já não se concebe outra afirmação senão a de que a Terra gira em torno do Sol, haja vista que os procedimentos científicos assim o comprovaram.
No caso em questão também já não podem nos obrigar a acolhermos como verdade a afirmação de que o Princípio da Universalidade e o instituto da Imunidade não podem coexistir.
Cediço o entendimento de que a imunidade é uma exceção à regra e como tal deve ser aplicada. Se a regra manda que todos contribuam para a Seguridade Social e, por outra viés, excepciona as pessoas elencadas no parágrafo terceiro do artigo 155 da Constituição Federal, não há outro caminho exegético, senão a aplicação da imunidade.
Oportuna, no momento, a lição de WALTER BARBOSA CORREIA extraída da citação do tributarista IVES GANDRA MARTINS, in verbis: "Ao desenvolver a atividade de interpretação da norma imunizadora, a natureza e finalidades da imunidade são essenciais, de pronto, afastando a interpretação literal própria das isenções, instituto esse que, até há pouco tempo, confundia-se com a imunidade e vice-versa." (in "Sistema Tributário na Constituição de 1.988", Editora Saraiva, 5ª edição, 1.998, pág. 130).
Trata-se, pois, de norma imunizadora que define a competência tributária de forma negativa, ou seja, fixa a incompetência das entidades tributantes para onerar, com exações, certas pessoas físicas ou jurídicas, seja em função da natureza jurídica, seja porque coligadas a determinados fatos, bens ou situações (ROQUE ANTONIO CARRAZZA in "Curso de Direito Constitucional Tributário", 9ª edição, Editora Malheiros, pág. 399).
Dessarte, soa absurdo aos ouvidos do bom hermenêuta o entendimento de que o constituinte teria posto a salvo da tributação as operações descritas no parágrafo terceiro do artigo 155 da CF para, em outro dispositivo (art. 194), tornar inoperante a imunidade concedida.
Acrescente-se ao rol destes sucessivos equívocos, aquelas decisões judiciais que afirmam que a imunidade em tela livra somente o contribuinte da exigência de "impostos", respaldando-se unicamente na orientação art. 150, VI, da Lei Maior, que trata da imunidade tributária recíproca, dos templos religiosos, dos partidos políticos, das fundações, dos sindicatos, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, dos livros, da imprensa escrita e do papel a eles destinados, e veda a imposição apenas de impostos sobre o patrimônio, renda ou serviços das pessoas jurídicas de direito público e das demais.
As mencionadas decisões parecem esquecer-se de que a imunidade em comento tem suporte no art. 155, § 3º, que, após a redação dada pela EC nº 3/93, assim determinou: À exceção dos impostos de que tratam o inciso II do caput deste artigo e o art. 153, I e II, nenhum outro tributo poderá incidir sobre operações relativas a energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do país. g.n.
Fácil concluir que o citado artigo constitucional não destaca qualquer espécie tributária, apenas fazendo menção ao termo mais genérico.
No tocante à índole tributária da Cofins nem há o que questionar, posto que a atual Constituição pôs fim a todos os debates relativos às contribuições sociais. Também na doutrina o tema foi exaustivamente esgotado, prevalecendo como opinião majoritária o entendimento de que a Cofins e o PIS têm natureza tributária, sendo desnecessária, a esta altura, qualquer explanação a respeito.
O fato é que, inobstante os enganos que se evidenciam na decisão do STF, abre-se um precedente negativo relevante para as inúmeras outras ações que versam sobre o mesmo assunto.
Se realmente restar imutável o raciocínio do Pretório Excelso, teremos no setor de vendas de combustíveis e derivados de petróleo uma situação de total desequilíbrio, uma vez que a "Esso" será a única distribuidora do país a poder praticar suas operações sem a inclusão da Cofins ao preço de seus produtos.
Situação esta que fere inteiramente o Princípio da Isonomia Tributária, onde diversas pessoas colocadas na mesma posição idealizada pela norma, sofrem conseqüências totalmente diversas.