Artigo Destaque dos editores

O princípio da dignidade da pessoa humana e os crimes de sonegação fiscal

Exibindo página 2 de 4
Leia nesta página:

3. NOÇÕES GERAIS SOBRE O CRIME DE SONEGAÇÃO FISCAL.

A Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, não definiu o que seria "sonegação fiscal", razão por que a atividade doutrinária deverá suprir essa lacuna. Alexandre de Moraes e Gianpaolo Poggio Smanio [17] delimitam conceitualmente a sonegação como "a ocultação dolosa, mediante fraude, astúcia ou habilidade, do recolhimento de tributo devido ao Poder Público."

A sonegação fiscal diz respeito ao ato de sonegar, praticado pelo contribuinte no intuito de fraudar à Administração fiscal, ou seja, aquela parte da Administração que se preocupa com a arrecadação de tributos para realização do interesse público.

A conduta do contribuinte consiste em sonegar, que, nos termos do Dicionário da Língua Portuguesa [18], significa:

1. Ocultar, deixando de descrever ou de mencionar nos casos em que a lei exige a descrição ou menção. 2. Ocultar com fraude. 3. P.ext. Ocultar; encobrir; esconder; encapotar.(...) 4. Tirar às ocultas; furtar, surrupiar:(...) 5. Deixar de pagar. 6. Ocultar com fraude, astúcia ou habilidade; dissimular, ocultar, esconder:(...) 7. Eximir-se ao cumprimento de uma ordem.

Nos crimes contra a ordem tributária, a expressão "ordem" compreende a ideia de sistema, organização guiada por princípios e regras jurídicas próprias. Entretanto, o delito praticado pelo particular não afeta a estrutura organizacional, em vez disso, a conduta do contribuinte que deixou de recolher ou pagar tributo à Fazenda Nacional é considerada crime contra a Administração Tributária.

Tendo em vista que os crimes contra a ordem tributária são objeto de estudo pelo Direito Penal Tributário, importa esclarecer a necessidade de serem observados os princípios constitucionais relacionados ao Direito Penal [19], entre os quais, o do julgamento pelo juiz natural, o do devido processo legal, o da ampla defesa e do contraditório, o da presunção de inocência, o da inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos e o da irretroatividade da lei penal mais severa.

Nos termos da Lei n° 8.137 de 1990, verifica-se que o tipo penal somente estará configurado quando reunidos os seguintes elementos: a) ação; b) resultado, isto é, a supressão ou redução do tributo; c) o fim: eximir-se ou deixar efetuar o pagamento do tributo mediante ardil [20].

Inegável, portanto, que o crime de sonegação fiscal possui a natureza jurídica de delito de resultado, pois exige, além da concretização da conduta, a coexistência do resultado e do fim.

O objetivo jurídico da Lei n° 8.137 de 1990 é a proteção da ordem tributária, tipificando como crime as condutas fraudulentas praticadas em desfavor da Administração fazendária e tem como escopo mediato o aumento da arrecadação tributária, satisfazendo o interesse da coletividade, possível em decorrência do combate à sonegação fiscal.

Malgrado a incriminação da fraude fiscal se apresente como instrumento eficaz para o cumprimento da obrigação tributária, cuja transgressão ofende a economia pública, a promulgação da lei não teve, precipuamente, essa finalidade, haja vista o fato de o simples descumprimento da obrigação tributária, por si só, apenas acarretar a imposição de sanção administrativa, como, por exemplo, a aplicação de multa.

Por tal razão, o que enseja o enquadramento da conduta do contribuinte nos crimes de sonegação fiscal, não é simplesmente o contribuinte não haver efetivado o pagamento do tributo. E sim o descumprimento da obrigação tributária por meio de artifícios fraudulentos, induzindo a erro o Fisco [21], sendo imprescindível, para esta última hipótese, a incidência da sanção penal.

Entretanto, diante da possibilidade de existência de cobranças tributárias abusivas, há resistência popular em admitir que as infrações fiscais possam configurar um ilícito criminoso, mas, ao invés disso, toleram-se a ação ou omissão contrárias às leis fiscais como forma de defesa da liberdade do cidadão contras as coações fiscais. [22]

Aliás, a aplicação de pena privativa de liberdade nos crimes tributários, em que pese a natureza coletiva do bem tutelado, o crédito tributário, não deixa de ser associada pelos contribuintes à prisão civil por dívidas, repudiada em nosso ordenamento jurídico.

É indispensável, neste aspecto, a mudança do sentimento popular quanto ao fraudador do Fisco, pois sua conduta traz prejuízos a toda a coletividade.

Mudança de entendimento também deve ter o legislador, uma vez que a lei em vigor possibilita a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo antes de oferecida a denúncia, demonstrando que o interesse público nos crimes contra a ordem tributária resume-se a fins arrecadatórios, sendo o Ministério Público utilizado como instrumento de cobrança de dívidas fiscais, servindo-se da ameaça da sanção penal para coagir o contribuinte ao recolhimento do tributo devido.

Merecem prosperar, portanto, as críticas de Eugênio Pacelli de Oliveira [23]:

Do ponto de vista de uma política criminal que se destine à proteção dos direitos fundamentais – e a gestão de recursos públicos destina-se, em última análise à satisfação de tais direitos -, e tendo-se em consideração o imenso alcance das ações levadas a cabo pelos verdadeiros agentes dos crimes contra a ordem previdenciária e tributária (abstraindo-se dos pequenos e médios empresários que mal e mal dão conta de manter em dia suas obrigações mais elementares e essenciais, como a manutenção de salários e de empregos), a referida legislação é profundamente lamentável e infeliz. Isso, repita-se, em relação a condutas fraudulentas, nas quais se utilizam toda sorte de artifícios para redução quase que completa do pagamento de tributos, em condutas cujo meio empregado, via de regra, é punido na legislação penal comum, caso do estelionato e outras fraudes. Não estamos pugnando pela ampliação do horizonte do Direito Penal. Não se trata disso, em absoluto. Somos partidários de um Direito Penal de intervenção mínima, para salvaguarda de direitos fundamentais. Mas consideramos que as ações aqui mencionadas podem perfeitamente ser objeto de incriminação e reprovação penal, exatamente pela intensidade dos danos sociais dela resultantes.

(...) Mas, que fique claro: não estamos aqui nos insurgindo contra medidas despenalizadoras ou alternativas à pena privativas de liberdade. Essas devem constituir sempre o horizonte fundamental de qualquer política criminal. O que não é razoável é utilizar-se o legislador do Direito Penal para resolver problemas típicos da burocracia administrativa fazendária.

Por fim, cabe ainda destacar uma peculiaridade atinente aos crimes de sonegação fiscal, pois, para que estejam devidamente configurados, segundo entendimento sumulado pelo STF (SV 24), eles exigem a prévia conclusão do processo administrativo fiscal.

Mas qual a finalidade desempenhada pelo processo administrativo no âmbito dos crimes de sonegação fiscal?


4. A FINALIDADE E IMPORTÂNCIA DO PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL.

Temas que sempre guardam atualidade são as crises, de âmbito nacional ou internacional, acentuando o déficit público, quando, em consequência, os Estados buscam combatê-las, intensificando a arrecadação das receitas tributárias, facilitando a ocorrência de tributações inconstitucionais ou a eliminação do direito de defesa do contribuinte em face de atos arbitrários.

Costuma-se falar em épocas de absolutismo fiscal, visando à arrecadação de receitas, objetivo sobreposto, inclusive, ao direito de defesa do contribuinte, em prejuízo ao Estado Democrático de Direito, assegurador pleno de tal direito.

Na realidade, por força constitucional, toda vez que existir divergência de interpretação entre Fisco e contribuinte, haverá espaço para o processo administrativo tributário, instrumento de acertamento da relação tributária, assegurado o contraditório e a ampla defesa, sem qualquer tipo de limitação.

Quanto à questão terminológica, é mister ressaltar o entendimento majoritário em associar a expressão "processo" ao exercício da função jurisdicional – atribuição exclusiva do Poder Judiciário – e reservar a palavra "procedimento" para o modo de atuar da Administração Pública nos atos de aplicação do direito, como, por exemplo, para exprimir atuação processual nos atos de administração tributária.

Os atos emanados do poder estatal são concretizados através de procedimentos, maneiras pelas quais se produz o exercício das funções estatais, são as formas da atuação estatal. Enquanto procedimento é expressão da transformação de poder em ato, o processo, que é uma espécie de procedimento, é o modo de desenvolvimento de composição de litígios.

O Poder Público só realiza sua função, manifesta a vontade funcional, cria ou aplica a lei, segundo procedimentos juridicamente regulados (procedimento stricto sensu). Mas, em alguns casos, o procedimento ganha conotação diversa e traduz um autêntico processo, como é o caso dos procedimentos administrativos tributários, por força do art. 5º, inciso LV, da Carta Magna.

O procedimento em sentido estrito caracteriza-se pela sucessão ordenada de atos realizados perante o sujeito ao qual compete a edição do ato final e consiste na transformação de poderes para a satisfação dos fins da Administração [24].

Na função administrativa, o procedimento é sua manifestação mais típica, porém o processo, no âmbito da Administração, vem ganhando mais espaço, pois o princípio da igualdade exige a simetria de posições entre as pessoas envolvidas na relação jurídica entre Estado e indivíduo.

A Constituição Federal, ao exigir o processo administrativo, qualifica-o como procedimento com participação dos interessados no ato final, em contraditório e ampla defesa, quando existente controvérsia decorrente de direitos sujeitos à violação pelo ato administrativo editado ou de acusação ao particular.

As controvérsias verificadas na esfera administrativa podem envolver Administração [25] e administrados ou apenas estes, em situação de controvérsia entre si, situados perante a Administração Pública, a quem incumbe decidir o litígio.

E qualquer pessoa, física ou jurídica, pode figurar como acusado na via administrativa, bastando que o Poder Público atribua-lhe determinada conduta, sujeita à aplicação de penalidades, a exemplo da punição por infração à legislação tributária.

O processo administrativo é o meio adequado à solução de conflitos entre as partes interessadas e, nas situações em que se discute o cumprimento de obrigação tributária, fica assegurado ao contribuinte o respeito ao seu direito de defesa.

Quando a Constituição assegura o processo administrativo fiscal ao contribuinte, garantindo a ampla defesa e o contraditório, veda-se qualquer tipo de limitação aos recursos que lhe são inerentes e aos demais meios indispensáveis à ampla defesa, como forma de legitimação da relação jurídica tributária entre Fisco e contribuinte.

O poder tributante, ao adotar obrigatoriamente o processo administrativo fiscal, coíbe quaisquer abusos praticados na arrecadação de receitas tributárias, com respeito aos princípios e diretrizes constitucionais que resguardam o contribuinte.

O acerto da relação tributária, desenvolvido administrativamente, depende da realização de um conjunto de atos praticados tanto pelo Fisco, quanto pelo contribuinte, com a finalidade de ajustar os interesses conflitantes.

Ressalte-se que o Estado não pode criar empecilhos ao alcance da pacificação social pela via administrativa, mas, pelo contrário, deve fomentar a composição de interesses por esse meio e o contribuinte tem seu direito subjetivo ao contraditório e à ampla defesa assegurados pela Constituição.

Afinal, os direitos sociais e individuais, que encontram fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, compõem um dos fins da instituição do Estado Democrático, conforme delineia o preâmbulo [26] da Carta Constitucional:

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

(...) instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional com a solução pacífica das controvérsias (...)

Percebe-se, pois, já no preâmbulo constitucional, o incentivo à solução pacífica dos litígios. Ademais, a composição do conflito tributário, por meio do processo administrativo, quando respeitado o devido processo legal, facilita a aceitação pelo contribuinte da decisão final administrativa, ensejando a pacificação social de modo mais célere, com a dispensa da via judicial.

A processualização de todas as atividades de direito público é fenômeno recente e coaduna-se com o Estado Democrático de Direito, assegurando ao indivíduo, nas suas relações com o Estado, a existência de processo com efetiva observância e proteção aos seus direitos fundamentais.

Ademais, a Administração Pública, no seu modo de atuar, inclusive nas atividades de exigibilidade, fiscalização e arrecadação tributária, obedece aos princípios norteadores de sua conduta, de natureza explícita, como a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, além de outros implicitamente previstos, quais sejam, a razoabilidade, proporcionalidade e motivação.

E, como a Constituição cercou os procedimentos no âmbito da Administração Pública das garantias fixadas na esfera judicial, pode-se sustentar a equiparação do processo administrativo ao judicial, com efeito vinculante das decisões em processos administrativos tributários para a própria Administração.

Com a possibilidade de a atividade administrativa aplicar o direito aos casos concretos, a Administração também preserva e mantém a ordem jurídica, surgindo o processo administrativo direcionado à justiça e à pacificação social, escopos comuns ao processo judicial.

Nessa linha de raciocínio, pode-se distinguir a administração ativa e a judicante, naquela o interesse finalizado é o público, como ocorre nos atos de administração tributária, voltados à arrecadação; enquanto nesta, o interesse final é o resguardo e a preservação da ordem jurídica ameaçada ou lesada por ato da Administração pública, mas que preserva sua natureza administrativa diante da possibilidade de revisão judicial.

Demonstrou-se, portanto, a finalidade e importância do processo administrativo fiscal, no qual são assegurados todos os direitos inerentes à dignidade da pessoa humana, pois a Administração apenas pode exigir tributos ou aplicar penalidades, por infração à legislação tributária, assegurando ao contribuinte o instrumento processual adequado: o regular processo administrativo fiscal.

Desse modo, nos casos de controvérsia, conflitos de interesses ou situação de acusados na via administrativa e em todos os atos da administração tributária que afetem direitos dos contribuintes, ainda quando não sejam relativos ao acertamento da relação jurídica tributária, assegura-se ao contribuinte o contraditório e a ampla defesa.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Sílvio Ricardo Gonçalves de Andrade Brito

Procurador Federal,lotado na procuradoria geral federal e com atuação junto aos Tribunais Superiores

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRITO, Sílvio Ricardo Gonçalves Andrade. O princípio da dignidade da pessoa humana e os crimes de sonegação fiscal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2504, 10 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14827. Acesso em: 18 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos