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O princípio da dignidade da pessoa humana e os crimes de sonegação fiscal

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5. AS JUSTIFICATIVAS TÉCNICAS PARA INDISPENSABILIDADE DA CONCLUSÃO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL.

Pelo exposto no capítulo anterior, é inegável a importância do processo administrativo nos crimes de sonegação fiscal, pois impede abusos cometidos por autoridades administrativas, figurando-se como proteção contra eventuais condutas arbitrárias.

A doutrina tem se posicionado e lutado para que o alcance da expressão "tributo" existente na lei seja entendida como tributo devido. Realmente, é extremamente relevante notar nos tipos penais de sonegação fiscal o conceito jurídico do que seja tributo.

Afirmam os estudiosos sobre o tema que não pode ser considerado sujeito ativo do crime de sonegação fiscal o contribuinte que age com a convicção de que não havia tributo, mas exigência legal abusiva e ilegal. Portanto, para tais crimes, é indispensável o dolo de fraudar tributo devido para restar completo o tipo penal.

Só haveria interesse em se utilizar de ardil para afastar a cobrança legal, ou seja, o tributo efetivamente devido. Dessa maneira, ainda que houvesse a fraude, não ocorreria o referido crime, pois, além de ser um crime material, a fraude não afetaria o bem jurídico principal protegido pela Lei, qual seja, a arrecadação de tributos pelo Estado.

Seria inafastável, portanto, a existência da dívida tributária, ou seja, aquele apurado pela Administração Pública, que, após processo administrativo no qual se discute a própria existência do crédito tributário, manifesta-se pela subsistência do tributo.

Não se poderia excluir o direito de o contribuinte questionar a validade jurídica da exação, pois constituiria hipótese absurda condenar alguém previamente pelo crime de sonegação fiscal, vindo depois o Judiciário declarar a inconstitucionalidade ou ilegalidade da referida exação.

Para tal corrente, condiciona-se o recebimento da denúncia, nos crimes de sonegação fiscal, à prévia definição, pela autoridade administrativa competente, da existência de tributo devido. E, somente após decidida a questão de ser ou não o tributo devido, poderia ocorrer o início da ação penal, ficando ela prejudicada caso se torne definitivo o entendimento pela invalidade da exação.

Ademais, se é possível a extinção da punibilidade quando o agente promove o pagamento do tributo antes do recebimento da denúncia (art. 34 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995), não seria razoável exigir que o contribuinte, a fim de não se submeter à possível persecução penal, seja compelido à renúncia ao direito de impugnar o lançamento, por meio do procedimento cabível, mediante prévio pagamento do tributo, sob pena de violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa.

Somente não existe consenso, dentro dessa corrente doutrinária, quanto à natureza jurídica do condicionamento administrativo. Tratar-se-ia de condição de procedibilidade, questão prejudicial ou condição objetiva de punibilidade?

5.1. O término do processo administrativo como questão prejudicial.

A questão prejudicial [27] é um impedimento ao desenvolvimento regular do processo penal e verifica-se quando a sua conclusão tem influência sobre a decisão de questão principal discutida nos autos. Julio Fabbrini Mirabete [28] bem delimita os seus contornos ao afirmar que:

A questão prejudicial condiciona a questão prejudicada; a prejudicada está irrecusavelmente subordinada à prejudicial. Há uma dependência lógica entre as duas questões e essa dependência explica o porquê de a prejudicial ser decidida antes da prejudicada. A doutrina, aliás, considera como elementos essenciais da prejudicialidade: a) a anterioridade lógica (a questão prejudicada depende, logicamente, da prejudicial); b) a necessariedade (essa dependência é não apenas lógica, mas também essencial); c)a autonomia (a possibilidade de a questão prejudicial ser objeto de processo autônomo, distinto daquele em que figura a questão prejudicada).

Visto sob esse ângulo, o processo administrativo seria indispensável ao julgamento final na ação de sonegação fiscal, mas não impediria o curso da ação penal, pois a decisão final da ação envolvendo o crime de sonegação fiscal somente seria sobrestada até que ocorra a deliberação definitiva na via administrativa sobre a questão do tributo devido.

A questão prejudicial poderá ser obrigatória ou facultativa, nos termos dos arts. 92 e 93 do Código de Processo Penal, havendo questão prejudicial obrigatória quando a decisão sobre a existência do crime depender do reconhecimento estado civil das pessoas.

Por outro lado, a questão prejudicial facultativa se observa quando o reconhecimento da infração penal dependa de decisão de qualquer outra questão que não seja relativa ao estado civil das pessoas, da competência do juízo cível e se neste houver sido proposta ação para resolvê-la.

Na primeira hipótese, o juiz criminal deve suspender o processo e, na segunda situação, ele poderá, desde que a questão seja de difícil solução e não verse sobre direito, cuja prova a lei civil limite.

Em ambos os casos, a prejudicialidade refere-se à questão de direito material, diversamente da condição de procedibilidade da ação penal, que possui caráter nitidamente processual.

5.2. A decisão final administrativa como condição de procedibilidade.

No tocante à condição de procedibilidade, ela refere-se ao preenchimento de determinadas e específicas condições para o exercício da ação penal, como, v.g, a representação ou a requisição nos crimes de ação penal pública condicionada. Dessa forma, ação penal só poderia ser exercida após a conclusão do processo administrativo, sobrestando o jus persequendi do Parquet.

Na Espanha [29], o processo penal tributário reconhece como condição de procedibilidade a representação de representantes da Fazenda ao Ministério Público, nos seguintes termos:

Por no poder constituir autónomamente objeto de um proceso extrapenal, la jurisprudencia del TS, respecto de la denuncia de los Delegados de Hacienda Pública (...) ha entendido que tal denuncia constituía una condición objetiva de perseguibilidad y carecía del carácter prejudicial pues, que en absoluto se establece en dichos preceptos una cuestión prejudicial administrativa, ya que en ningún sitio se dice que previamente a la actuación judicial es preciso que las actuaciones administrativas hayan adquirido firmeza y no son cuestiones prejudiciales jurisdiccionales.

Ausente a condição de procedibilidade, a ação penal não tem início, de forma que o Ministério Público apenas poderá oferecer a denúncia após a conclusão da via administrativa, confirmando que a fraude visava ao não-pagamento do tributo devido.

Exige-se, então, a deliberação final no processo administrativo para constituição do crédito tributário, rejeitando-se denúncias oferecidas antes da conclusão final administrativa, sem haver o curso do prazo prescricional durante o período de trâmite do processo administrativo.

5.3.Deliberação final administrativa como condição objetiva de punibilidade.

Outra posição também suscitada é a que reconhece na deliberação final do processo administrativo uma condição objetiva de punibilidade, pois se exige o encerramento do procedimento administrativo fiscal para constituição do crédito tributário, rejeitando-se denúncias oferecidas antes da conclusão final administrativa, sem haver o curso do prazo prescricional.

É interessante perceber que, apesar de não reconhecer a natureza jurídica de condição de procedibilidade, da mesma forma, não poderão ser recebidas denúncias antes da conclusão do processo administrativo.

A punibilidade normalmente é estabelecida considerando razões de política criminal, exigindo o aperfeiçoamento de elementos ou circunstâncias não encontradas na descrição típica do crime e exteriores à conduta. Tais circunstâncias independem para serem consideradas como condições objetivas para punibilidade, da cobertura do dolo do agente. Constitui-se de acontecimento futuro e incerto, sendo exterior ao tipo e, portanto, ao crime.

Pelo exposto, percebe-se que o condicionamento da ação penal à prévia conclusão do processo administrativo foi analisado apenas sob o ponto de vista estritamente objetivo, considerados os institutos de direito processual penal, sem que fosse, em algum momento, observada a proteção aos direitos fundamentais do homem.


6. RELEITURA DO PROBLEMA CONSIDERANDO O VALOR FUNDAMENTAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.

Como visto, no processo administrativo fiscal, assegura-se ao contribuinte o direito de contestar a exação imposta, com o objetivo de afastar a elementar do tipo de sonegação fiscal, qual seja, o tributo devido. A certeza jurídica quanto à legalidade do tributo é imprescindível ao ajuizamento da ação penal.

Na esfera administrativa, devem ser asseguradas, da mesma forma que ocorre no processo judicial, todas as garantias inerentes ao devido processo legal, tal como a amplitude de defesa.

A avaliação sobre a natureza jurídica da necessidade de prévia conclusão do processo administrativo para recebimento da denúncia nos crimes de sonegação fiscal sempre esteve adstrita a aspectos técnicos do direito processual penal, sem que o estudo fosse ampliado sob a perspectiva da dignidade da pessoa humana.

Partindo-se da premissa de que o homem é sujeito titular de direitos no âmbito da relação jurídica penal e processual penal, como decorrência de sua dignidade, não se pode pretender que ele ocupe uma posição de objeto das investigações e muito menos seja suprimido o seu direito de participar ativamente, exercendo todos os seus direitos, no processo administrativo fiscal.

Afinal, é possível que o contribuinte consiga afastar a cobrança indevida ainda na via administrativa, resguardando-se dos efeitos nefastos do início de uma ação penal em seu desfavor. Sobre a imprescindibilidade da conclusão do processo administrativo, Guilherme de Souza Nucci [30] afirma que:

(...) é fundamental haver a finalização do procedimento administrativo para verificar se há, efetivamente, débito a pagar e, conseqüentemente, sonegação ou apropriação indevida, para que se possa dar início à ação penal. Não fosse assim, poderia ocorrer a paradoxal situação de concretização de um processo-crime ao mesmo tempo em que o setor administrativo declare a regularidade dos pagamentos dos tributos.

É bem verdade que, no processo judicial, os direitos e garantias do acusado gozam de proteção ainda mais intensa, todavia isso não implica dizer que o contribuinte pode ser despojado da defesa prévia no processo administrativo, com prioridade da via judicial, porque o simples ajuizamento da ação penal já provoca ofensa à dignidade do acusado, com repercussões negativas no seu patrimônio moral e no seu convívio social [31].

Ainda que muitas vezes esquecido, o processo penal garantista serve para o "resgate da dignidade da pessoa humana, a elevação do espírito humano, o respeito à pessoa humana."[32]

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Os direitos do acusado devem ser respeitados no âmbito processual e extraprocessual, já que é função do Estado resguardar os interesses e direitos individuais. E, na situação em exame, a materialidade somente restará confirmada com a conclusão do processo administrativo fiscal, com ampla participação do contribuinte, após o que poderá subsistir o injusto a autorizar o início da ação penal, quando novamente será oportunizado o direito de defesa do indivíduo.

Compatibiliza-se a exigência de conclusão do processo administrativo para exercício da ação penal com a necessidade de justa causa para exercício do direito de ação, que impõe, quando da instauração do processo, elementos probatórios mínimos que justifiquem a sujeição do indivíduo ao processo penal.

A justa causa exige, para ajuizamento de ação penal, lastro mínimo de prova ante as repercussões negativas do indivíduo submetido ao processo penal, sendo atingido o seu estado de dignidade diante das repercussões da ação penal.

E, malgrado parte da doutrina a considere como quarta condição para exercício do direito de ação [33], há quem defenda, como Rogério Sanches e Ronaldo Batista Pinto [34], que a justa causa compõe, ao lado da utilidade, um dos elementos do interesse de agir:

b) interesse de agir: para que se proponha a ação penal, se exige um mínimo de prova razoável para sustentar o pedido, o que lhe confere justa causa. Deve se demonstrar, assim, já na inicial, a ocorrência do crime e pelo menos indícios de quem é o seu autor. Esses requisitos, quando presentes, dão idoneidade ao pedido, o que não significa dizer que a pretensão será acolhida ou não, pois tal análise não é feita no momento em que recebida a denúncia ou queixa e sim ao ser proferida sentença. Ausente a justa causa, resta configurado um constrangimento ilegal, passível de ser reparado por meio de habeas corpus (art. 648, I). (parte dos grifos não constam do original)

Ademais, a exigência de justa causa não desequilibra a paridade de armas entre acusação e defesa, pois somente de modo aparente mostra-se como tratamento benéfico ao acusado, mas, na realidade, não o é, tendo em vista que, no caso de rejeição de denúncia por ausência de justa causa, são preservados os interesses persecutórios, permitindo-se novo ingresso em juízo após colheita de novas provas. Ao contrário, fosse recebida a peça acusatória e seguisse seu curso normal, ao final, seria imposta a absolvição penal.

A solução da questão do condicionamento da ação penal à decisão final administrativa deveria ter analisada sob a ótica da dignidade do acusado, de respeito ao seu status de liberdade e dos meios que possui para preservá-lo.

Subtrair o regular curso do processo administrativo, com imediato ingresso da ação judicial com base em elementos colhidos em inquérito policial, viola o direito de ampla defesa do acusado, já que somente restaria a via judicial para produzir as provas em favor de sua inocência.

Observe-se, porém, que a instância administrativa apenas condiciona a judicial, a fim de melhor resguardar a própria dignidade do indivíduo, já que o que está em jogo é a própria liberdade do indivíduo, que poderá ser objeto de persecução penal.

Além disso, figurar no polo passivo da relação jurídica processual já acarreta consequências negativas ao acusado, porque, no âmbito de suas relações sociais, já será vítima de desconfiança ou, inclusive, excluído de alguns círculos de seu convívio. Obviamente tais efeitos não decorrem de determinação legal, mas são fruto da inegável reação social, que, por si só, constitui uma antecipação da pena eventualmente aplicada.

Ademais, a garantia de um lastro mínimo de prova como justa causa para a ação penal impõe a prévia conclusão do processo administrativo fiscal, no qual será apurada, uma das elementares do tipo do crime de sonegação fiscal, isto é, o tributo devido.

De mais a mais, como é possível a extinção da punibilidade pelo pagamento, o ajuizamento de ação penal previamente à conclusão do processo administrativo consistirá em meio coercitivo para forçar o contribuinte ao pagamento, ainda que ilegítimo, a fim de se resguardar dos efeitos deletérios de responder a uma ação penal. A respeito, as palavras de Hugo de Brito Machado [35]:

Admitir-se a ação penal por crime de supressão ou redução de tributo, sem que a autoridade administrativa competente tenha dito existente o próprio objeto do cometimento ilícito, é excluir o direito do contribuinte de ter apurada na via própria a existência da relação tributária, e feita a sua correspondente quantificação econômica. Sobretudo agora, quando o pagamento do tributo, antes da denúncia, extingue a punibilidade, é evidente que o contribuinte tem o direito de ter regularmente apurada a existência, e determinado o valor do tributo, antes da denúncia, para que possa, se quiser, exercitar o seu direito de extinguir a punibilidade, pelo pagamento.

Admitir-se, portanto, a ação penal, antes da decisão definitiva da autoridade administrativa, afirmando a existência, e determinando o montante, do tributo, é admitir a ação penal como verdadeiro instrumento de coação para compelir o contribuinte ao pagamento de tributo indevido. Todos sabem dos gravames, sobretudo no plano moral, que o envolvimento em uma ação penal representa. Não é difícil concluir-se, portanto, que o contribuinte, em face da ameaça de denúncia criminal contra ele, sentir-se coagido a pagar o tributo, ainda que flagrantemente indevido.

Como ninguém ignora as freqüentes investidas do Fisco, contrariando as leis e a Constituição, buscando suprir os cofres do Estado sempre deficitário, é evidente que a ameaça da ação penal, antes mesmo que a autoridade administrativa decida a respeito da impugnação feita pelo contribuinte a um auto de infração, constitui forte e inadmissível instrumento de coação, que contraria flagrantemente a garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa no processo administrativo fiscal.

Desse modo, somente quando efetivamente constituído o crédito tributário, poderá o Estado instaurar a ação penal, para que não sejam afrontados os direitos fundamentais da pessoa, que lhe asseguram o direito ao contraditório e à ampla defesa e de não ser privado de sua liberdade ou seus bens, sem o devido processo legal também no processo administrativo.

Ressalte-se que o ser humano é o centro do ordenamento jurídico pátrio e todas as normas, sua interpretação e integração, pressupõem a realização do ser humano. Somente com o resguardo dos seus direitos fundamentais, será possível proporcionar ao homem uma vida com dignidade [36].

É a dignidade da pessoa humana que garante a inviolabilidade da vida humana, com o consequente respeito à sua integridade física e psíquica e às condições de liberdade e igualdade, além de exigir o fornecimento dos pressupostos materiais mínimos.

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Sobre o autor
Sílvio Ricardo Gonçalves de Andrade Brito

Procurador Federal,lotado na procuradoria geral federal e com atuação junto aos Tribunais Superiores

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRITO, Sílvio Ricardo Gonçalves Andrade. O princípio da dignidade da pessoa humana e os crimes de sonegação fiscal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2504, 10 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14827. Acesso em: 18 abr. 2024.

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