Sumário: 1. Introdução. 2. Atividades Sindicais. 2.1. Delimitação. 2.2. Funções sindicais. 2.3. Atuação das organizações sindicais. 3. Abuso de Direito. 3.1. Definição. 3.2. Abuso de direito como instituto distinto de ato ilícito, de ato emulativo, de fraude à lei e de colisão de direitos. 3.3. Teorias subjetiva, objetiva e mista. 3.4. Requisitos. 3.5. Abuso na legislação brasileira. 3.6. Critérios para a verificação do abuso do direito. 3.6.1. Desproporcionalidade. 3.6.2. Princípio da boa-fé. 3.6.2.1. Funções da boa-fé objetiva. 3.6.3. Função social. 3.6.4. Função econômica. 3.6.5. Bons costumes. 4. Abuso do Direito Sindical. 4.1. Abuso do direito sindical. 4.2. Casuística. 4.2.1. Cláusulas anti-sindicais. 4.2.2. Cláusulas coletivas abusivas. 4.2.3. Desconto de contribuições sindicais. 4.2.4. Abuso do direito de greve. 4.2.5. Atividades sindicais abusivas durante a greve. 4.2.6. Abuso na organização sindical. 4.3. Efeitos da abusividade. 4.4. Controles da abusividade. 5. Conclusão. 6. Bibliografia.
1. Introdução
Visa o presente trabalho um estudo acerca das atividades sindicais e do abuso de direito sindical.
Considerando-se a extensa dimensão do tema ora tratado, analisaremos, en passant, o que sejam as atividades sindicais, depois trataremos do abuso de direito, e, por fim, faremos um corte metodológico para restringir o nosso estudo ao abuso do direito sindical.
Em que pese haja na doutrina poucos trabalhos sobre o abuso do direito sindical, é certo que, na prática, aparecem inúmeras situações que se configuram como abusivas, seja por parte dos empregadores, ao buscarem a inserção, nos instrumentos normativos, de cláusulas prejudiciais aos trabalhadores, seja por parte destes ou de seus sindicatos, que, através de instrumentos de ação operária direta, inclusive da greve, eventualmente se excedem no exercício dos seus direitos.
Ao final do trabalho, como não poderia deixar de ser, apresentaremos alguns casos concretos, de molde a tornar mais claro o que seja o abuso do direito sindical, e finalizaremos com as nossas conclusões pessoais.
2. Atividades sindicais
Segundo Alfredo Ruprecht, a atividade sindical tem-se desenvolvido sobre dois parâmetros, ou melhor, seguindo duas orientações bem definidas: uma de caráter sindical e outra de índole política. Para o citado doutrinador, o sindicato persegue, portanto, dois fins: um imediato, de tipo realista, que se refere diretamente às condições de trabalho e de vida dos trabalhadores, através da modificação da legislação vigente, para que favoreça ainda mais a classe trabalhadora, com caráter nitidamente econômico; e outro mediato, de tipo predominantemente ideológico, com grande conteúdo político, que tende a modificar as estruturas econômicas e jurídicas no âmbito nacional e internacional (Cf. RUPRECHT, 1995, p. 57).
Neste trabalho nos limitaremos a esquadrinhar as atividades sindicais de caráter sindical, que são as que nos interessam, e deixaremos de lado a análise das atividades de natureza política. Portanto, doravante, quando nos referirmos a atividades sindicais, estaremos tratando daquelas de índole sindical.
2.1. Delimitação
As atividades sindicais, conforme delineadas por Brito Filho, compreendem "o estudo das funções cometidas às entidades sindicais e às pessoas e grupos com atuação no campo das relações coletivas de trabalho, com destaque para a contratação coletiva", e a "atuação das organizações sindicais (...) quando da utilização dos meios de solução dos conflitos coletivos, bem como quando do uso dos instrumentos de ação sindical direta,". Dentro das atividades sindicais estão incluídas, também, "as atividades que são desenvolvidas pelas, genericamente falando, organizações sindicais, sendo o sindicato, em sentido estrito, a principal delas," (BRITO FILHO, 2000, p. 161).
Vê-se, pois, que as atividades sindicais englobam a gama de atribuições postas sob a cura das organizações sindicais, inserindo-se nesse rol, em síntese:
1) as funções acometidas às entidades sindicais; e
2) a atuação de referidas organizações.
2.2. Funções sindicais
Quanto às funções sindicais, os autores tratam-nas de modo diferenciado, alguns as denominando ‘funções’, outros ‘poderes’, e, ainda, há aqueles que as nomeiam ‘prerrogativas’.
Ruprecht, citando Orlando Gomes e Gottschalk, subdivide as funções dos sindicatos, às quais chama de ‘poderes’, em classes, a saber: poderes de representação dos interesses gerais da profissão; poderes de representação dos interesses individuais dos associados; poderes de representação diante do empregador ou da associação profissional que o representa; e poderes de impor contribuições. Contudo, acrescenta aos quatro poderes mencionados, os subsídios a trabalhadores parados, além do "o direito de oferecer cursos de ensino profissional, de cultura geral, fundar museus, bibliotecas, cooperativas de consumo, quer dizer, tudo quanto possa contribuir, de uma maneira ou de outra, para a melhoria da categoria profissional." (apud RUPRECHT, 1995, pp. 173-175).
Amauri Mascaro Nascimento, em seu Compêndio de Direito Sindical, pp. 252-256, assevera que, embora haja divergências sobre as funções que ao sindicato devem ser permitidas, são reconhecidas às organizações sindicais as funções de representação e a negocial, sendo controvertidas as demais (funções assistencial, parafiscal e política).
De fora a parte a questão da nomenclatura, bem se vê que a principal prerrogativa do sindicato consiste na representação, lato sensu, de suas bases, que se caracteriza como autêntico poder, compreendendo as funções de falar e agir em nome da categoria e de defender os interesses dos seus representados, no plano da relação de trabalho, e até mesmo, em plano social mais largo.
O poder de representação abrange várias dimensões: a privada, que se confunde com a função negocial ou regulamentar, em virtude da qual são entabulados os diplomas negocias coletivos de trabalho; a pública, em que o sindicato busca dialogar com a sociedade civil, na procura de suporte para suas ações; a administrativa (função de colaboração), em face da qual o sindicato procura relacionar-se com o Estado, com o escopo de ver solucionados problemas trabalhistas em sua área de atuação, bem como no intuito do desenvolvimento da solidariedade social; e a judicial (função de postulação processual), mercê da qual o sindicato atua na defesa dos interesses dos seus filiados e da categoria por ele representada, seja através de dissídios individuais, na condição de substituto processual, seja por meio de dissídios coletivos, instaurados com a finalidade de resolver conflitos jurídicos ou de interesses econômicos.
Como integrante da função de representação lato sensu, temos a função negocial, de caráter privado, em razão da qual ao sindicato são outorgados poderes para se colocar em diálogo ou confronto com os empregadores ou sindicatos empresariais, em vista dos interesses da categoria, podendo ajustar diplomas negociais coletivos de trabalho, compostos de regras jurídicas que irão reger os contratos de trabalho. Em relação aos trabalhadores, a função negocial coletiva é exclusiva das entidades sindicais, no sistema jurídico brasileiro.
Outra função importante é a assistencial, que deve ser entendida como a atribuição conferida pela lei ou pelos estatutos para que o sindicato preste serviços aos seus associados. Nesse sentido, vejam-se os arts. 477, 500, 513, 514 e 592, da CLT, nos quais estão arroladas as diversas atividade assistenciais prestadas pelo sindicato aos seus representados, a exemplo de serviços de homologação administrativa das rescisões contratuais, de colocação no mercado de trabalho, de qualificação profissional, de educação, saúde, lazer e jurídicos. Trata-se, como visto, de prerrogativas que podem ser assumidas pela entidade sindical, não importando, de modo algum, deveres impostos, pois nesta extensão o texto consolidado não foi recepcionado pela Constituição Federal.
Outrossim, desfruta o sindicato das funções econômicas, que podem ser diferenciadas em: função econômica em sentido amplo, também designada como fonte de custeio, compreendendo todos os meios de que se serve o sindicato para a satisfação das suas necessidades, incluindo-se nesse conceito, as funções de arrecadação, mediante a qual pode aquela entidade impor contribuições sindicais, além de cobrar taxas sindicais e mensalidade associativas; e função econômica em sentido estrito, que diz respeito ao desempenho, pelo sindicato, de atividades nos setores comercial, industrial e de serviços. Quanto a esta última, malgrado a CLT vede o seu exercício, referida circunstância não se coaduna com o princípio da liberdade sindical constitucionalmente albergado, pelo que não podem as entidades sindicais sofrer interferência do Estado, no que concerne ao desenvolvimento de atividades econômicas, mesmo porque esta pode ser uma forma de mudar o sistema de financiamento das entidades sindicais.
Existem, ainda, outras prerrogativas reconhecidas ao sindicato, dentre as quais podem ser mencionadas as funções políticas, consistindo na possibilidade, embora não recomendável, do sindicato vincular-se a partidos políticos ou subordinar-se a linhas político-partidárias. De toda sorte, cumpre aqui frisar que a atuação política do sindicato é uma tendência mundial, mesmo porque se afigura difícil imaginar o sindicato sem exercer funções políticas, em prol de seus representados, visando a melhoria das condições de vida. Nesse sentido, relembre-se o quanto dito por Ruprecht, para quem o sindicato persegue um fim imediato e outro mediato, sendo que este último "tem um grande conteúdo político e visa fazer com que o Estado se alicerce em conceitos diferentes daqueles que o moldam atualmente." (RUPRECHT, 1995, p. 57).
Ademais, dentre as funções sindicais, há alusão, ainda, à função ética (cf. Magano, apud BRITO FILHO, 2000, p. 168), em face da qual deve o sindicato agir eticamente, cabendo ao Estado impor a adoção de padrões éticos, sem que isso, contudo, enseje restrição de atuação.
2.3. Atuação das organizações sindicais
A atuação das organizações sindicais tem em vista a proteção dos interesses coletivos e individuais da categoria. Confundem-se os modos de atuação com as próprias funções acima referidas, pelo que apenas os indicaremos ao largo.
Dentre os interesses individuais dos representados, postos sob a cura do sindicato, mencionem-se a prestação de assistência judiciária aos membros da categoria, a assistência nos pedidos de demissão e na homologação das verbas rescisórias.
Os interesses coletivos são metaindividuais, pois vão além do indivíduo, e abarcam, na esteira do art. 81, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), os interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Na defesa dos interesses coletivos dos seus representados, as organizações sindicais atuam na instauração e composição de conflitos e dissídios coletivos, seja através da utilização da ação sindical direta (greve), seja pela via da negociação coletiva, da mediação, da renúncia, da instauração do dissídio coletivo ou da arbitragem.
3. Abuso de Direito
A literatura jurídica aponta três célebres casos judiciais que serviram de esteio ao desenvolvimento da teoria do abuso de direito.
A decisão pioneira foi proferia em 02 de maio de 1855 pelo Tribunal de Colmar, em que foi condenado um proprietário que construiu sobre sua casa uma falsa, volumosa e inútil chaminé, defronte à janela de um vizinho, visando tapar-lhe a entrada de luz. O Tribunal ordenou a demolição do construído, e, ao mesmo tempo, deixou a salvo o direito do vizinho ao ressarcimento.
Em 1856, o Tribunal de Lyon enfrentou um caso em que determinado proprietário havia adaptado à sua fonte de água mineral uma bomba, cujo jarro contínuo determinava uma diminuição de dois terços no rendimento de uma outra fonte existente no terreno contíguo. A intenção maliciosa do proprietário se revelou pelo fato de que nenhuma utilização era extraída do aumento da quantidade de água mineral jorrando de sua fonte, que, aliás, se perdia em um córrego vizinho, sem nenhum aproveitamento para ele. O Tribunal, condenando-o, asseverou que o direito do proprietário encontra necessariamente um limite na obrigação de deixar que o proprietário vizinho goze de seu direito, bem como que não é juridicamente tolerável um ato inspirado exclusivamente pela intenção de prejudicar.
O terceiro e mais famoso caso é conhecido como Clement Bayard, julgado por um tribunal francês, no qual um proprietário de um imóvel foi condenado, em 1913, por ter instalado estacas de madeira eriçadas com pontas de ferro afiadas, destinadas a rasgar os balões dirigíveis partindo de um hangar vizinho.
3.1. Definição
Na doutrina, há definições bastante elucidativas como a proposta por Lúcio Flávio Vasconcelos Naves, citado por Edilton Meireles, que, simplificadamente, define abuso de direito como "o exercício, ou a mera pretensão de exercício injusto de um direito legítimo" (apud MEIRELES, 2005, p. 21).
Fernando Augusto Cunha Sá, arrimando-se no artigo 334 do Código Civil português, que prescreve que "é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito", define o abuso de direito como sendo "um acto ilegítimo, consistindo a sua ilegitimidade precisamente num excesso de exercício de um certo e determinado direito subjectivo: hão-de ultrapassar-se os limites que ao mesmo direito são impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo próprio fim social ou econômico do direito exercido." (SÁ, 1997, p. 103).
O atual Código Civil brasileiro, inspirado no Código Civil português, também define, em seu art. 187, o que seja abuso de direito, enquadrando-o no título dos atos ilícitos, in verbis:
"Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes."
Da definição legal supra, Edilton Meireles (Cf. MEIRELES, 2005, p. 21) chama a atenção para dois importantes detalhes: primeiro, que, ao contrário do ato ilícito, o legislador não fez qualquer referência ao dano para a configuração do abuso do direito; segundo, que não há na definição do abuso de direito nenhuma menção à culpa, diversamente do que ocorre no tocante ao ato ilícito.
Partindo de tais pertinentes observações, Edilton Meireles propõe que o abuso do direito seja definido como "o exercício de um direito que excede manifestamente os limites impostos na lei, pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons costumes, decorrente de ato comissivo ou omissivo" (MEIRELES, 2005, p. 22).
No mesmo sentido, é a definição de Mauro César Martins de Souza, para quem "o abuso de direito traduz-se num ato cuja ilegitimidade decorre do excesso no exercício de um direito subjetivo, que tem os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo seu próprio fim social e/ou econômico" (SOUZA, 2002, p. 219).
3.2. Abuso de direito como instituto distinto de ato ilícito, de ato emulativo, de fraude à lei e de colisão de direitos.
Abuso de direito distingue-se do ato ilícito, malgrado ambos integrem a categoria dos atos antijurídicos. Consoante ensinança de Edilton Meireles (Cf. MEIRELES, 2005, p. 22-28), o ato ilícito propriamente dito ocorre quando o sujeito viola frontalmente a norma; age, assim, de forma antijurídica, de maneira direta e objetiva. No abuso de direito, ao revés, o sujeito, a pretexto de exercitar seu direito, faz mau uso dele, ultrapassando os limites postos pela norma ou princípios gerais, praticando verdadeiro ato contrário à lei. Exemplificando, assoma o citado Autor que ouvir música é lícito, mas até certo volume (limite); que quem celebra contrato de compra e venda de entorpecentes age de forma ilícita, mas quem ouve música em sua residência acima do razoável, quando inexista lei estabelecendo o limite, perturbando o sossego alheio, age de forma abusiva. Na hipótese da compra e venda de entorpecentes, o sujeito não invoca qualquer direito para praticar o ato; ao contrário, viola-o. No caso em que o sujeito ouve música acima dos limites do razoável, há um exercício do direito de liberdade de ouvir música, só que de forma abusiva, pois há perturbação da paz alheia.
Outrossim, o ato abusivo não se confunde com o ato emulativo, cuja respectiva doutrina desenvolveu-se na época medieval e pode ser considerada como o antecedente imediato da atual teoria do abuso do direito. Consistia o ato emulativo naquele praticado por alguém, no exercício do próprio direito, com o intuito, inconfessável ou dissimulado, de causar prejuízo a outrem (animus nocendi), e sem tirar qualquer proveito para si. A distinção entre os dois reside em que o ato emulativo é mais restrito que o abusivo, pois naquele o titular do direito não tira qualquer proveito do seu ato abusivo, enquanto neste, pode haver proveito ou não.
Ademais, difere o ato abusivo da fraude a lei, porquanto nesta espécie de conduta são praticados atos que buscam contornar uma proibição legal pela invocação de outra norma (denominada lei de cobertura), e, com isso, atinge-se indiretamente o resultado almejado. Assim, há fraude à lei quando o sujeito age com amparo em uma lei (de cobertura), procurando iludir a aplicação de outra lei, ao passo que, no abuso de direito, o agente não invoca outra norma para atingir seu objetivo. Sinteticamente, nas palavras de Edilton Meireles, "o abuso do direito surge por ocasião do exercício do direito e a fraude à lei pelo não cumprimento de uma obrigação legal, que se procura evitar invocando a aplicação de outra regra" (MEIRELES, 2005, p. 30).
Por derradeiro, surge a figura da colisão de diretos quando "duas ou mais pessoas podem exercitar suas prerrogativas jurídicas que conflitam entre si quando executadas contemporaneamente. Exemplo: diversos condôminos pretendem usar, ao mesmo tempo, o elevador do prédio, mas que somente pode transportar até três pessoas (não havendo qualquer critério de preferência no exercício desse direito). Neste caso, quem exercitar seu direito, não estará abusando do mesmo, ainda que outrem seja preterido, salvo se para este decorrer mais desvantagem" (MEIRELES, 2005, p. 30). Na colisão de direitos há possibilidade de aparecimento da figura do abuso acaso o titular do direito exercite o seu direito violando a boa-fé e os bons costumes, ou vulnere a função econômica ou social do seu direito. No exemplo acima transcrito, seria o caso do condômino que não dá preferência à mulher grávida ou mesmo aquele que desrespeita a fila por ordem de chegada.
3.3. Teorias subjetiva, objetiva e mista
Na caracterização do abuso de direito, a doutrina dividiu-se em três correntes:
subjetiva – por esta doutrina, o abuso de direito somente se caracteriza se o agente exercer o seu direito apenas com a intenção de prejudicar terceiros, sendo, portanto, necessária a presença da culpa lato sensu ou do animus nocendi (ato emulativo);
objetiva (também conhecida como teoria finalista ou funcional) – de acordo com os defensores desta corrente, da qual Louis Josserand é um dos expoente, para que haja abuso é irrelevante a intenção do agente; por isso, existindo ou não intenção de prejudicar outrem, o ato será abusivo se o seu objeto ou as circunstâncias o revelarem desta forma, ou seja, o abuso jaz patenteado na medida em que exercido o direito com violação da boa-fé, dos bons costumes, da função econômica ou social;
mista – nesta teoria, a configuração do abuso depende da análise objetiva da intenção, isto é, devem ser considerados os fatores objetivos e subjetivos das duas teorias dantes expostas; a crítica que se faz a esta doutrina é de que a teoria objetiva já envolve a subjetiva, pois quem exercita o direito de forma dolosa ou com intenção emulativa, malfere, decerto, a boa-fé e os fins sociais e econômicos.
O Legislador nacional adotou expressamente a teoria objetiva, consoante ressái do art. 187, do Código Civil.
3.4. Requisitos
A partir da definição do abuso de direito, podem ser traçados os seus pressupostos caracterizadores, que consistem nos seguintes:
-
a) prática de um ato permitido pelo direito positivo – o abuso somente ocorre em face de um direito próprio, protegido por específica prerrogativa, permitido pela legislação e que possa ser exercido; se não há o direito permitido, a hipótese será de ato puramente ilícito; se o direito não é protegido por específica prerrogativa, ter-se-á colisão de direitos e não abuso;
b) decorrer de um ato comissivo ou omissivo – pode decorrer de um ato omissivo (ex.: o sujeito deixa a buzina do alarme do carro tocando a noite inteira) ou de um ato comissivo (ex.: alguém que dá uma festa até altas horas da noite, com o som em volume acima do tolerável, perturbando o sono alheio);
c) ultrapassar os limites normais do exercício regular de um direito – deve haver mau uso de um direito, ou seja, exercício do direito excedendo os seus limites, pois, ao revés, se o ato é contrário à lei, configura-se o ato ilícito;
d) não há necessidade de que do ato decorra dano – conforme promana da inteligência do art. 187, do CC, não é imprescindível que do abuso decorra dano moral ou material a terceiro; frise-se que, em sentido contrário, entendia Orlando Gomes, para quem o exercício do direito não é abusivo quando não causa dano;
e) não precisa derivar de conduta culposa – o ato abusivo pode surgir independentemente da prática de conduta culposa pelo agente, isto é, não precisa haver dolo ou culpa para a sua caracterização.
3.5. Abuso na legislação brasileira
Além do dispositivo contido no art. 187. do atual Código Civil, que teve o condão de consagrar a teoria do abuso no direito pátrio, há, em outros diplomas legais, menção ao abuso do direito.
Podem ser citados, a título exemplificativo, os seguintes:
a) na Constituição Federal há referências ao abuso de poder (arts. 5º, XXXIV, LXVIII, LXIX), ao abuso do poder econômico (arts. 14, §10, e 173, §4) e ao abuso das prerrogativas dos parlamentares (art. 55, §1º);
b) no Código de Defesa do Consumidor (que é a elaboração legislativa mais pródiga em termos de abuso), há inúmeros preceitos dispondo sobre cláusulas e práticas abusivas, a exemplo dos artigos 6º, 28, 37 e 51;
c) a Lei dos Representantes Comerciais (n. 4.886/65), em seu art. 36, aponta como motivo justo para a rescisão do contrato de representação comercial a fixação abusiva de preços em relação à zona do representante, com o escopo exclusivo de impossibilitar-lhe ação regular
d) o Estatuto dos Servidores Públicos indica o abuso de poder no art. 116, XII;
e) a Lei das Sociedades Anônimas (n. 6.404/74) menciona várias formas de abuso, nos artigos 115 e 117;
f) a Lei de Greve (n. 7.783/99), que é o único diploma que se refere ao abuso de direito no âmbito do Direito do Trabalho, trata das hipóteses em que a greve é considerada abusiva;
g) a Lei Antitruste (n. 8.884/94), cuida do abuso da ordem econômica em seu art. 20; e
-
h) a Lei da Propriedade Industrial (n. 9.279/96) prevê o abuso nos arts. 68. e 80.
3.6. Critérios para a verificação do abuso do direito
A doutrina aponta diversos critérios para a identificação e caracterização do abuso de direito, que podem ser resumidos nos critérios do interesse ou legitimidade apreciável, do exercício normal do direito, da tolerância normal e da moralidade.
Adotaremos, contudo, a classificação de critérios proposta por Edilton Meireles, eis que amparada no art. 187. do atual Código Civil. Portanto, para esse doutrinador, são cinco os critérios que devem ser aplicados para a verificação do ato abusivo, todos eles extraídos do Código Civil: desproporcionalidade ("excede manifestamente os limites impostos..."), violação da boa-fé, função social, função econômica e bons costumes (Cf. MEIRELES, 2005, p. 48).
Há, ainda, um sexto critério, o da incompatibilidade com a equidade, restrito, contudo, à seara do direito consumerista (art. 51, IV, do CDC), segundo o qual, na apreciação de uma cláusula contratual posta em dúvida, o operador do direito deve se valer da equidade como elemento principal para a sua conclusão acerca da abusividade ou não da cláusula. Esta equidade não se confunde com o julgamento por equidade, este entendido como técnica de integração de lacunas.
3.6.1. Desproporcionalidade
Este critério está vinculado ao princípio da comutatividade ou da justiça contratual, por força do qual impõe-se a equivalência das prestações contratadas tanto sob a ótica econômico-financeira, quanto em função da capacidade das partes e em razão das circunstâncias específicas que caracterizam a relação.
Por isso, "sempre que ocorrer a ruptura do equilíbrio contratual, em tese, estar-se-á diante de uma cláusula ou prática abusiva" (MEIRELES, 2005, p. 50).
3.6.2. Princípio da boa-fé
O princípio da boa-fé deve ser analisado sob os aspectos subjetivo e objetivo.
Subjetivamente, a boa-fé está vinculada à ética, impondo às partes o dever de agirem com retidão e probidade. Já a boa-fé objetiva vincula-se ao estado de confiança gerado na contraparte. É nesta última acepção que a boa-fé é prevista no art. 187, do Código Civil, já que inspirado referido cânone no Código Civil português, cuja fórmula legislativa, embasada no Código Civil grego, teve como fonte inspiradora a doutrina alemã.
Nas palavras de Fernando Noronha, citado por Edilton Meireles, "na acepção subjetiva, a boa-fé se contrapõe à má-fé, na concepção objetiva, a boa-fé se contrapõe à ausência de boa-fé e não à má-fé" (apud MEIRELES, 2005, p. 53).
Na boa-fé subjetiva deve-se considerar a intenção do sujeito, a sua íntima convicção, tendo-se como "parâmetro de aferição o comportamento ético do agente, sempre de foro íntimo", enquanto "a boa-fé objetiva é apurada a partir de um comportamento que se exterioriza, de forma objetiva, tendo em vista a confiança depositada em outrem" (MEIRELES, 2005, p. 57).
3.6.2.1. Funções da boa-fé objetiva
É consenso entre a doutrina moderna que a boa-fé objetiva possui três funções numa relação jurídica contratual:
a) como instrumento hermenêutico-integrativo do contrato – objetiva preencher lacunas, já que nem sempre previstos todos os eventos surgidos na relação contratual;
b) como norma de criação de deveres jurídicos – na verdade de deveres laterais, anexos, instrumentais ou acessórios, dentre os quais incluem-se: os deveres de cuidado, previdência, proteção e segurança com a pessoa e o patrimônio da contraparte, inclusive contra danos morais; os deveres de aviso e esclarecimento (comunicação, explicação); os deveres de informação; os deveres de prestar contas; os deveres de lealdade, colaboração e cooperação; os deveres de omissão e segredo;
c) como norma de limitação ao exercício de direitos subjetivos – visando evitar o exercício abusivo dos direitos subjetivos, como, por exemplo, ocorre nas situações conhecidas na doutrina e jurisprudência germânicas sob as seguintes locuções: venire contra factum proprium; inalegabilidade das nulidades formais; suppressio (verwirkung); tu quoque; e desequilíbrio no exercício jurídico.
3.6.3. Função social
Por este critério, o ato é abusivo quando se desvirtua do instituto jurídico que integra.
Como todo instituto jurídico é criado, principalmente, para servir à coletividade, o ato ou relação jurídica interessa a todos que os cercam e que são por eles afetados (coletividade), e não apenas às pessoas diretamente envolvidas. Nessa senda, a doutrina cita como violadores da função social os atos que ofendam os direitos fundamentais (físicos, psíquicos e morais)
Assim como o contrato, que tem três funções (econômica, pois serve à circulação de riquezas; regulatória, porque os contratantes estabelecem as regras voluntariamente assumidas; e social, uma vez que procura satisfazer os interesses sociais), "todo e qualquer ato, para que não seja considerado abusivo, há de ser fonte de equilíbrio social" (MEIRELES, 2005, p. 81-82).
3.6.4. Função econômica
Impõe-se, por este critério, que o ato cumpra uma finalidade econômica. Portanto, afastam-se da função econômica os atos ou cláusulas que possam conduzir à ruína de uma das partes ou que tendam à espoliação.
3.6.5. Bons costumes
Os bons costumes relacionam-se com a moral social, compreendendo as regras impeditivas de comportamentos, que, embora não expressas, são consideradas em vigor pela sociedade. Segundo Edilton Meireles, "bons costumes é o conjunto de comportamentos morais aceitos por determinada comunidade. Não são práticas, mas as idéias ou convicções morais" (MEIRELES, 2005, p. 85).
Não se confundem com os costumes (fonte do direito), estes entendidos como regras de conduta (normas) de "uso geral, constante e notório, observado socialmente e correspondente a uma necessidade jurídica" (GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2002, p. 17).