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Testamento vital e o ordenamento brasileiro

20/06/2010 às 00:00
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Em 2009, no Uruguai, foi aprovada a lei que que instituiu naquele país o denominado "testamento vital", também conhecido como "declaração de vontade antecipada", já admitido em alguns países europeus e nos Estados Unidos, onde se consagrou o "living will". A lei uruguaia, de número 18.473, contém onze artigos, estabelecendo o primeiro deles que toda pessoa maior de idade e psiquicamente apta, de forma voluntária, consciente e livre, pode expressar antecipadamente sua vontade no sentido de opor-se à futura aplicação de tratamentos e procedimentos médicos que prolonguem sua vida em detrimento da qualidade da mesma, se se encontrar enferma de uma patologia terminal, incurável e irreversível. Isso permite que a pessoa possa antecipadamente declarar que recusa terapias médicas que apenas prolongariam sua existência, em detrimento da sua qualidade de vida.

A aprovação de lei neste sentido em um país vizinho dá a pensar sobre a possível legitimidade do testamento vital no Brasil. Não há norma jurídica no país que regulamente a figura, embora não exista razão que impeça a discussão de sua validade. Por não vigorar, quanto aos atos jurídicos, o princípio da tipicidade, os particulares têm ampla liberdade para instituir categorias não contempladas em lei, contanto que tal não venha a afrontar o ordenamento.

O testamento vital consiste num documento, devidamente assinado, em que o interessado juridicamente capaz declara quais tipos de tratamentos médicos aceita ou rejeita, o que deve ser obedecido nos casos futuros em que se encontre em situação que o impossibilite de manifestar sua vontade, como, por exemplo, o coma. Ao contrário dos testamentos em geral, que são atos jurídicos destinados à produção de efeitos post mortem, os testamentos vitais são dirigidos à eficácia jurídica antes da morte do interessado.

Já que o instituto não encontra previsão legal no país, não há como afirmar categoricamente quais seriam seus requisitos formais, o que não é despiciendo: a qualquer ato jurídico a que faltem pressupostos de ordem formal é cominada a sanção da nulidade, nos termos dos arts. 104, III e 166, IV do Código Civil. Por outro lado, constata-se que os atos jurídicos, em geral, independem de forma, a não ser quando a lei expressamente eleja alguma, conforme dispõe o art. 107, também do Código Civil. Em tese, pois, poder-se-ia alegar que, como a lei não contempla qualquer solenidade para a prática do ato em questão, a forma seria livre.

Para evitar o risco de ser proclamada a invalidade do testamento vital, pode-se entender que, no mínimo, o documento deve cumprir os requisitos de validade da mais "informal" das modalidades ordinárias de testamento – o particular –, que exige que o texto seja escrito de próprio punho ou por processo mecânico, sem rasuras, na presença de pelo menos três testemunhas, que também devem subscrevê-lo, conforme determina o art. 1.876 do Código Civil. A propósito, a legislação uruguaia cuidou de estabelecer os pressupostos formais de validade do instrumento, que deve conter a assinatura do interessado e de duas testemunhas, não podendo testemunhar o médico responsável pelo tratamento, seus empregados os os funcionários da instituição de saúde responsável pelo paciente. Ademais, a feitura do documento por meio de instrumento público é mera faculdade, sendo reconhecida a validade do ato quando realizado por instrumento particular. De todo modo, a possível edição de lei específica sobre o assunto no Brasil reclamaria a indicação dos pressupostos formais relativos ao testamento vital.

No Brasil, para além da questão formal, cabe proclamar que o testamento vital deve ser realizado pelo interessado plenamente capaz (embora os testamentos contemplados pelo Código Civil possam ser realizados pelos maiores de 16 anos, consoante estipula o seu art. 1.860, parágrafo único), sendo também fundamental averiguar se o consentimento é prestado de forma livre e espontânea, isto é, isento de erro, dolo ou coação. Por analogia com as regras civis concernentes aos testamentos, a capacidade do agente deve ser averiguada no momento da realização do ato, uma vez que "a incapacidade superveniente do testador não invalida o testamento, nem o testamento do incapaz se valida com a superveniência da capacidade". Além disso, compete reconhecer a revogabilidade do ato a qualquer tempo, também por analogia ao art. 1.858 do Código Civil, que determina que "o testamento é ato personalíssimo, podendo ser mudado a qualquer tempo". Caminha neste sentido, a propósito, a previsão contida no art. 4º da lei uruguaia.

Ultrapassada a análise dos requisitos de validade, subsistirá a discussão quanto ao conteúdo do documento. Afinal, não estão assentadas as discussões a respeito da possibilidade de recusa a tratamento médico necessário para preservar a vida do paciente, ou quanto à legitimidade da supressão da vida humana pela eutanásia, nem mesmo nos casos de ortotanásia (ou eutanásia passiva), em que ocorre a interrupção de tratamento vital, deixando-se de ministrar a medicação adequada ao paciente em estado terminal e irreversível. Por isso, ainda que se reconheça a possibilidade da elaboração de um testamento vital, embora sem previsão legal, poderia surgir outro empecilho à validade do ato: como os arts. 104, II e 166, II do Código Civil exigem que todo ato jurídico depende da licitude do objeto, poderá ser questionada a subsistência do testamento vital, sobretudo por aqueles que entendem que a vida, bem maior de todos, deve sempre ser preservada a qualquer custo, ainda que contra a vontade do próprio paciente.

Aqui, no entanto, devemos apontar que admitimos ser direito do paciente optar pela submissão ou não a qualquer tipo de intervenção médica. Além disso, nos manifestamos a favor da morte digna e da possibilidade de haver a interrupção de tratamentos que apenas prolonguem a vida do paciente que já se encontre em estágio irreversível. Portanto, compete estabelecer as balizas do entendimento que adotamos: de plano, proclamamos à partida que a vida, além de não ser disponível, prevalece sobre todos os demais direitos, por ser aquela o alicerce destes. Por isso, em situações em que se coloca em causa o direito à vida, numa eventual colisão com outros bens ou valores, pode-se defender que, em princípio, a primazia recai sobre o primeiro.

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Porém, em situações extremas, é válido mitigar este posicionamento. Veja-se, num primeiro passo, que a vida humana é de fato um direito irrenunciável e inviolável, havendo casos, nada obstante, em que o próprio ordenamento admite validamente a sua supressão – é o que se passa com a legítima defesa ou o aborto, nos excepcionais casos em que este é autorizado. O que se questiona é se a vida humana há de ser preservada a qualquer custo ou se, por outro lado, não se pode atestar que morrer dignamente é decorrência do preceito da dignidade da pessoa humana, constitucionalmente tutelado.

Adentramos a seara da eutanásia, que comporta diferentes perspectivas: na eutanásia ativa direta, provoca-se a morte do paciente, para aliviar-lhe o sofrimento; na eutanásia ativa indireta, não há a intenção de suprimir a vida, mas de aplicar ao paciente medicamentos que, embora abreviem o sofrimento, podem ter por efeito a morte; na eutanásia passiva ou ortotanásia, simplesmente se deixa de aplicar ao paciente a medicação adequada, havendo a interrupção de tratamento vital, o que nos parece solução perfeitamente admissível.

Reforçando este último entendimento, encontra-se no capítulo I do novo Código de Ética Médica, que prevê os seus princípios fundamentais, o item XXII, nos seguintes termos: "nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados". Assim, desde que se comprove o estágio terminal e irreversível do paciente, a interrupção do tratamento que o mantém vivo não pode configurar ato ilícito, por não haver sentido em prolongar a vida de uma pessoa nestas condições, impingindo-lhe um dever de viver, quaisquer que sejam as condições. O novo Código de Ética Médica, nesse particular, se afastou da distanásia, que representa o ato tendente ao prolongamento artificial da vida, já que não deve o médico empreender condutas inúteis ou obstinadas, que apenas retardariam a morte de uma pessoa.

Por isso, concluímos que a vida humana não pode ser analisada à margem da discussão sobre a dignidade do indivíduo, muito embora ainda sejam necessárias profundas e urgentes reformas na legislação penal brasileira, com o objetivo de determinar quais condutas seriam permitidas ou vedadas nessa área. Se a vida, por um lado, não é um bem jurídico disponível, não cabe, por outro lado, impor às pessoas um dever de viver a todo custo, o que significa, assim, que morrer dignamente nada mais é do que uma decorrência lógica do princípio da dignidade da pessoa humana.

Diante das bases expostas, resta concluir que o testamento vital não somente deve encontrar espaço no ordenamento brasileiro, como urge reconhecer sua validade por meio de lei, o que consagra o direito à autodeterminação da pessoa quanto aos meios de tratamento médico a que pretenda ou não se submeter.

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Sobre o autor
Adriano Marteleto Godinho

Professor Universitário. Mestre em Direito Civil pela UFMG e Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODINHO, Adriano Marteleto. Testamento vital e o ordenamento brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2545, 20 jun. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/15066. Acesso em: 3 out. 2024.

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