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A imunidade às contribuições sociais das receitas decorrentes de exportação.

Análise legística do processo que resultou na edição da Emenda Constitucional nº 33/2001

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21/06/2010 às 00:00
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A Emenda Constitucional nº 33/01 introduziu uma imunidade tributária até então inexistente, que impede a União de instituir contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico que incidam "sobre as receitas decorrentes de exportação".

1 - O PROBLEMA DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E A TEORIA DA LEGISLAÇÃO

O Direito não surge do nada. As leis não descem prontas de algum lugar transcendental e se incorporam nos códigos que adquirimos nas livrarias jurídicas. Tampouco os princípios e regras que estruturam a vida em sociedade representam um produto aleatório das interações sociais, ou o resultado do exercício de uma razão prática divina que sobre nós paira.

Neste contexto, compreender como as normas jurídicas são engendradas e contribuir cientificamente para a melhoria da qualidade dos atos decisórios que formam o Direito vigente é tarefa acadêmica ungida da mais profunda importância, na medida em que se trata da apreensão de um conhecimento que se reverte em melhorias concretas, e perceptíveis com grande evidência, nos processos de distribuição social da justiça, notadamente quando relembramos que o "dar a cada um o seu" não se circunscreve, em absoluto, aos processos de aplicação do ordenamento jurídico.

A metodologia jurídica tradicional, ao menos nos dois últimos séculos, indubitavelmente privilegiou, em suas análises, o momento aplicativo das normas jurídicas. Indagações sobre o papel do intérprete na revelação do Direito posto, sobre as possibilidades e limites de sua ‘neutralidade’, bem como sobre o impacto de sua subjetividade e história de vida no resultado da atividade hermenêutica, ainda estão na ordem do dia dos debates jurídicos. Lado outro, como a Lei, instrumento proeminente de revelação do Direito nos ordenamento estruturados a partir do modelo franco-germânico, produz-se, quem são os agentes que dirigem a produção legislativa (não se fala aqui, é claro, apenas da resposta óbvia de que seria o legislador, mas também dos sujeitos e grupos sociais que se envolvem na atividade regulatória, exercendo pressões políticas e econômicas sobre as instituições que participam formalmente do processo legislativo), os requisitos formais que a sua confecção deve observar, foram relegados ao segundo plano das instigações acadêmicas. Nas palavras de Luzius MADER (1991: 40), a concepção tradicional de ciência jurídica, focada no ato de aplicação do Direito, terminou por considerar que "a montante e a jusante dos actos legislativos ou regulamentares e de outros textos jurídicos ultrapassavam largamente o objeto da sua disciplina." Prossegue o autor:

"Para compreender e explicar o fenômeno legislativo, a ciência jurídica deve interessar-se também necessariamente pelo processo de criação das normas, pela sua aplicação e pelos seus efeitos; deve começar por considerar a legislação como um processo dinâmico e reiterativo de interacção entre a sociedade civil e o sistema político-administrativo, um processo no decurso do qual diversos actores sociais ou políticos equacionam problemas e formulam expectativas em relação ao Estado."

A idéia de que o esforço cognitivo em torno da produção do Direito seria desprovido de utilidade é inaceitável. Equivaleria a afirmar que a produção normativa é inexoravelmente um fruto do caos – ou, talvez melhor, do acaso – desconsiderando o fato de que a Constituição preceitua um regime democrático de governo, onde a participação de todos deve ser viabilizada por esforços racionalizadores, que coloquem cada cidadão na posição de interlocutor em uma comunidade emancipada (afinal, o poder emana ou não do povo?). Aceitar que o poder de criação do ordenamento jurídico é exercido ao acaso é se conformar com o arbítrio, circunstância esta, de dominação, que a razão já se propõe há muito a superar. Na verdade, a afirmação de que a produção legislativa é essencialmente caótica – e, portanto, irredutível à sistematização - parece carregar, às vezes até mesmo inconscientemente, o fardo ideológico que vem resguardando, geração após geração, as seculares posições sociais dos ‘donos do poder’, impedindo a constituição de uma sociedade efetivamente autônoma, na qual os destinatários do ordenamento jurídico são também os seus autores.

Racionalizar a produção do Direito significa encará-la como um processo constitucionalmente regulado, não só por regras procedimentais (fixadoras de competências, de órgãos legítimos para a iniciativa do procedimento, etc.), mas também por princípios processuais específicos, que impõem o legislar responsável e transparente [01]. Não existe verdadeiramente uma República, na acepção plena da palavra, onde a criação do Direito se dá em grande parte sob um véu que esconde, substancialmente, os interesses em jogo na criação das normas, os atores e grupos sociais que os patrocinam, e o modo como se constroem os conteúdos dos diplomas normativos. A atividade legislativa no Brasil é um iceberg, e dele só conhecemos a ponta que assoma à superfície. É um edifício subterrâneo com vários subsolos, do qual só conhecemos o térreo. Faz-se necessário descer aos demais andares da construção para que possamos saber, com efeito, quem a habita. Só o mergulho teórico nos processos de criação do Direito, com o intuito de que saibamos verdadeiramente que normas são essas que nós devemos obedecer, propiciará que sejam concretizadas as ações necessárias à efetivação da noção de cidadania que perpassa as estruturas da Constituição.

Os estudos sobre o processo legislativo são abundantes. Mas circunscrevem-se, na verdade, à explicação do procedimento de criação das leis – de suas fases, legitimados, etc. Não é disso que aqui especificamente se fala, mas sim da ciência da legislação – ou, usamos o termo aqui como sinônimo, legística – que vai muito além dos estudos em torno apenas do procedimento legislativo, partindo, na verdade, da ampla premissa de que a atividade de criação do Direito é uma realidade dinâmica, dotada de conteúdo variável e passível de sistematização, no bojo da qual sujeitos e momentos sucessivos se articulam racionalmente em torno de um itinerário voltado a um destino certo: a edição de uma norma. Em suma, cuida-se do processo de justificação [02] do Direito, cuja feição básica se extrai da Constituição, máxime dos princípios democrático e republicano. Eis (em nossa opinião) o objeto da legística: o estudo transdisciplinar da processualística da justificação dos atos normativos legais e infralegais.

A legística, como o ramo da ciência voltado ao estudo da processualística da justificação do Direito, que se utiliza, a um só tempo, e de maneira indistinguível, de ferramentas fornecidas pela dogmática jurídica, pela sociologia jurídica, pela filosofia do Direito e pela ciência, pode ser divida em áreas, assim enumeradas por CANOTILHO (1991:10-11), a partir da sistematização proposta por Karpen:

- ciência ou doutrina da legislação: "preocupa-se com os problemas básicos do conceito, evolução e análise comparada das leis."

- analítica da legislação: "debruça-se sobre a lei como fonte de direito".

- tática da legislação: "(...) estuda o procedimento externo da legislação englobando as fases administrativa e legislativa no procedimento de elaboração dos projectos de leis."

- metódica da legislação: "Sob o nome de metódica da legislação compreendem-se os saberes que visam aprofundar a implementação das leis (evualition research), ou seja, as consequências desejadas ou não das intervenções legais. Os ‘saberes’ pertencem aqui à Ciência Política e a Economia Aplicada. As análises ex-post e ex-ante da avaliação de programas e as análises de custos/benefícios desempenham neste contexto um relevantíssimo papel."

- técnica da legislação: "Desenvolve regras gerais sobre a feitura das leis, as suas divisões, a sua sistemática e a sua linguagem."

Aqui chegamos ao foco da primeira parte do trabalho. A ciência da legislação, ao negar a atividade de criação do Direito como uma aleatoriedade, evidencia a qualificação desta como um agir racional, predisposto à consecução de fins específicos (ou, repita-se, como o resultado de um processo estruturado). E o realce explícito do caráter finalístico da criação do Direito, por sua vez, produz inflexões na ulterior aplicação das normas. Não se trata, aqui, da clássica tarefa, relegada com justiça ao segundo plano dos métodos hermenêuticos, de se buscar a vontade de um legislador isolado, nem tampouco de se ungir um método único e definitivo de interpretação jurídica, mas sim de se apreender a norma em toda a sua complexidade, no que se inclui a elucidação dos argumentos que justificaram discursivamente a sua criação (contextualizando, assim, frente à Constituição, os atores sociais e os objetivos que fundamentaram a escolha de um determinado conteúdo para um texto legal, com vistas à sua eficácia, à sua efetividade e à sua sintonia com o restante do ordenamento). Enfim, conhecer bem a norma - no que se inclui a sua gênese - é causa lógica de uma mais adequada aplicação sua aos casos concretos.

1.2. Justificação dos fins da norma e aplicação da norma com relação aos seus fins.

Já no início da década de noventa, Jacques CHEVALIER (1992:10) era incisivo ao afirmar que "a norma jurídica não vale só por si, mas unicamente na medida em que concorre para a realização de fins mais vastos que a ultrapassam, para a concretização de ‘programas’ ao serviço dos quais se encontra; (...). Toda a norma se encontra integrada num conjunto mais vasto, formado por uma constelação de decisões que encaixam umas nas outras e estão ligadas entre si."

Luzius MADER (1991: 47) igualmente destaca que "não basta que as normas sejam respeitadas aplicadas. Segundo uma concepção finalista do direito e, em particular, da legislação, é preciso, além disso, que os objectivos do legislador sejam alcançados."

A ênfase dada pela ciência jurídica ao momento aplicativo do Direito terminou por deixar de lado a evidência de que a atividade criativa do ordenamento jurídico é voltada para a consecução de fins predeterminados. É que o trabalho aplicativo das normas se debruça sobre textos legais prontos, já desvinculados dos seus emissores, em torno dos quais são desenvolvidas atividades hermenêuticas que não guardam qualquer vinculação necessária com os desígnios antevistos pelos órgãos legislativos, o que conduziu a que a pesquisa em torno destes objetivos fosse inteiramente deixada de lado pelos intérpretes do ordenamento. E, de fato, conforme afirma Umberto Eco, citado por Luis Roberto BARROSO (2008: 1), "um texto, depois de ter sido separado do seu emissor e das circunstâncias concretas da sua emissão, flutua no vácuo de um espaço infinito de interpretações possíveis." Enfim, a circunstância de que a propalada "vontade do legislador" não vincula, de qualquer forma, o intérprete do direito posto, terminou por relegar ao ostracismo as investigações em torno do momento criativo do ordenamento; mais precisamente, foram deixados de lado os debates justificativos das normas criadas, com a consagração da noção de que o trabalho do jurista somente se iniciaria após a vigência da lei.

Todavia, tal noção não capta satisfatoriamente o fenômeno jurídico em todas as suas particularidades. E a correta aplicação das normas jurídicas somente se faz, simultaneamente, justa e segura, se desenvolvida a partir de pretensões cognitivas que busquem captar o Direito em toda a sua complexidade [03]. Somente quando vêm à tona todos os fatos e argumentos que envolvem um determinado problema de Direito – no que se incluem os discursos de justificação das normas – pode se afirmar que há condições para que o intérprete do ordenamento exerça satisfatoriamente a sua atividade criativa. Em suma, afirma-se aqui que a constituição excelente da situação de aplicação pressupõe, dentre outras, a tarefa de dissecar os processos de justificação da norma que regula determinado caso, o que pode ser feito, com a desejável precisão, a partir do instrumental teórico fornecido pela legística.

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Assim, a tese aqui defendida é a de que a análise do processo de criação de uma determinada norma, erigida a partir da perspectiva da teoria da legislação, fornece valiosos subsídios para a constituição da situação adequada de aplicação do Direito, na medida em que evidencia, em toda a sua complexidade, as justificativas que embasaram a elaboração de um determinado texto legislativo. Isso não se confunde, conforme acima já ressaltado, com a busca que uma "vontade do legislador" que deva se sobrepor à atividade do intérprete; significa apenas admitir que as leis são criadas com objetivos racionalmente elucidáveis [04], e que os processos de justificação das normas interessam ao cientista do Direito, produzindo impactos e denotando relevância na constituição das situações de aplicação do ordenamento [05].

É a partir dessa perspectiva que, no próximo tópico, ingressaremos no problema concreto objeto deste ensaio, que se consubstancia, primordialmente, na elucidação dos discursos de justificação que embasaram a edição da Emenda Constitucional n. 33/01, com o fito de se colher subsídios adicionais para que possa ser incrementado, qualitativamente, o debate hoje existente em torno de sua aplicação, visando a que esta se dê de forma adequada (ou seja, que a interpretação dos dispositivos inseridos na Constituição através do mencionado ato legislativo cumpra simultaneamente expectativas de justiça e de segurança).


2 - O PROCESSO LEGISLATIVO DA EMENDA CONSTITUCIONAL N. 33/01. ELUCIDAÇÃO A PARTIR DOS ELEMENTOS TEÓRICOS FORNECIDOS PELA TEORIA DA LEGISLAÇÃO (IMPULSO PARA LEGISLAR E ANÁLISE PROSPECTIVA DE IMPACTO). ANÁLISE CRÍTICA.

A Emenda Constitucional n. 33/01 introduziu no texto da Constituição uma imunidade tributária até então inexistente, que impede a União de instituir contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico que incidam "sobre as receitas decorrentes de exportação" (art. 149, §2º, I, da CF).

Assim que consumada a modificação do texto constitucional, iniciou-se renhida discussão em torno da amplitude do termo "receita", utilizado na regra da imunidade. De um lado, os contribuintes entenderam que toda quantia por eles recebida, em virtude da realização de operações de exportação, estaria fora do alcance do poder de tributar da União, qualquer que fosse a espécie de contribuição – social ou interventiva – de que se tratasse. Por exemplo, a receita recebida nessas operações, por ser intocável pelo Fisco federal, a título de exigência de contribuições sociais ou CIDE’s, não integraria o cálculo matemático através do qual se estipula o lucro de uma empresa, não havendo, assim, que se falar no pagamento de contribuição social sobre o lucro líquido sobre tais quantias. A Secretaria da Receita Federal e a Advocacia-Geral da União, contudo, assim não entenderam. Para estes órgãos operacionais centrais do sistema tributário nacional, a imunidade acima referida somente abrangeria as contribuições que especificamente têm por base de cálculo a receita bruta, podendo as quantias obtidas em razão de operações de exportação sofrerem o gravame das demais contribuições que tivessem, v.g., o lucro como base imponível.

A questão encontra-se, atualmente, pendente de julgamento perante o Supremo Tribunal Federal (RE 564.413, Rel. Ministro Marco Aurélio). Oito dos onze Ministros da Corte já votaram, sendo que quatro se alinharam aos argumentos suscitados pelas empresas (Gilmar Mendes [Presidente], Cezar Peluso, Cármen Lúcia e Eros Grau), e quatro perfilaram a tese defendida pela Advocacia-Geral da União (Marco Aurélio [Relator], Menezes Direito, Carlos Britto e Ricardo Lewandowski).

O tema, portanto, é polêmico, e a discussão meramente semântica em torno da extensão do significado da palavra "receita" não é capaz de produzir uma solução a um só tempo justa e segura para a controvérsia.

Partindo-se da premissa da ciência da legislação de que nenhuma lei – no caso, aliás, trata-se de uma Emenda à Constituição – é criada sem objetivos definíveis, tornou-se imprescindível a investigação do processo legislativo que culminou com a edição da Emenda Constitucional n.33/01, mais especificamente dos debates que o envolveram, das justificativas oficiais do Poder Executivo para a proposta (a PEC foi encaminhada ao Congresso pelo Presidente da República), dos pareceres das comissões e dos discursos dos parlamentares em plenário. Tal tarefa se predispôs a elucidar os contornos recebidos, neste caso, por dois momentos processuais da justificação das normas constitucionais então criadas, teoricamente tratados pela ciência da legislação: (1) os motivos que levaram o Poder Executivo a deflagrar o procedimento legislativo de alteração do texto constitucional e (2) as análises empreendidas com o objetivo de se prever em que resultaria a imunização fiscal das "receitas decorrentes de exportação". Em linguagem técnica mais precisa, buscou-se a identificação dos impulsos para legislar e das avaliações prospectivas [06] existentes no caso, ainda que se soubesse de antemão que tais dados somente seriam obtidos, ao menos parcialmente, através da análise conjunta da totalidade dos documentos que integraram o processo legislativo de emenda à Constituição (pois não foi reservada qualquer fase formal dentro do procedimento para a efetivação de análises de impacto futuro). Com isso, os objetivos visados com a edição da norma seriam elucidados, e poderiam se transformar em argumento poderoso nos discursos de aplicação das mesmas, cujo palco principal, hoje, é o Supremo Tribunal Federal.

Esclarecer e captar os impulsos que levaram à deflagração do projeto que resultou na Emenda Constitucional n. 33/01 significaria relacionar os problemas que através dela se buscou resolver com o conteúdo com que veio ela a vigorar. Em suma, tal atividade auxiliaria a que se respondesse à pergunta acerca do que se objetivou quando se inseriu, na Constituição, que as contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico não incidiriam sobre as receitas decorrentes de exportação.

Igualmente, as avaliações prospectivas [07] então procedidas – ainda que realizadas, repita-se, apenas difusamente, e não em uma fase especialmente para tanto reservada – dissertariam acerca dos efeitos sociais e econômicos que seriam provocados pela inserção da norma aqui tratada, com a redação já descrita, na Constituição. Com isso se compreenderia melhor o porquê de se haver escolhido, à vista dos objetivos que deveriam ser atingidos pela norma, a palavra "receita" para compor os contornos da imunidade então criada.

Os projetos de emenda à constituição que resultariam na EC n. 33/01 receberam, na Câmara dos Deputados, o n. 277/00, e no Senado Federal, o n. 42/01, constando, da mensagem encaminhada pelo Presidente da República ao Poder Legislativo, a seguinte exposição de motivos:

"2. Com a proximidade da total liberalização do mercado nacional relativo ao petróleo e seus derivados e ao gás natural, tornam-se necessárias as alterações propostas, como única forma de se evitar distorções de natureza tributária entre o produto interno e o importado, em detrimento daquele, que fatalmente ocorrerão se mantido o ordenamento jurídico atual.

3. Assim, adotada a presente proposta, poder-se-á construir se implementar (sic)m sem nenhum obstáculo de natureza constitucional, uma forma de tributação dos referidos produtos que garantam a plena neutralidade tributária." (Mensagem n. 1.093/00, encaminhada pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, instaurando o processo que resultaria na Emenda Constitucional n. 33/01)

Como se vê, a exposição de motivos acima esclarece muito pouco sobre as razões que levaram à propositura do processo de emenda à Constituição que resultaria, ulteriormente, na EC 33/01. Não há, com efeito, qualquer dado ou menção ao conteúdo dos textos submetidos à apreciação do Poder Legislativo, sendo aqui oportuno ressaltar que a locução "receitas decorrentes de exportação", razão de toda a controvérsia aqui retratada, já constava do projeto original redigido pelo Poder Executivo, não havendo sofrido qualquer modificação ao longo da tramitação da PEC. Ou seja, o teor do texto, mais precisamente a palavra "receitas", foi objeto de escolha dentro de algum gabinete ministerial, e as razões que levaram à opção por tal termo, à míngua de documentos que as retratem, perderam-se na história.

Os documentos (votos, pareceres, transcrições de debates, etc.) acostados aos processos que tramitaram na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, disponíveis em suas páginas oficiais na internet, igualmente nada retratam sobre os motivos que levaram os parlamentares (incluindo-se, aqui, todas as fases do procedimento, inclusive a sua submissão às comissões) a aprovarem uma emenda constitucional imunizando das contribuições sociais, especificamente, as "receitas" decorrentes de exportação. Por exemplo, por que não se incluiu no texto constitucional simplesmente que as operações de exportação eram imunes a todas as contribuições sociais? Ou, se o objetivo era restringir a imunidade apenas às contribuições suja base de cálculo é a receita bruta, por que não se positivou norma clara na qual se afirmasse, expressamente, que o PIS e a COFINS não incidiriam sobre as receitas decorrentes de exportação? Enfim, o que se buscava com a edição da norma aqui debatida, e o que dela se podia esperar?

A ausência completa de repostas a tais questionamentos frustrou completamente o intento inicial de se buscar o realce dos impulsos legislativos e das prospecções de eficácia que subjaziam – ou, melhor, que deveriam ter embasado – à edição da Emenda Constitucional n. 33/01. Sequer os debates parlamentares, ou pareceres emitidos pelos relatores nas comissões permanentes, trataram do assunto, resumindo-se, literalmente, a afirmar que o dispositivo a ser incluído na Constituição visava colocar o produto nacional a ser exportado em igualdade concorrencial com produtos importados. A escolha dos termos adequados para que se alcançar tais intentos, ou as discussões em torno de como fazê-lo eficazmente, jamais ocorreram (ou, pelo menos, não foram documentadas e disponibilizadas ao acesso publico).

Não se ventilou, ainda, se o objetivo buscado com a imunidade não seria melhor atingido com a edição de simples isenções, que não demandariam a alteração do texto constitucional. Não houve participação explícita dos principais órgãos burocráticos envolvidos. Inexistiu qualquer oitiva formal de representantes de contribuintes. Em suma, o processo legislativo que, neste particular, alterou a Constituição, careceu da participação explícita daqueles que seriam os sujeitos diretamente relacionados com a sua concretização, o que vai diretamente contra as seguintes diretrizes teóricas:

"Nos processos participativos formadores de normas, seja no discurso administrativo (onde a experiência nos dá uma vivaz constatação do seu conteúdo dialético), no discurso judicial, bem como no discurso legislativo, objeto de nossa análise, o papel da argumentação, da persuasão, é evidenciar a convicção em torno de uma necessidade ‘do aumento da informação da ‘situação’, motivo do início do discurso, da situação dialógica, ou melhor dizendo da situação comunicativa.

A participação popular é um modo de legitimação de normas." (SOARES, 2004: 50-51)

O estudo do processo de emenda à Constituição que criou a imunidade das exportações às contribuições sociais, a partir da perspectiva da ciência da legislação, traz a tona, assim, dados deveras impressionantes. Revela, na verdade, como uma emenda constitucional pôde ser redigida dentro de algum gabinete ministerial, enviada ao Congresso Nacional e aprovada, em dois turnos, tanto no Senado Federal como na Câmara dos Deputados, sem que uma vez sequer houvesse discussões profundas acerca da extensão da imunidade que estava a ser inserida na Carta Magna. Passou-se, assim, muito ao largo de qualquer indagação prospectiva acerca da eficácia da norma que se estava editando; a Constituição foi alterada, com efeito, no ponto, a partir de debates e justificações que não satisfariam os requisitos de motivação de uma portaria [08].

Talvez alguém saiba o que se passou realmente durante a tramitação da PEC 277/00 na Câmara dos Deputados e da PEC 42/01 no Sendo Federal. É certo, todavia, que à míngua de instrumentos formais de transparência e de viabilização de participação dos interessados no processo, devidamente documentados, não se pode sequer investigar, com a facilidade desejável num regime democrático, quem foram os reais interessados e beneficiários desta alteração constitucional, nem tampouco as efetivas razões que levaram a se isentar da incidência de contribuições sociais as "receitas" decorrentes de exportação.

O resultado de todos esses equívocos, de toda sorte, é evidente, e a solução está nas mãos, mais uma vez, do Supremo Tribunal Federal, a quem caberá dar fim à explosão de litigância que se seguiu à edição da Emenda Constitucional n. 33/01, em torno da correta interpretação a ser atribuída ao então inserido inciso I, do §2º, do art. 149 da Constituição.

Portanto, intencional ou não, fato é que a má-elaboração da imunidade das exportações às contribuições sociais redundou em milhares de ações judiciais, nas quais contribuintes e União se colocam em lados opostos, cada qual defendendo pontos de vista inconciliáveis acerca da correta interpretação a ser atribuída ao dispositivo em questão. E a confecção de um texto preciso, no caso, por envolver conceitos retirados das ciências contábeis (como receita, lucro, etc.), era possível.

Gilmar Ferreira MENDES (2000), àquela época, já havia alertado para as conseqüências danosas que poderiam sobrevir a leis mal-feitas:

"A moderna doutrina constitucional ressalta que a utilização de fórmulas obscuras ou criptográficas, motivadas por razões políticas ou de outra ordem, contraria princípios básicos do próprio Estado de Direito, como os da segurança jurídica e os postulados de clareza e de precisão da norma jurídica.

(...)

Assinale-se, por outro lado, que as exigências da vida moderna não só impõem ao legislador um dever de agir, mas também lhe cobram uma resposta rápida e eficaz aos problemas que se colocam (dever de agir com a possível presteza e eficácia). É exatamente a formulação apressada (e, não raras vezes, irrefletida) de atos normativos que acaba ocasionando as suas maiores deficiências: a incompletude, a incompatibilidade com a sistemática vigente, incongruência, inconstitucionalidade, etc."

Mendes cita, ainda, incisivas palavras de Victor Nunes Leal, já clássicas, acerca dos danos que podem surgir a partir da confecção pouco refletida de textos normativos:

"Tal é o poder da lei que a sua elaboração reclama precauções severíssimas. Quem faz a lei é como se estivesse acondicionando materiais explosivos. As conseqüências da imprevisão e da imperícia não serão tão espetaculares, e quase sempre só de modo indireto atingirão o manipulador, mas podem causar danos irreparáveis."

Assim, a falta de cuidados na elaboração dos textos legislativos, mais do que apenas dificultar sobremaneira a detecção dos objetivos que se visavam quando da positivação da norma, acarreta, vezes mais, verdadeiros acidentes legislativos. No presente caso, a falta de qualquer justificação dos impulsos legislativos em torno da imunidade criada, bem como de juízos prospectivos acerca da eficácia do ato normativo que vinha sendo redigido, figura como demonstração da falta de esmero na condução dos negócios legislativos. A conseqüência direta, por sua vez, de falhas do texto que poderiam haver sido sanadas com avaliações prospectivas das mais simples, foi a judicialização maciça do debate em torno e sua correta interpretação.

O acidente legislativo possui alarmante incidência no Brasil, ocorrendo por várias vezes propositalmente [09], tudo indicando que, no caso da imunidade criada pela Emenda Constitucional n. 33/01, estamos diante de um, porquanto toda a controvérsia instaurada em torno da extensão da palavra "receita" parece decorrer tão-somente da falta de esmero daqueles que redigiram o texto inserido na Constituição.

Gilmar MENDES (2000), no mesmo estudo já acima citado em parte, já externava advertência no sentido do necessário cuidado que deveria ser adotado na elaboração de textos legislativos, visando evitar danos aos particulares e ao próprio Poder Público:

"Os riscos envolvidos no afazer legislativo exigem peculiar cautela de todos aqueles que se ocupam do difícil processo de elaboração normativa. Eles estão obrigados a colher variada gama de informações sobre a matéria que deve ser regulada, pesquisa esta que não pode ficar limitada a aspectos estritamente jurídicos. É certo que se faz mister realizar minuciosa investigação no âmbito legislativo, doutrinário e jurisprudencial. Imprescindível revela-se, igualmente, a análise da repercussão econômica, social e política do ato legislativo."

Portanto, a atividade legislativa requer cuidados extremados. A aprovação de textos normativos irrefletidos pode acarretar explosões de litigância, onde a própria finalidade inicial buscada com a edição da lei se perde no turbilhão de discussões, com evidentes prejuízos para a legitimidade do ordenamento jurídico. É o que ocorreu no presente caso.

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Sobre o autor
Luís Fernando Belém Peres

Advogado em Belo Horizonte/MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PERES, Luís Fernando Belém. A imunidade às contribuições sociais das receitas decorrentes de exportação.: Análise legística do processo que resultou na edição da Emenda Constitucional nº 33/2001. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2546, 21 jun. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/15067. Acesso em: 27 abr. 2024.

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