SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. As transformações sociais, políticas e econômicas contemporâneas: as sociedades complexas e pluralistas contemporâneas. 3. A Constituição como centro dos sistemas jurídicos contemporâneos. 4. A proeminência contemporânea do Poder Judiciário. 4.1. A "judicialização da política". 5. Os novos marcos da função jurisdicional no Brasil: a complexidade da atuação judicial contemporânea. 5.1. Delimitação da análise. 5.2. A principialização do direito e as normas-regras dotadas de cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados. 5.3. Os "casos difíceis": colisão de direitos fundamentais e ponderação de valores. 6. A impossibilidade do exercício da função jurisdicional sob critérios eminentemente políticos: a subordinação material da atuação criativa do juiz ao direito proveniente da Constituição. 7. Conclusão. 8. Bibliografia.
RESUMO: O direito, enquanto produto cultural desenvolvido pelo homem de acordo com as circunstâncias fáticas que o influenciam, precisou acompanhar as inúmeras transformações recentemente sofridas pelas sociedades ocidentais, situação sob a qual os sistemas jurídicos adotaram como solução para a reaproximação entre o direito e a moral a adoção de Estados democráticos de direito com as Constituições ocupando o centro dos ordenamentos jurídicos. Com toda uma relevante carga axiológica a iluminar a aplicação do ordenamento jurídico, a ampla complexidade das relações sociais e a sistematização constitucionalizada - por que não dizer, politizada - do direito impõem ao juiz a solução de conflitos complexos que não poderão mais ser resolvidos por técnicas admitidas, e suficientes, em épocas passadas. E sob esse contexto que o presente trabalho, ainda que superficialmente, pretende verificar se tal complexidade da atuação jurisdicional contemporânea permite ao juiz inobservar critérios jurídicos para a interpretação e a aplicação do direito ao caso concreto que lhe foi submetido para decisão.
PALAVRAS-CHAVE: Sociedade. Constituição. Política. Jurisdição. Controle de constitucionalidade. Juiz.
ABSTRACT: Law, as cultural byproduct developed by men according to the factual circumstances that influenced them, needed to accompany numerous recent transformations of western societies, a situation in which the judicial systems adopted, as solution to reunite law and moral, the democratic rule of law, with the Constitutions occupying a center of the judicial orders. With a relevant axiological power to illuminate the judicial order’s application, the vast complexity of social relations and the constitutionalized – why not say politicized – systematics of law require from the judge the solution of complex problems, not anymore solvable by older techniques. It is in this context that the present work, still superficially, intends to verify if such complexity of contemporary judicial acting allows the judge not to observe judicial criteria to interpret and apply the law to the concrete case his to decide.
KEYWORDS: Society. Constitution. Politics. Jurisdiction. Judicial Review. Judge.
1. Introdução.
A temática a ser abordada no presente artigo constitui-se em problema de relevância ímpar para o direito contemporâneo, pois em vista da hodierna legitimidade do Poder Judiciário para a função de proteger os valores sociais constitucionalmente eleitos como prioritários no processo em que irá prestar jurisdição [01], a atuação judicial criativa tem se tornado imprescindível nos dias atuais por pressão da própria sociedade.
Esta aplicação criativa do direito pelo intérprete puro kelseniano, o juiz, torna-se especialmente imprescindível na solução de casos onde não há resta alternativa ao magistrado senão atuar deste modo, seja para revelar o conteúdo da norma que, se aplicada em sua literalidade, revelar-se-á como injusta em hipóteses fáticas excepcionais, seja para decidir conflitos entre direitos fundamentais, hipótese em que, normalmente, não lhe é possível a aplicação das técnicas tradicionais de interpretação para a solução do hard case [02].
Assim, considerando-se a afirmação de Mauro Capelletti de que um dos maiores problemas contemporâneos do direito está no "grau de criatividade e dos modos, limites e aceitabilidade da criação do direito por obra dos tribunais judiciários" [03], o presente trabalho pretende verificar se, nos estados constitucionais de direito contemporâneos, a Constituição autoriza que a aplicação do direito pelo juiz paute-se sobre critérios outros que não a mera obediência ao ordenamento positivado e se, afirmativa a resposta ao questionamento anterior, se esta liberdade de atuação jurisdicional importa em discricionariedade do juiz na decisão do caso concreto ou se o magistrado estará submetido a limites impostos pela própria Constituição, mesmo na decisão de casos onde necessariamente o juiz precisará realizar escolhas valorativas para a correta decisão do caso concreto que lhe é submetido.
2. As transformações sociais, políticas e econômicas contemporâneas: as sociedades complexas e pluralistas contemporâneas.
Após a afirmação do liberalismo durante o século XIX e a implantação do Estado Social, após o início do século XX, e um sem número de eventos de capital importância para a humanidade, dentre os quais necessário destacar a barbárie nazi-facista imposta ao povo judeu durante a 2ª. Guerra Mundial, ocorreram expressivas alterações em diversos aspectos da sociedade contemporânea, dentre as quais se pode enumerar: a) a prevalência do Poder Executivo a partir da instituição do Estado do bem-estar social [04]; b) a prevalência do capitalismo como único modelo econômico viável após a queda da União Soviética [05]; c) após a 2ª Guerra Mundial, a adoção dos direitos fundamentais como limite à atuação do Estado e a instituição de tribunais constitucionais na Europa [06]; d) o primado do Estado de Direito e de sistemas judiciais eficazes como meios necessários para o desenvolvimento social e econômico das sociedades modernas [07]; e) o exarcerbado contratualismo das relações sociais decorrente da falência das instituições mediadoras tradicionais [08].
Após todas estas transformações por que passaram, em nenhum momento da história humana as sociedades ocidentais foram tão caracterizadas pelo reconhecimento de valores dialéticos que, decorrentes da adoção de Estados constitucionais democráticos de direito, devem ser praticados por seus integrantes sob espírito social tolerante, pois, tal como informa Ovídio A. Baptista da Silva, é a primeira vez que a ideologia da igualdade é considerada à luz de uma democracia universal, com a tentativa de desconsiderar-se distinções de classe, sexo, raça, idade, crenças políticas e religiosas, dentre outras [09].
E no Brasil, ainda que tardiamente - por influência da Constituição responsável pela transição do outrora regime ditatorial para o regime democrático, este baseado na concepção de um Estado constitucional - houve o estabelecimento de um rol de direitos e garantias fundamentais nunca antes declarados no país a evidenciar o poder daquela Carta em permitir a "redescoberta da cidadania", com a conseqüente generalização da "conscientização das pessoas em relação aos seus direitos" [10].
Além da pluralidade [11][12] e da democracia que caracterizam as sociedades de países ocidentais centrais – e de alguns países emergentes com a mesma tradição ocidental - a partir da segunda metade do século XX, de ver-se que, nos fins deste ciclo, por volta da década de 1990, outras novas situações impuseram ainda mais complexidade às questões sociais contemporâneas, dentre as quais se pode citar o extraordinário desenvolvimento das tecnologias de comunicação – do qual o exponencial crescimento da internet é o exemplo mais cabal – e a globalização daí decorrente, vez que as sociedades contemporâneas, além de seus problemas internos, precisam agora adaptar-se a conviver com outros problemas advindos do contexto internacional, seja ele regional ou globalizado, em que estão inseridas [13].
É que as sociedades contemporâneas são, inevitavelmente, submetidas à globalização, fenômeno de ordem mundial, estruturada não só no aspecto econômico, mas baseada em duas estruturas fundamentais, quais sejam a "eliminação de barreiras econômicas e políticas para a livre circulação de bens produtivos" e "no processo de desenvolvimento tecnológico sem precedentes das comunicações físicas e das telecomunicações", este último permitindo "um deslocamento fluído de pessoas, informações e modelos culturais e sociais por todo o mundo." [14]
Todas estas relevantes modificações estruturais a caracterizar as sociedades contemporâneas como corpos sociais plurais, complexos e globalizados indicam que há evidente acerto no entendimento de Ulrich Beck, citado por Francisco Carlos Duarte, de que se a sociedade moderna foi caracterizada pela certeza, pela estabilidade e respaldada na determinação lógica e temporal, a sociedade contemporânea é caracterizada pelo risco, pela incerteza do porvir, pela instabilidade e pela indeterminação lógica e temporal [15].
3. O novo marco filosófico do direito: a Constituição como centro dos sistemas jurídicos contemporâneos e a constitucionalização do direito.
Em seus primórdios, podia-se caracterizar uma Constituição como um conjunto de orientações políticas para um dado Estado, onde se encontrariam as diretrizes de sua estruturação – forma de Estado; de governo; formação, organização e atuação dos Poderes constituídos -, bem como a estipulação de direitos mínimos dos indivíduos a impedir a agressão do Estado a preceitos econômicos liberais típicos da época. Foi sob essa concepção de Constituição que o positivismo jurídico atingiu o seu auge durante a 2ª Guerra mundial, permitindo que o regime nazista promovesse um genocídio sem precedentes contra o povo judeu com base em um ordenamento formalmente positivado.
Após tais afrontas contra os direitos básicos do homem, autorizadas por dispositivos legais positivados, percebeu-se que a idéia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos, e da lei como estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento jurídico esclarecido [16].
Sob esse contexto de superação histórica do jusnaturalismo e de fracasso político do positivismo jurídico extremado [17], o pensamento jurídico, atualmente, busca refúgio no que denomina de pós-positivismo jurídico, qual seja a "designação provisória e genérica de um ideário difuso" [18], segundo o qual, sem desconsiderar a necessidade da segurança jurídica propiciada pela norma positivada [19], pretende-se a reaproximação entre o direito, a ética e a moral, de forma que a norma não seja analisada somente sob a idéia kelseniana da validade decorrente do aspecto formal, mas também sob o aspecto material de sua adequação aos valores adotados pela Constituição, vez que no momento do exercício do poder constituinte originário evidenciaram-se como os socialmente mais relevantes.
É assim que, contemporaneamente, o constitucionalismo, sob forte influência daqueles horrores perpetrados durante a 2ª Guerra Mundial [20], passa a entender a Constituição como "lei fundamental" que, normalizando os valores mais importantes para a sociedade, torna-os oponíveis ao Estado e, no caso das cláusulas constitucionais definitivas, até mesmo às maiorias legislativas que venham a surgir durante a vigência do Texto Constitucional. [21]
Sob essa nova concepção de constitucionalismo, através da qual se disporá sobre os temas de importância capital para a sociedade, aos direitos fundamentais, enquanto pressupostos básicos para a realização da liberdade e da dignidade da pessoa humana, atribuir-se-á uma nova abordagem à Constituição, menos política, mais jurídica, vez que aqueles direitos de ordem fundamental devem ser considerados não como meros valores abstratos, mas sim com normas jurídicas dotadas de superioridade jurídica, às quais se deve dar efetividade através do cumprimento da Constituição.
A Constituição passa, portanto, a efetivamente inaugurar uma nova ordem político-jurídica, cabendo a ela servir como fundamento a toda e qualquer atuação do Estado, e da própria sociedade, vez que somente a atuação consoante à Carta encontrará legitimidade na ordem jurídica por ela inaugurada.
Deixou-se, portanto, de considerar-se a Constituição como um mero ideário político ao dirigente da vez, para considerá-la como estatuto normativo dotado de superioridade jurídica material sobre todo o restante do ordenamento jurídico de uma dada sociedade. Esta compreensão é denominada como força normativa suprema da Constituição, segundo a qual as disposições do Texto Constitucional devem ser observadas como normas jurídicas superiores, inclusive materialmente, que, caso não sejam observadas espontaneamente, devem ser impostas pelo Estado-juiz.
Esta nova concepção de Constituição como estatuto normativo dotado de eficácia suprema, que passou a ser observada na Europa a partir da segunda metade do século XX e no Brasil a partir do final da década de 90 do mesmo século [22], importou na transposição da Carta para o centro do sistema jurídico [23], o que conduziu o direito para a sua constitucionalização [24], segundo a qual o ordenamento jurídico vigente, positivado ou não, deve ser interpretado de acordo com a preponderância não só hierárquica, mas também axiológica da Constituição, de forma a concretizar os valores nela insertos [25].
De ver-se, portanto, que sob a atual concepção de Constituição, esta deve ser vista como estatuto com natureza jurídica superior a ser observado não só pelo Estado, mas também por toda a sociedade - que tanto quanto aquele é responsável por sua interpretação [26] e efetivação -, o que necessariamente importa em um novo enfoque de abordagem do direito, vez que através deste se realizará a conformação da realidade social de forma apta a concretizar o projeto social estabelecido pela Constituição vigente.
É sob o enorme impacto de todas essas transformações que o papel do juiz deve ser, atualmente, analisado, pois tais modificações na realidade sócio-política importam em um novo paradigma de atuação do Poder Judiciário, tanto em face da distribuição de competências e atribuições entre os Poderes estabelecidos, como em face das exigências sociais que pressionam a atuação do Estado contemporâneo, o que, conseqüentemente, importará em um novo modo de agir ao magistrado brasileiro.
4. A proeminência contemporânea do Poder Judiciário.
Contemporaneamente, devido a todas as transformações atualmente vivenciadas pelas sociedades ocidentais, tem-se verificado um forte incremento na relevância social da função jurisdicional e, conseqüentemente, um desnivelamento, pelo menos sob o aspecto prático, no equilíbrio entre os Poderes em favor do Judiciário [27], vez que, em última análise, pelo menos nos ordenamentos que adotam o livre acesso à Justiça, tal como ocorre no Brasil devido ao art. 5º, XXXV [28] da Constituição de 1988, o Poder Judiciário será a última via estatal não só para a proteção de direitos não observados espontaneamente pelas demais esferas estatais, como para a preservação de valores sociais importantes inscritos na Constituição [29].
De ver-se, portanto, que um dos principais fatores para a revolução contemporânea vivenciada na atuação do Poder Judiciário encontra-se na função de controle de constitucionalidade [30] que lhe tem sido atribuída pelas Constituições, após a 2ª metade do século XX [31], ressaltando-se que o Brasil, como país ocidental passível de influência pela conjuntura global, não poderia restar imune ao referido fenômeno.
Não há maiores obstáculos em admitir-se que o novo paradigma de importância do Poder Judiciário no Brasil, inclusive com o extremismo daquilo que se tem denominado de "judicialização da política", decorre da aceitação pacífica do princípio da supremacia da Constituição e da atribuição da função de guardião da Carta de 1988 ao Poder Judiciário, em especial ao Supremo Tribunal Federal.
Sim, porque se através do controle de constitucionalidade das leis no Brasil, seja pela via difusa ou pela via concentrada, o Poder Judiciário pode anular os atos dos demais Poderes, se inadequados aos preceitos firmados na CR/88, acaba por constituir-se o juiz no intérprete último da forma como devem atuar os demais poderes, vez que aqueles devem obediência irrestrita à Constituição [32] guardada pelo Poder Judiciário.
Reforça tal entendimento a importância conferida por todas as nossas Constituições republicanas ao controle jurisdicional concreto de constitucionalidade, segundo o qual caberá ao juiz ordinário realizar, previamente ao mérito de seu julgamento, a análise constitucional das normas sob toda a subjetividade [33] dos dramas humanos das partes que compõem a lide [34].
De ver-se, portanto, que a proeminência do Poder Judiciário no Estado constitucional democrático brasileiro evidencia-se pela possibilidade de qualquer indivíduo, de forma tão universal quanto o direito de ação constitucionalmente declarado na Constituição, apresentar aos agentes políticos que o compõem, de forma difusa, a questão constitucional que influencia sua esfera jurídica, hipótese em que caberá ao magistrado brasileiro apreciar e decidir, concretamente, questões constitucionais tão importantes quanto as que envolvem, por exemplo, direitos fundamentais [35], sob toda a subjetividade dos dramas reais das partes da demanda e com todo o conhecimento dos fatos do litígio que o ferramental processual e a sua disposição em adotar o princípio da cooperação [36] lhe permite conhecer.
4.1 - A "judicialização da política".
O fenômeno assim denominado pode ser caracterizado como a submissão ao Poder Judiciário de questões políticas e legislativas que, no modelo clássico de tripartição de poderes, competiria aos demais Poderes a solução [37].
Devido a tais fatores e à inércia do demais Poderes em solucionarem questões que lhe podem trazer determinados prejuízos políticos, ou até mesmo institucionais, tais temas acabam por serem submetidos ao Poder Judiciário pelos agentes sociais legitimados pela Constituição para tanto. Podem ser classificados, como exemplos relevantes de tais questões, recentes decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a fidelidade partidária [38], sobre o aborto de feto anencéfalo [39] e sobre o direito de greve dos servidores públicos [40], vez que, devido à inércia dos Poderes competentes para a resolução legislativa das matérias, foi o Poder Judiciário, através do STF, obrigado a pronunciar-se sobre as referidas questões para efetivar as determinações constitucionais a respeito.