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A atuação judicial criativa nas sociedades complexas e pluralistas contemporâneas sob parâmetros jurídico-constitucionais

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26/06/2010 às 00:00
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6. A impossibilidade do exercício da função jurisdicional sob critérios eminentemente políticos: a subordinação material da atuação criativa do juiz ao direito proveniente da Constituição.

Um dos maiores estudiosos dos limites da interpretação e aplicação criativa do direito pelo juiz, Mauro Capelletti, considerando-se toda a ordem de novos paradigmas da atuação judicial, em especial a necessidade de proteção judicial aos interesses coletivos e difusos, entende que "pela razão de que tais leis e direitos freqüentemente são muito vagos, fluidos e programáticos, mostra-se inevitável alto grau de ativismo e criatividade do juiz chamado a interpretá-los." [84] (grifo nosso)

Sob o contexto contemporâneo em que os chamados hard cases, decorrentes de conflitos envolvendo direitos fundamentais ou mesmo normas que exigem alta dose de esforço interpretativo, e a empregabilidade de definições como "judicialização da política" e "ponderação de valores" tornaram-se lugares comuns na produção de conhecimento jurídico e até mesmo no cotidiano do foro judicial, percebe-se que a atuação judicial, sob a função de guardiã da Constituição, não mais pode dar-se da forma clássica típica do Estado liberal, em que se desejava um juiz neutro, distante da partes e do caso concreto que lhe é submetido à decisão.

Pelo contrário, segundo Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior, "O juiz se transmudou de, como disse Montesquieu, La bouche de La loi (a boca da lei) para La bouche du droi, a boca do direito (Willis Santiago Guerra Filho)." [85], pois a sociedade contemporânea é tão plural e complexa, que ao juiz serão submetidas angustiantes polêmicas, onde, inclusive, podem ser suscitadas questões "ético-jurídicas radicalmente novas que suscitam a ação combinada dos progressos científicos e dos desejos mais delirantes: engenharia genética e manipulações biológicas a serviço da eugenesia, da reprodução de clones, da determinação do sexo dos filhos e outros comércios genéticos." [86]

Para François Ost, a personagem Hermes (em grego; em latim, Mercúrio), deus da mitologia grega responsável pela comunicação e da intermediação, personagem modesto, deve representar o juiz do sistema jurídico da sociedade contemporâneo, complexa e multifacetada, em que se verifica a impossibilidade de o juiz monopolizar a interpretação em sistema jurídico contemporâneo em que diversos agentes produzem a interpretação do direito – sistema jurídico visualizado em forma de rede e banco de dados, onde sempre deverá haver a interpretação do direito, vez que "Signo lingüístico, el Derecho pide em efecto ser interpretado por sus destinatários; manifestación de voluntad, el Derecho pide ser interiorizado y aceptado." [87]

Diante da complexidade do mundo contemporâneo, e conseqüentemente do pluralismo social típico de nossos tempos, a exigir a necessária participação de vários outros intérpretes na aplicação do direito, o juiz poderia ser reconhecido como co-autor do Direito, à medida que reconstrói mentalmente a mensagem que a ele se dirige e medita sua colocação em prática com uma operação de vontade (que é também uma manifestação de liberdade), situação em que o direito se configura como algo necessariamente inacabado, sempre em suspenso e sempre relançado, indefinidamente retomado na mediação da mudança. [88]

Assim, com toda a gama de transformações político-sociais já expostas anteriormente, de ver-se que o papel do juiz brasileiro não mais se resume a uma função puramente técnica, em que lhe caberia apenas a descoberta das disposições legais aplicáveis ao caso, mas lhe compete exercer a função de "co-participante do processo de criação do Direito, ao lado do legislador, fazendo valorações próprias, atribuindo sentido a cláusulas abertas e realizando escolhas." [89]

Mesmo que a afirmação cause calafrios aos menos abertos às questões contemporâneas aqui deduzidas, a atribuição da função de co-criador do direito ao juiz pela Constituição atesta que a função jurisdicional de controle concreto de constitucionalidade realizada por todo e qualquer juiz na via difusa tem viés político. Primeiro, porque a referida função estatal é realizada por um agente expressamente designado pela própria Constituição, o que já seria suficiente para caracterizá-lo como um agente político. Segundo que a referida função está intimamente ligada com a função de limitação dos demais Poderes pelo membro do Poder Judiciário, enquanto no cumprimento da função de guarda da Carta político-jurídica vigente. Terceiro, porque aquela jurisdição constitucional realizada também pelo juiz ordinário, mais do que um necessário componente do sistema de freios e contrapesos, representa uma ferramenta de concretização da democracia e do constitucionalismo nas sociedades modernas, pois o exercício de sua função é expressamente prevista na Constituição derivada da vontade da própria sociedade, através do exercício do poder constituinte originário.

Além disso - por mais óbvio que possa parecer não nos esqueçamos disso, a função jurisdicional de controle de constitucionalidade também é caracterizada por um aspecto político pelo simples fato de que o parâmetro de controle do juiz ordinário é o estatuto normativo supremo; parâmetro de atuação jurisdicional este que vincula a produção das decisões políticas da sociedade sobre a qual incide e, assim, detém as características próprias do jogo político: estabilidade democrática e mutabilidade normativa; características estas que não podem ser desconsideradas pelo magistrado durante o exercício da função jurisdicional.

Obviamente, enquanto parâmetro de controle jurisdicional, a Constituição possui um aspecto político que não pode ser desprezado, durante a sua interpretação e controle pelo juiz ordinário no exercício de sua função de controle jurisdicional concreto de constitucionalidade, situação da qual decorre a constante necessidade contemporânea de atuação criativa do juiz para aplicar o direito, considerando o aspecto político da Carta, mas sem, entretanto, deixar de observar os limites jurídicos de sua função jurisdicional.

Sim, porque tal como ensina Dieter Grimm, citado por Inocêncio Martíres Coelho, no exercício da jurisdição constitucional – frisemos mais uma vez: no Brasil, realizada concretamente por todos os juízes ordinários – não se pode empreender uma interpretação político-partidária da Constituição, vez que o órgão jurisdicional, ante a própria natureza jurisdicional de sua função, está submetido e limitado a critérios jurídicos de interpretação [90] e decisão.

Toda aquela mudança de paradigmas na aplicação do direito pelo juiz, a exigir-lhe não só preparação técnico-jurídica estrita, como também uma ampla preparação em ramos do conhecimento extremamente relacionados com a complexidade atual da sociedade [91], não representa absoluta liberdade ao magistrado para atuar arbitrariamente em substituição ao legislador, o qual é o único com competência constitucional para inovar a ordem jurídica, pois se de um lado a proteção da Constituição, e toda a gama de "casos difíceis" que são submetidos a sua decisão, exigem-lhe postar-se como co-criador do direito a ser aplicado no caso concreto em cumprimento aos preceitos constitucionais vigentes, não se pode olvidar, por outro lado, que a atuação jurisdicional deverá pautar-se sob parâmetros jurídicos impostos pela própria Constituição.

Exatamente devido a esta enorme responsabilidade do juiz contemporâneo, e não contra ela [92], é que se sustenta, com base no posicionamento de Ronald Dworkin [93] - em contraposição a Herbert Hart [94] - que, mesmo nos chamados hard cases, a liberdade de atuação criativa do juiz é relativa, visto que não se poderá afastar do direito [95], buscando, portanto, neste os fundamentos para suas decisões [96].

Segundo John Anthony Jolowicz, ainda que a norma suscetível de apreciação pelo juiz seja uma norma aberta, do que decorrerá a necessidade de uma complexa avaliação dos fatos e discrição judicial na compreensão da finalidade da norma, isto não representa "um convite ao juiz para dar livre curso a sua teoria favorita da justiça abstrata. Ao contrário, [se] em torno da regra já se desenvolveram a prática e a jurisprudência, e nenhuma das duas pode ser igualmente ignorada pelo juiz." [97]

É que, salvo em casos de evidente excepcionalidade fática a ilidir as razões e fins da norma, tal como visto anteriormente - "rule’s purpose" ou "overrruling" - não é admissível que o juiz subverta os critérios fixados pelo legislador, sejam eles de ordem constitucional ou infraconstitucional, pelos seus próprios critérios pessoais de justiça, sob pena de assim incidir o magistrado em estrita atuação política, que, diga-se de passagem, a própria Constituição não admite.

A pretensão de um juiz em, no exercício da função jurisdicional, atuar sob critérios eminentemente políticos, sem submeter-se aos ônus impostos pela Constituição aos agentes estritamente políticos – necessidade de submeter-se a eleições, perda de mandato, impecheament, dentre outros – importaria em evidente violação ao sistema político-jurídico instituído pela própria Constituição vigente, não se podendo denominar tal atuação ao largo do direito como "ativismo judicial", termo este apropriado para a atuação criativa do juiz, mas consentânea ao direito. Ou seja, o ordenamento jurídico brasileiro, tanto o constitucional quanto o processual, não admite que o juiz, sob uma suposta aplicação criativa do direito, substitua a função social prevista na legislação vigente pelos seus próprios critérios pessoais de justiça.

Isto porque uma sentença judicial, que põe a termo a prestação da tutela jurisdicional ao fim do processo, estará de acordo com o direito se ela for justa tanto substancial, quanto processualmente, pois " (...) a decisão deve ser o resultado da correta aplicação do direito aos fatos; e, em segundo, o procedimento que levou a ela deve ter sido conduzido de acordo com o direito processual aplicável." [98]

Ressalte-se que nem mesmo o controle de constitucionalidade atribuído pela Constituição ao Poder Judiciário, seja na via difusa a todos os juízes [99], seja na via concentrada ao Supremo Tribunal Federal [100][101], autoriza o magistrado, salvo nas exceções antes mencionadas, a prestar a tutela jurisdicional em desconformidade com o ordenamento vigente, a caracterizar uma atuação estritamente política, tal como fazem os agentes políticos strictu sensu.

Isto porque, em se considerando que o constitucionalismo atende às necessidades da sociedade contemporânea, a Constituição deveria atribuir tal liberdade política ao Poder Judiciário, situação que não o fez, até porque se o fizesse, impor-lhe-ia também os ônus decorrentes de tal liberdade política, aos quais, diga-se de passagem, não estão submetidos os componentes do Poder Judiciário.

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Reafirme-se, portanto, que o juiz, enquanto intérprete puro da norma, tem liberdade para adequá-la à situação fática que lhe é apresentada, inclusive com o poder de afastar a norma em contradição aos fatos, através da restrição ou ampliação da regra com base na razão que fundamenta a própria regra – "rule’s purpose" – ou com base em razões de outras regras – "overrruling", ou ainda para, considerando a situação fática que lhe é apresentada, realizar um sopesamento dos interesses em conflito na demanda.

Ressalte-se, entretanto, que esta liberdade – ou até mesmo necessidade - de interpretação não importa em conferir liberdade para que o magistrado atue ao largo do direito vigente naquela oportunidade, pois " (...) a decisão e determinação do juiz, como decisão e determinação do Poder Judiciário do Estado, deve estar de acordo com o direito." [102].


7. Conclusão.

As sociedades contemporâneas que adotaram o Estado democrático constitucional são caracterizadas pela pluralidade democrática e pela extrema complexidade das relações sociais; complexidade esta ainda maximizada por fenômenos típicos da idade contemporânea, tais como extraordinário desenvolvimento das tecnologias de comunicação e a interação global entre as sociedades orbitantes em torno de um único modelo econômico, o capitalismo.

Sob esse estado de arte, o direito, enquanto produto cultural desenvolvido pelo homem de acordo com as circunstâncias fáticas que o influenciam, acompanhou essas transformações sofridas pelas sociedades, deixando para trás as fases do jusnaturalismo e do positivismo jurídico para buscar refúgio no pós-positivismo jurídico, segundo o qual os sistemas jurídicos, sem desconsiderar a necessidade da segurança jurídica propiciada pela norma positivada, vêm se reaproximando à ética e à moral exigidas pela contemporânea concepção de constitucionalismo.

Assim é que se fixou como consenso jurídico mínimo contemporâneo que se a Constituição, enquanto estatuto normativo dotado de superioridade jurídica, não só formal, mas material, sobre todo o restante do ordenamento jurídico de uma dada sociedade, não for observada espontaneamente, serão suas normas impostas pelo juiz, o qual, como agente do Estado encarregado de prestar jurisdição, estará submetido a conflitos contemporâneos tão complexos que não poderão mais ser resolvidos por técnicas jurídicas admitidas, e suficientes, em épocas passadas para a solução dos conflitos sociais que eram submetidos a juízo.

Por isso que, contemporaneamente, o Poder Judiciário passa a possuir papel muito mais relevante na manutenção, e por que não dizê-lo no progresso, das relações sociais; situação sob a qual o juiz responsável pelo controle concreto/difuso de constitucionalidade passa a deter a enorme responsabilidade de solucionar, junto com todos os dramas que as partes lhe apresentam, problemáticas como os hard cases, que normalmente decorrentes da colisão de direitos fundamentais, exigem a adoção de técnicas jurídicas complexas para a sua solução, tal como a chamada ponderação de valores.

Entretanto, ressalte-se – e o objetivo do presente trabalho é justamente fomentar o debate a respeito disto – em nenhum desses momentos, que exigirão uma atuação distintamente criativa do magistrado ordinário no descobrimento da real finalidade da norma a ser aplicada ao caso concreto, estará o juiz livre das amarras do exercício da função jurisdicional sob padrões eminentemente jurídicos, vez que se a Constituição desejasse atribuir-lhe função estritamente política o submeteria aos mesmos ônus que impõem aos agentes estritamente políticos.

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Sobre o autor
Dalton Santos Morais

Mestre em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo. Especialista em direito do Estado pela UGF/RIO. Graduado em direito pela UERJ. Professor de Direito Constitucional e Direito Processual Constitucional no Curso de Direito das Faculdades Espírito-Santenses – FAESA. Autor de livros e artigos jurídicos. Procurador federal. Coordenador da Escola da Advocacia-Geral da União no Espírito Santo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAIS, Dalton Santos. A atuação judicial criativa nas sociedades complexas e pluralistas contemporâneas sob parâmetros jurídico-constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2551, 26 jun. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/15073. Acesso em: 19 abr. 2024.

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