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Rebaixamento da imputabilidade penal:

um breve ensaio

01/06/2000 às 00:00
Leia nesta página:

A questão de rebaixamento da imputabilidade penal de há muito comporta as mais calorosas discussões, tendo, entretanto, mobilizado ainda mais os estudiosos do tema a partir de propostas às emendas constitucionais de nºs 18 e 20, as quais sugeriram a alteração do art. 228, da Constituição Federal, passando este a dispor sobre a imputabilidade dos maiores de dezesseis anos, e não dezoito anos, como consta no texto normativo em vigência.

Dada a relevância do tema, mister se faz adentrar as razões de cada corrente, a favorável e a contrária à diminuição da idade para imputabilidade penal, porém, anteriormente a qualquer abordagem partidária, indispensável é trazer a conhecimento o significado e objetivos da punibilidade em razão de delinquência.

Da lição do mestre Damásio E. de Jesus, dessume-se que a pena tem por função precípua a proteção da sociedade contra a atividade delituosa e a ressocialização do criminoso. Pune-se para proteger a coletividade de novos delitos, bem como para readequar o criminoso à vida em sociedade.

Tem-se hoje, em nossa realidade brasileira, um sistema carcerário falho em ambos os aspectos da finalidade da punição: a sociedade não se encontra protegida, eis que o exacerbado número de aprisionados em condições desumanas bem como a carência de preparo e recursos do funcionalismo que lida diretamente com os nossos presídios e delegacias favorecem as fugas em massa; bem como não há, salvo raras, muito raras exceções, cumpre o seu papel de ressocialização do criminoso à sociedade. Não se nega a necessidade de punir, mas de adequar as punições às finalidades que desenharam sua existência racional.

A necessidade de impor um castigo a todo aquele que infrinja normas de conduta cumpridas pela maioria é imanente à própria existência humana. Fora assim desde a Antiguidade, quando vigoravam as regras da vingança privada. Viu-se necessário racionalizar as punições, e isso se deu a partir da intervenção estatal, da emergência do Estado enquanto ente centralizador de interesses e reflexo dos intentos individuais. Os particulares dotaram o Estado de poder para serem governados, doaram a sua até então irrestrita liberdade de atuação em troca da segurança, do equilíbrio. Fez-se o contrato social, de Jean-Jacques Rousseau para que se evitasse, como afirmara Hobbes, que o homem se consolidasse enquanto lobo de seus semelhantes.

A atividade punitiva foi atribuída ao Estado. Reconheceu-se que as paixões são admissíveis para as individualidades, todavia que um julgamento justo requer equilíbrio, conhecimento racional. Ao Estado, a partir da verificação do contexto histórico-social, coube a elaboração do sistema punitivo.

O art. 228, da Constituição Federal, preceitua que "são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeito ás normas da legislação especial". A legislação especial referida trata-se do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, no qual se encontram prescritas medidas para sujeição menores inimputáveis que incidam na prática delituosa à punição correspondente a sua situação bio-psíquica-social.

Não se nega punição ao menor delinquente, mas a imputabilidade penal geral. O menor infrator não é impune, mas inimputável. Ao infringir normas de obediência imperativa é punido, punições que variam da imposição de medidas sócio-educativas à privação de liberdade.

Um dos mais utilizados argumentos em favor do rebaixamento da imputabilidade penal é o direito de voto conferido aos maiores de dezesseis anos, bem como a tutela ao trabalho de menores a partir dessa idade.

Acerca do direito de voto, basta que sejam verificadas outras tantas limitações etárias constantes em nosso Ordenamento Jurídico. Exige-se vinte e um anos para a maioridade civil, dezoito para candidatura a cargo de vereador, trinta e cinco para Presidente da República; todas as limitações possuem suas razões de ser e persistir há tanto tempo em vigor, sem qualquer modificação. Para a consideração de maioridade é aferida a capacidade do indivíduo para cada atribuição. Se para casar só é apto após vinte e um anos (sem necessidade de consentimento dos pais ou responsáveis), se para ser vereador após dezoito e etc. quantos ás outras limitações é porque se verificou que para cada situação exige-se uma capacidade. Por que desprezar essa exigência quanto ao menor infrator?

Afirmar que "se o jovem pode votar, escolhendo até o representante do povo no poder, pode perfeitamente ser punido pelos seus crimes como qualquer um" é desconsiderar o ideal de justiça conferido por Aristóteles, consagrado na máxima "tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida das suas desigualdades". O menor infrator é menor e como tal deve ser tratado. Seu discernimento não se encontra plenamente formado, seu nível de consciência e informação é infinitamente inferior ao dos delinquentes adultos, tem uma personalidade em construção, como então equipará-lo ao adulto infrator? Estaríamos tratando igualmente os desiguais.

O argumento do voto não procede pelas razões supra e por tantas outras, sendo relevante lembrar que o voto para maiores de dezesseis anos é facultativo, enquanto que a imputabilidade é de todo compulsória. Tratam-se de situações diferentes e que por tal exigem capacidades diferentes.

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Quanto à regulamentação do trabalho do maior de dezesseis anos pela Constituição Federal (EC – 20/98) não há muito, além do óbvio, a ser acrescentado como refuta a tal argumento. Sabe-se que o Brasil é um país com elevado grau de população miserável, a qual, em busca da subsistência, submete-se a todo e qualquer tipo de trabalho, estando envolvidos nesse contingente os menores. O mercado de trabalho informal cresce a cada dia, basta que se olhe para as ruas das cidades para que se tenha dimensão de que não apenas adolescentes, mas crianças, lotam as vagas de subemprego.

Já se questionou até mesmo o aumento da idade para trabalho regular conferido pela EC-20/98 de quatorze para dezesseis anos. A regulamentação do trabalho do menor veio para tirar da informalidade os trabalhadores que independentemente de idade são jogados no mercado. Limitou-se em razão de exigência de uma capacidade mínima, constatada como sendo de dezesseis anos, sem falar que muitas são as prerrogativas desse tipo de trabalho, que em muito diferem das normas trabalhistas gerais, aplicadas aos trabalhadores maiores.

A refuta encontra amparo no mesmo argumento retro colacionado. Tratam-se de situações diferentes e como tal exigentes de capacidades diferentes.

Acerca dos que alegam em favor da diminuição da idade para imputabilidade que os jovem do mundo hodierno têm muito mais acesso á informação que antigamente, que são dotados de discernimento acerca das suas atitudes, que conhecem os limites do bem e do mau, não há como se negar tais assertivas, afinal, o menor é integrado ao ambiente em que vive, não se trata de um alienado, todavia até que se considere presente capacidade específica para responder penalmente pelos seus atos tal qual indivíduos adultos tem-se um longo caminho.

O Catecismo Romano já afirmava que a partir dos sete anos de idade, chamada ‘ idade da razão’ , a criança já possuía discernimento para compreender o bem e o mau. Agora imagine-se o discernimento de uma criança. Indiscutivelmente sabe que roubar é errado e que não pode matar, mas até compreender a dimensão de tais atos...

Até se chegar ao Estatuto da Criança e do Adolescente foi uma longa jornada de conquistas, estas alicerçadas na compreensão das diferenças entre o menor infrator e o maior delituoso. A regra da quantidade mínima referida por Michael Foulcaut(1) como aquela que prega ser o crime cometido por trazer vantagens, sendo necessário ligá-lo a uma idéia de desvantagem maior para coibir a sua prática não pode encontrar guarida numa seara tão delicada quanto a da punição de menores.

O menor infrator precisa ser ressocializado e isso não ocorrerá com a diminuição da idade para imputabilidade. O sistema já não funciona quanto aos maiores...O menor está em processo de formação, não se trata de pessoa já desenvolvida e a sua imaturidade e falta de discernimento não podem restar desconsideradas quando se trata de aplicação de punição por infringência a normas sociais.

O crime em si não pode ser visto como fenômeno meramente jurídico, mas sócio-político-econômico. Não se busca justificativas para sua prática, mas sopesamento das suas formas de punição e isso, em relação ao menor infrator veio com o ECA.

Não se pode enxergar a solução para a criminalidade infanto-juvenil no lançamento dos menores no nosso falido e deplorável sistema penitenciário. Tratar-se-ia de retorno à vingança privada ou estatal, de esquecimento pleno e absoluto do ideal reeducador da pena, de uma resposta passional do Estado à infração de normas por ele ditadas para a convivência pacífica em sociedade. Ao Estado não pertine a passionalidade, mas o equilíbrio, tal a razão do seu surgimento.

Não se pugna em momento algum pela impunidade ou irresponsabilidade do menor infrator, ao contrário, reconhece-se, e não poderia ser de outra forma, que, uma vez delinquente, deve sofrer os ônus da sua conduta condenável. A imputabilidade não pode ser vista como uma panacéia para a problemática da delinquência, mas como forma de tratar diferenciadamente o jovem infrator, o qual não resta impune, como garante o ECA.

O Estatuto da Criança e do Adolescente representa uma resposta aos anseios da sociedade quanto a punição e responsabilização de menores infratores quanto aos seus atos delituosos. A grande diferença do sistema penal vigente é que aquele ainda tem como norte intangente a busca da reeducação e ressocialização do criminoso menor. Necessário se faz apenas primar pela sua efetividade.

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Sobre a autora
Larissa Freitas Carlos

acadêmica de Direito na UFRN, em Natal (RN)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARLOS, Larissa Freitas. Rebaixamento da imputabilidade penal:: um breve ensaio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 42, 1 jun. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1652. Acesso em: 17 nov. 2024.

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