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Trabalho infantil ou escravo?

02/02/1997 às 00:00
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Quando se fala de criança carente, a primeira imagem que se tem é a de meninos e meninas de ruas, pedindo dinheiro em semáforos para sobreviver. Quando não, o pior, menores furtando ou cheirando cola para fugir da dura realidade em que vivem. Todavia, quando mergulham nesta mesma realidade, ela se torna, talvez, ainda pior e fantasmagórica, vez que, o infante vê sua incipiente força de trabalho ser explorada abusivo e desumanamente.

Dados colhidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) dão conta que 20% dos brasileiros já trabalham antes dos dez anos e 65,7% antes dos 15. Além disso, 7,5 milhões de brasileiros com idades entre dez e dezessete anos trabalham, representando 11,6% da mão-de-obra no país. Sendo que 70% dos casos recebem, em média, apenas meio salário mínimo.

Desde 1995, 145 fiscais do Ministério do Trabalho, coordenados pela Secretaria de Fiscalização do Trabalho do referido Ministério, percorrem o país de Norte a Sul para traçar um mapa do trabalho infantil. O relatório fica pronto em agosto. Até agora, estão prontos os mapas das regiões Sul, Nordeste e Centro-Oeste.

No Nordeste brasileiro, as crianças e adolescentes estão presentes em mais de 11 atividades. Destas, a colheita da cana-de-açúcar é a principal atividade onde o trabalho infantil está envolvido. Os Estados do Ceará e Pernambuco, juntamente com o Rio de Janeiro, são os recordistas na exploração de mão-de-obra infantil nos canaviais. Nesta atividade, as crianças cortam a cana, suportam o peso de sacos da planta e correm o risco até de sofrerem mutilação. Ademais, não trabalham menos de dez horas por dia, ficam expostos ao sol e fazem o serviço sem proteção nenhuma.

O mesmo panorama odioso se descortina nos sisais da Bahia; na cultura do fumo em Alagoas; na colheita da uva em Pernambuco e Rio Grande do Norte; nas salinas do Ceará, Piauí e Rio Grande do Norte; nas cerâmicas de Alagoas, Rio Grande do Norte, Bahia, Pernambuco, Piauí, Sergipe e Maranhão; e nas pedreiras de Pernambuco, Alagoas, Bahia, Rio Grande do Norte, Paraíba e Piauí.

Na região Sul, que ao lado do Sudeste, é considerada a mais rica e desenvolvida, a mão-de-obra infantil é explorada em 21 atividades. Só o Rio Grande do Sul concentra 11 dessas atividades.

As extrações de acácia e ametista no Rio Grande do Sul, pelos menores, são as que mais chocam. As crianças lavam as pedras de ametista com produtos químicos tóxicos sem nenhuma proteção, ficam expostos à fuligem da máquina de lixar a pedra e suportam o peso do minério das minas até o local de beneficiamento. Saliente-se que, nas lixas elas podem até perder o dedo.

Outrossim, a mão-de-obra infantil é usada nas madeireiras de Santa Catarina e Paraná; na produção de cerâmica no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná; nas cristaleiras de Santa Catarina; na construção civil dos centros urbanos do Paraná e Santa Catarina; na indústria moveleira e no curtume dos três estados sulistas.

Na zona urbana dos Estados do Sul, a situação se iguala ao Nordeste — escritórios, comércios e supermercados.

No Centro-Oeste a exploração da força de trabalho infantil é deprimente. Em Goiás, os adolescentes trabalham duro em jornadas diárias que não duram menos que 10 horas na colheita do algodão, do tomate e do alho. Todavia, o que mais impressiona são as olarias e cerâmicas, onde as crianças começam a trabalhar às quatro da manhã e vão até às cinco e meia da tarde. Segundo Eliana Bragança, assistente social que acompanha as pesquisas, nas pequenas e precárias fábricas de cerâmica, adolescentes menores de 14 anos chegam a empurrar carretas com mais de 150 quilos de tijolos sob um terreno irregular. E suportam o calor intenso dos fornos por horas até os tijolos ficarem prontos.

Na zona urbana de Mato Grosso, há crianças catadoras de lixo, que brincam, comem e tiram o sustento do dia, tentando separar o lixo reciclável para vender em outros lugares. Já no Mato Grosso do Sul as carvoarias batem recorde na exploração do trabalho infantil.

A Constituição Federal de 1988 dispõe que é proibido qualquer trabalho a menores de 14 (quatorze) anos, salvo na condição de aprendiz (cf. art. 7º, XXXIII c/c o art. 227, §3º, I). Além do que, é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde(...) além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (cf. art. 227, caput, da CF).

A norma constitucional acima é escancaradamente desrespeitada pelos seguintes motivos: 1º- O trabalho infantil é mais barato; 2º- Serve como complemento à renda familiar, muitas vezes, inexistente; 3º- falta de Programas do Poder Público que complementem a renda familiar.

O trabalho precoce de pessoas em desenvolvimento (crianças e adolescentes) é um ácido corrosivo que estrangula as perspectivas de aperfeiçoamento cultural e até mesmo físico desses entes. A sociedade e o Estado precisam despertar imediatamente para esta problemática que desafia, inclusive, o ordenamento jurídico pátrio.

O povo brasileiro precisa ver na criança e adolescente menos um caso de polícia, punição ou privação de liberdade e mais um caso de educação, ajuda e apoio. Precisa, também, desvencilhar-se dessa mentalidade arcaica e amoldar-se aos salutares princípios do Estatuto da Criança e Adolescência. Constata-se, facilmente, que a dificuldade não reside no compreender as idéias novas, mas no abandonar as antigas.

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Nessa perspectiva, o Programa Bolsa-Familiar — que consiste em pagar determinado montante à família que tenha seus filhos matriculados na escola pública e com determinada freqüência (implantado em algumas cidades brasileiras: Brasília, Boa Vista) — atende à necessidade de manter a criança na escola e complementar a renda familiar. Além do que, extingue o malfazejo trabalho infantil, tão prejudicial ao futuro do país e de nossas crianças. Desse modo, a própria família tem o máximo interesse em que a criança permaneça na escola.

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Sobre o autor
João Gaspar Rodrigues

Promotor de Justiça. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Membro do Conselho Editorial da Revista Jurídica do Ministério Público do Amazonas. Autor dos livros: O Ministério Público e um novo modelo de Estado, Manaus:Valer, 1999; Tóxicos..., Campinas:Bookseller, 2001; O perfil moral e intelectual do juiz brasileiro, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2007; Segurança pública e comunidade: alternativas à crise, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2009; Ministério Público Resolutivo, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2012.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, João Gaspar. Trabalho infantil ou escravo?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 2, n. 6, 2 fev. 1997. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1662. Acesso em: 23 dez. 2024.

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