I – A consulta
Pela Portaria 32/2007 (Processo 085/07-GAB), fui nomeado pelo Sr. Presidente da OAB/MS (Dr. FÁBIO TRAD) para "emissão de parecer sobre a constitucionalidade do benefício de Pensão Vitalícia concedida a ex-governadores do Estado de Mato Grosso do Sul" (art. 1º da Portaria).
Tendo pesquisado e refletido sobre o assunto, verifiquei que, para uma conclusão técnica acertada, seria necessário expedir ofício à Sra. Secretária de Estado de Administração, questionando sobre os atos (legais ou administrativos) que levaram à concessão das pensões, o que foi providenciado por intermédio de expediente (ofício SEC/OAB/MS/Nº 544/2007) assinado pelo Sr. Secretário-Geral da OAB/MS (Dr. ARY RAGHIANT NETO).
A resposta do Estado informou que "as pensões vitalícias dos ex-governadores foram concedidas sem ato administrativo, conforme previa o art. 164 da Constituição Estadual, então vigente" (ofício 1754/GAB/SAD/2007).
Ainda assim, porque faltaram esclarecimentos importantes, sugeri o envio de novo pedido ao Estado, o que se fez pelo ofício SEC/OAB/MS nº 591/2007, tendo a Sra. Secretária de Administração informado que os ex-Governadores Wilson Barbosa Martins, Marcelo Miranda Soares e Pedro Pedrossian "recebem pensão pelo Estado de Mato Grosso do Sul, e que nenhum deles está recebendo em duplicidade" (ofício 1956 GAB/SAD/2007).
Mais uma vez, pela insuficiência da resposta, insisti quanto a outros necessários esclarecimentos, oportunidade em que, juntamente com o estagiário FELIPE ZAMPIERI TERUIA, na última sexta-feira (21.09.07), às 8h20, fomos recebidos pela Sra. Secretária de Estado de Administração (Thie Higuchi Viegas dos Santos), oportunidade em que nos forneceu a relação dos ex-Governadores, com data de início e término dos mandatos, tendo ela afirmado, em resposta às perguntas que fizemos:
a) que Londres Machado, por ter exercido mandatos de Governador em caráter temporário, não recebe pensão do Estado a esse título;
b) que, relativamente ao período posterior a outubro/88, três ex-Governadores passaram a receber pensões (Marcelo Miranda Soares, Pedro Pedrossian e Wilson Barbosa Martins);
c) que nenhum desses ex-Governadores recebe pensão em duplicidade;
d) que não existe ato administrativo algum (ou processo administrativo) justificando a concessão dessas pensões;
e) que a pensão de Harry Amorim Costa foi extinta, em outubro/04, com o falecimento de sua esposa Amélia França Santana Costa.
Depois dessa longa apuração, ao final, quanto ao aspecto fático, pude concluir que:
a) recebe pensão vitalícia, na atualidade, por conta do art. 164 da Constituição Estadual de junho de 1979, a viúva do ex-Governador RAMEZ TEBET (que exerceu o mandato de 14.05.86 a 15.03.87);
b) recebem pensões vitalícias, na atualidade, pelos mandatos exercidos após outubro/88, os ex-Governadores MARCELO MIRANDA SOARES (exerceu o 2º mandato de 15.03.87 a 15.03.91, e a pensão começou a ser paga a partir de 1991), PEDRO PEDROSSIAN (exerceu o 2º mandato de 15.03.91 a 31.12.94, e a pensão começou a ser paga a partir de 1995) e WILSON BARBOSA MARTINS (exerceu o 2º mandato de 19.01.95 a 31.12.98, e a pensão começou a ser paga a partir de 1998).
Assim caracterizada a situação toda, passamos ao parecer.
II – O parecer
A questão da pensão do ex-Governador JOSÉ ORCÍRIO MIRANDA DOS SANTOS já está resolvida (STF, ADIn 3.853-2, em que, recentemente, concluiu-se pela inconstitucionalidade material de dispositivo da Constituição Estadual). Já a pensão do ex-Governador HARRY AMORIM COSTA, concedida por período anterior à Constituição Federal de 1988, já foi extinta, com o falecimento de sua esposa.
Agora, o que cabe analisar é se as demais pensões concedidas a ex-Governadores do Mato Grosso do Sul (e que continuam sendo pagas) são ou não inconstitucionais, conforme fui perguntado pelo Sr. Presidente da OAB/MS (Dr. FÁBIO TRAD).
O assunto merece respostas vinculadas ao período anterior à Constituição Federal de 1998 (de 05.10.88) e posterior à promulgação dessa Constituição.
II.a) Pensões concedidas no período anterior à promulgação da Constituição Federal de 1988
Nessa situação, recorde-se, encontra-se, na atualidade, apenas o ex-Governador RAMEZ TEBET (cuja pensão é recebida por sua viúva), já que a pensão do ex-Governador HARRY AMORIM COSTA foi dada por extinta, com o falecimento de sua esposa.
Pois bem. A 7ª Constituição Federal do Brasil (também conhecida como Emenda Constitucional nº 1, de 17.10.69), continha autorização para o pagamento de pensão vitalícia para ex-Presidentes da República, a saber:
Art. 184 – Cessada a investidura no cargo de Presidente da República, quem o tiver exercido, em caráter permanente, fará jus, a título de representação, desde que não tenha sofrido suspensão dos direitos políticos, a um subsídio mensal e vitalício igual ao vencimento do cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal.
Parágrafo único – Se o Presidente da República, em razão do exercício do cargo, for atacado de moléstia que o inabilite para o desempenho de suas funções, as despesas de tratamento médico e hospitalar correrão por conta da União.
Mais adiante, esse texto foi reformado pela EC 11/1978, tendo ficado assim redigido:
Art. 184 - Cessada a investidura no cargo de Presidente da república, quem o tiver exercido, em caráter permanente, fará jus, a título de representação, a um subsídio mensal e vitalício igual aos vencimentos do cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal.
Em razão desse específico fundamento de validade, vários Estados da Federação brasileira adotaram a mesma regra, especialmente para ex-Governadores.
Sobre o assunto, houve questionamentos perante o STF, que concluiu – após sucessivos julgamentos (resumo de tudo está anotado no acórdão da ADIn/MC 1.461-7, Rel. Min. Maurício Corrêa, votação unânime, julgamento de junho/96), em atenção à necessária SIMETRIA que deve haver entre atos do Constituinte Nacional e atos do Constituinte Estadual – que tais pensões somente seriam válidas enquanto vigente o padrão da Carta Federal.
Ou seja: válidas, sob o ponto de vista constitucional, seriam as previsões de Constituições Estaduais (sobre pensões vitalícias) apenas até quando continuasse vigente no sistema jurídico a norma-padrão no âmbito federal (o art. 184 da CF/69).
Revogada aquela disposição, como se deu a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 (que deixou de tratar do assunto), as Constituições Estaduais perderam o (necessário) fundamento de validade, ocorrendo desvalia jurídica do quanto legislado.
Vale a transcrição da ementa do acórdão do famoso julgamento do STF na ADIn/MC 1.461-7:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA LIMINAR. EX-GOVERNADOR DE ESTADO. SUBSÍDIO MENSAL E VITALÍCIO A TÍTULO DE REPRESENTAÇÃO. EMENDA À CONSTITUIÇÃO Nº 003, DE 30 DE NOVEMBRO DE 1995, DO ESTADO DO AMAPÁ.
1. Normas estaduais que instituíram subsídio mensal e vitalício a título de representação para Governador de Estado Prefeito Municipal, após cessada a investidura no respectivo cargo, apenas foram acolhidas pelo Judiciário quando vigente a norma-padrão no âmbito federal.
2. Não é, contudo, o que se verifica no momento, em face de inexistir parâmetro federal correspondente, suscetível de ser reproduzido em Constituição de Estado-Membro.
3. O Constituinte de 88 não alçou esse tema a nível constitucional.
4. Medida liminar deferida.
Criado o Estado de Mato Grosso do Sul em outubro/77, editou-se nossa 1ª Constituição Estadual, promulgada em junho de 1979 (porque o 1ª Governo sul-mato-grossense foi instalado apenas em 01.01.79).
Essa Carta Estadual, seguindo o modelo da Carta Federal, estabeleceu (no art. 164) que "Cessada a investidura no cargo de Governador do Estado, quem o tiver exercido em caráter permanente, fará jus, a título de representação, a um subsídio mensal e vitalício igual ao vencimento do cargo de desembargador do Tribunal de Justiça".
Com fundamento, então, no art. 164 da Constituição Estadual, que continuou tendo validade até a edição da Constituição Federal de 05.10.88, foram concedidas pensões aos ex-Governadores HARRY AMORIM COSTA e RAMEZ TEBET (que exerceram mandatos em períodos anteriores à promulgação da Constituição Federal de 1988).
Tem-se, portanto, que as pensões concedidas durante esses períodos estão corretas, porque atenderam à normatividade jurídica existente para a época, sendo certo, repita-se e em reforço do que se sustenta, que o STF, em vários pronunciamentos, decidiu que as Constituições Estaduais poderiam, apenas até outubro de 1988 (quando foi promulgada a Constituição atual), ter criado essas pensões mensais vitalícias.
II.b) Pensões concedidas no período posterior à promulgação da Constituição Federal de 1988
Mas outras pensões foram garantidas pelo Estado de Mato Grosso do Sul após a edição da Constituição Federal de 1988, aos seguintes ex-Governadores: MARCELO MIRANDA SOARES (a partir de 1991), PEDRO PEDROSSIAN (a partir de 1995) e WILSON BARBOSA MARTINS (a partir de 1998), tudo conforme as respostas recebidas da Secretaria de Estado de Administração e, ainda, de acordo com o que nos afirmou, pessoalmente, a mesma Secretária.
Quanto a esses pensões, são elas contrárias ao Direito, porque:
a) segundo o que já havia decidido o STF (ADIn/MC 1.461-7, ausente o modelo federal (art. 184 da CF/69), que perdurou apenas até a data da promulgação da Constituição Federal atual (05.10.88), não havia como as demais unidades da Federação continuarem a garantir o pagamento de pensões vitalícias a ex-Governadores (violação do princípio da simetria);
b) mas o mais grave de tudo é que, relativamente às pensões concedidas a partir de outubro/88, as mesmas foram pagas sem que existisse no sistema qualquer base jurídica autorizando o pagamento (depois da Constituição Federal de 1988, com a edição da Constituição Estadual de 1989, não foi editada qualquer disposição legal determinadora do pagamento de tais "pensões vitalícias"). Em razão disso, sequer existe, no âmbito da Secretaria de Estado de Administração, processo administrativo ou qualquer ato administrativo justificando o porquê de tais pagamentos, o que é gravíssimo;
c) não fossem suficientes as considerações retro-expostas, que invalidam por completo as pensões posteriores a outubro/88, ainda há que se considerar o recente julgamento do STF no caso da pensão do ex-Governador JOSÉ ORCÍRIO MIRANDA DOS SANTOS (ADIn 3.853-2), em que, por ampla maioria (apenas um voto contrário), decidiu-se ser inconstitucional esse tipo de "graça com recursos públicos", porque, segundo o voto da Relatora (Min. Cármen Lúcia), o ato combatido desatendeu, a um só tempo, os princípios da moralidade, impessoalidade, isonomia e simetria (porque não existe mais o precedente da Carta de 1969, relativo ao seu art. 184), implicando em retribuição pecuniária a título gratuito. Sendo assim, diante desse forte e recente precedente do STF, não há como sustentar o contrário do que está posto neste parecer, especialmente se for considerado o papel relevantíssimo da jurisprudência no Estado de Direito, que é o de operar como uma segura diretriz para o Poder Judiciário e contribuir para a consecução da ordem jurídica justa e isonômica (lição de Rodolfo de Camargo Mancuso, "Divergência Jurisprudencial e Súmula Vinculante", RT, 1999, p. 41-42).
São inválidas, portanto, porque contrárias ao Direito vigente, as pensões vitalícias pagas, na atualidade, aos ex-Governadores MARCELO MIRANDA SOARES, PEDRO PEDROSSIAN e WILSON BARBOSA MARTINS.
III – O necessário controle jurisdicional das pensões pagas indevidamente
Como se viu, as pensões vitalícias pagas aos ex-Governadores MARCELO MIRANDA SOARES, PEDRO PEDROSSIAN e WILSON BARBOSA MARTINS, padecem de sérios vícios jurídicos.
O pagamento dessas pensões se caracteriza não como ATO NULO ("o que nasce afetado por vício insanável por ausência ou defeito substancial em seus elementos constitutivos ou no procedimento formativo", segundo Hely Lopes Meirelles, "Direito Administrativo Brasileiro", Malheiros, 29ª ed., 2004, p. 171), mas sim como ATO INEXISTENTE, algo que se verifica, como no caso examinado, em situações em que "não existem os requisitos mínimos necessários à qualificação de um ato como jurídico. Não obstante, podem existir alguns eventos no mundo dos fatos. Mas esses eventos são totalmente desconformes aos modelos jurídicos. O grau de desconformidade é tão intenso que nem cabe aludir a um `ato jurídico defeituoso´ -- existe apenas ato material, destituído de qualquer carga jurídica" (Marçal Justen Filho, "Curso de Direito Administrativo", Saraiva, 2005, p. 255).
Realmente, os atos examinados (pensões concedidas a partir de outubro/88) não apenas contrariam o Direito e o interesse público, indo muito além, porque produzem efeitos no mundo fenomênico (já que os ex-Governadores estão a receber as pensões) sem que, para tanto, sequer exista um fundamento jurídico qualquer (exarado em processo administrativo) justificando os pagamentos, o que, evidentemente, conduz ao resultado da invalidade, dado que, como é de divulgação corrente, "ato inexistente ou ato nulo é ato ilegal e imprestável, desde o seu nascedouro" (Hely Lopes Meirelles, ob. cit., p. 172).
A situação, pois, está a merecer o necessário controle jurisdicional ("Impõe-se ressaltar que o valor jurídico do ato inconstitucional é nenhum. É ele desprovido de qualquer eficácia no plano do Direito", STF, RE 136.215-4/RJ, Rel. Min. Otávio Galloti), cabendo verificar por intermédio de qual medida processual.
Para o caso não cabe o controle concentrado de constitucionalidade, porque não se está diante de ato normativo (somente tal categoria de ato é que se submete ao controle pela via da ação direta de inconstitucionalidade ou pela via da ação declaratória de constitucionalidade, conf. art. 102, I, "a", da CF/88, e Lei Federal 9.868/99).
Também entendo que não se está diante de situação que leve à propositura, pelo Conselho Federal da OAB, da argüição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1º, da CF/88, e Lei Federal 9.882/99), por ser difícil caracterizar a situação toda como equivalente a uma "lesão a preceito fundamental", além de que, segundo o § 1º do art. 4º da LF 9.882/99, "Não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver outro meio eficaz de sanar a lesividade", algo que realmente existe, como demonstraremos.
A OAB, enquanto autarquia federal de regulação de categoria profissional (essa é a sua natureza jurídica, pela leitura abrangente do art. 44 do Estatuto da Advocacia), tem legitimidade para propor AÇÃO CIVIL PÚBLICA (art. 5º, inciso IV, da Lei Federal 7.347/85; arts. 54, inciso XIV, e "caput" do 57, ambos da Lei Federal 8.906/94), independentemente de qualquer pertinência temática (ver, por todos, Paulo Luiz Netto Lôbo, "Comentários ao Estatuto da Advocacia e da OAB", Saraiva, 3ª ed., 2002, p. 266).
Trata-se de importante mecanismo processual, que também se presta à defesa do patrimônio público e da moralidade administrativa (RT 735/161), que vem sendo bastante utilizado pelo Conselho Federal da OAB (no site da entidade federal existem notícias de ações dessa natureza, como a mais recente, tratando da destituição dos Diretores da ANAC) e por Conselhos Seccionais (como o de São Paulo, que já ajuizou inúmeras ações civis públicas, sobre os mais diversos e variados temas, como se vê do seu site).
Estou ciente, em boa verdade, de que, ajuizada a ação civil pública para o caso examinado, enfrentaremos dificuldades quanto à alegação de prescrição (o STJ, em tema ainda não muito bem definido, ora decide que a ação civil pública prescreve em 5 anos, RSTJ 169/214, ora decide que a ação civil pública é imprescritível, por ausência de previsão legal a respeito, REsp 586.248), mas há que se observar que estamos a caracterizar os atos materiais de pagamento das pensões vitalícias após outubro/88 como ATOS INEXISTENTES, que são imprescritíveis (é a orientação de Celso Antônio Bandeira de Mello, "Curso de Direito Administrativo", Malheiros, 20ª ed., 2006, p. 451). Além disso, extraio de recente e bem fundamentada monografia (Giovani Bigolin, "Segurança Jurídica – A Estabilização do Ato Administrativo", Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2007, p. 172) que "em se tratando de má-fé da Administração, a ensejar situação de improbidade administrativa, ainda que já tenha ocorrido a fluência do prazo de decadência para a desconstituição do ato fraudulento, ainda é possível o ajuizamento da ação de ressarcimento de danos ao Erário, a qual, segundo majoritária corrente doutrinária, é imprescritível, a teor do art. 37, § 5º, da Carta Magna".
IV – Respostas
Pelo exposto, respondo que:
a) são constitucionais as pensões concedidas a ex-Governadores do Mato Grosso do Sul no período compreendido entre a promulgação da 1ª Constituição Estadual (junho/79) até a promulgação da Constituição Federal atual (outubro/88);
b) são inconstitucionais as pensões concedidas a ex-Governadores do Estado de Mato Grosso do Sul a partir de 05.10.88 (data da promulgação da Constituição Federal atual);
c) é cabível a ação civil pública, a ser ajuizada pelo Conselho Seccional da OAB de Mato Grosso do Sul, visando questionar a validade das pensões concedidas a partir de outubro/88.