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O crime de embriaguez ao volante da Lei nº 11.705/2008 e suas repercussões jurídico-penais.

A pseudo-efetividade e a atecnia legislativa

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5 DA RETROATIVIDADE DA NORMA BENÉFICA

O ordenamento jurídico pátrio abarcou o princípio da retroatividade benigna da lei penal garantia de índole constitucional, nos termos do art. 5º, XL, da Constituição Federal.

Como já demonstrado, o novo tipo penal de embriaguez ao volante estabeleceu uma quantidade específica de álcool no sangue – 0,6 dg/l – para a configuração do crime, ao contrário do tipo revogado que apenas estipulava que o condutor estivesse "sob influência de álcool", sem mensurar o montante.

Portanto a novel legislação, ao estabelecer critérios estritamente objetivos para a caracterização do crime de embriaguez, trouxe uma limitação no que concerne a prova da embriaguez, que agora somente pode ser aferida por provas técnicas, ou seja, pelo exame de sangue ou bafômetro

O Tribunal vem se manifestando a favor da retroatividade do novel art. 306, do CTB, conforme se observa do decisium abaixo:

Ementa: HABEAS CORPUS - CONSTATAÇÃO DE EMBRIAGUEZ - ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS - ART. 306 DO CTB - CONCENTRAÇÃO DE ÁLCOOL NO SANGUE - EXAMES TÉCNICOS ESPECÍFICOS - IMPRESCINDIBILIDADE.

I. A ANTIGA REDAÇÃO DO ART. 306 DO CTB EXIGIA APENAS QUE O MOTORISTA ESTIVESSE SOB A INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL, SEM INDICAR QUANTIDADE ESPECÍFICA. SIMPLES EXAME CLÍNICO PODERIA PERFEITAMENTE ATENDER À EXIGÊNCIA DO TIPO.

II. A LEI 11.705/08 INCLUIU NA REDAÇÃO DO ARTIGO A "CONCENTRAÇÃO DE ÁLCOOL POR LITRO DE SANGUE IGUAL OU SUPERIOR A 6 (SEIS) DECIGRAMAS" OU "TRÊS DÉCIMOS DE MILIGRAMA POR LITRO DE AR EXPELIDO DOS PULMÕES" (ART. 2º DO DECRETO 6.488 DE 19.06.08).

III. A PROVA TÉCNICA É INDISPENSÁVEL E SÓ PODE SER AFERIDA COM O USO DO CHAMADO "BAFÔMETRO" OU COM O EXAME DE DOSAGEM ETÍLICA NO SANGUE.

IV. O LEGISLADOR PROCUROU INSERIR CRITÉRIOS OBJETIVOS PARA CARACTERIZAR A EMBRIAGUEZ, MAS INADVERTIDAMENTE CRIOU SITUAÇÃO MAIS FAVORÁVEL ÀQUELES QUE NÃO SE SUBMETEREM AOS EXAMES ESPECÍFICOS. A LEI QUE PRETENDIA, COM RAZÃO, SER MAIS RIGOROSA, ENGESSOU O TIPO PENAL.

V. SE A LEI É MAIS FAVORÁVEL, RETROAGE PARA TORNAR A CONDUTA ATÍPICA.VI. ORDEM CONCEDIDA PARA TRANCAR A AÇÃO PENAL, POR AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA.

(HC 2008.00.2.009130-0. TJDFT. Órgão Julgador : 1ª Turma Criminal. Rel: SANDRA DE SANTIS. DJ-e: 26/11/2008)

Assim, criou-se uma situação mais favorável àqueles condutores flagranteados que, na vigência da lei anterior, não foram submetidos aos exames técnicos, o que acarreta, indubitavelmente na retroatividade da lei nova mais branda ocasionando a atipicidade da conduta dos mesmos.

6 DA EXISTÊNCIA DE PUNIÇÃO ADMINISTRATIVA PARA EMBRIAGUEZ AO VOLANTE

Vale lembrar que não estamos a defender a não punição administrativa da embriaguez ao volante. Esta sempre foi prevista no art. 165 do CTB, como infração gravíssima, com pena de multa multiplicada por cinco, suspensão do direito de dirigir, além da medida administrativa de retenção do veículo até apresentação de condutor habilitado.

Argumentamos, no entanto, que esta novel lei está incriminando e marginalizando muitos cidadãos, que beberam e não dirigiram de forma "anormal", ou seja, não provocaram acidentes ou sequer minimamente criaram risco a segurança viária ou a outrem.

Entendemos que uma melhor política criminal seria a criminalização da embriaguez ao volante, que sempre foi uma infração administrativa de trânsito, somente quando esta gera um perigo concreto de dano a segurança viária ou a outrem. Vale dizer, quando a embriaguez ao volante aparece somada a uma condução anormal.

Assim, reservaríamos o direito penal às condutas humanas mais danosas à sociedade e estaríamos em consonância com o princípio penal da subsidiariedade.


7 DAS ODIOSAS TENTATIVAS DE REMENDAR A LEI

Visando, pragmaticamente, solucionar a atecnia legislativa, surgem odiosas tentativas governamentais em tentar suprimir direitos fundamentais, bem como esdrúxulas decisões judiciais, que em um ativismo punitivista violam o princípio penal da tipicidade, visando remendar o texto legal atécnico.

7.1 Atos normativos infra-legais tentam dar efetividade a novel legislação

Logo após a publicação da novel legislação e a constatação de sua inefetividade, a Advocacia Geral da União, instada a pronunciar-se pelo DPRF – Departamento de Polícia Rodoviária Federal, publicou parecer, determinando, pasmem, a prisão por desobediência daqueles que se recusassem a realizar os exames de alcoolemia.

O pior viria a seguir, o Parecer nº 121/2009/AGU/CONJUR/DPRF/MJ, publicamente divulgado no site do site Conjur (http://www.conjur.com.br/2009-set-07/agu-sustenta-recusar-teste-bafometro-crime), sugeriu ao Diretor Geral do DPRF:

"Diante do exposto, restituo os autos ao Diretor-Geral, com proposta favorável ao acolhimento da Nota de fls. 03/11, uma vez que a matéria encontra-se muito bem fundamentada, cujo entendimento já foi tratado no Fórum Brasileiro de Segurança realizado na cidade do Rio onde se chegou a conclusão de que o Uso do Bafômetro é legal e caso o condutor nega-se a fazer o teste este deve ser enquadrado no crime de desobediência art. 330 do Código Penal.

Sugiro ainda que seja dado conhecimento a todas as Regionais para aplicação do contido na Nota de fls. 03/11, devendo alertar as Regionais que em caso de descumprimento responderá sob as penas da lei aquele que deu causa ao seu não cumprimento" (grifos aditados)

Desta forma, tentando desesperadamente dar efetividade a um texto legal esdrúxulo e demagogicamente feito, se impôs aos policiais rodoviários federais o cumprimento deste parecer citado, ordenando que prendessem aqueles que se recusassem a realizar os testes de alcoolemia. Tendo, inclusive, se utilizado da ameaça da esfera correicional para aqueles que não seguissem o parecer.

Entretanto, um ato administrativo não possui o condão de afastar princípios constitucionais penais, como o direito ao silêncio e a não produzir provas contra si mesmo.

O ilustre penalista Damásio E. de Jesus [06] esboça entendimento similar ao exposto, afirmando que:

Ora, se o direito à não-auto-incriminação adquiriu um status constitucional, é evidente que nenhuma outra regra, muito menos de cunho administrativo, pode servir de instrumento de persuasão para que o indivíduo viole as suas próprias convicções e, especialmente, os seus direitos fundamentais.

Depois de seguidas e contundentes críticas à posição adotada pela AGU e pelo DPRF, formuladas por penalistas, jornalistas e sociedade civil. O Departamento de Polícia Rodoviária Federal voltou atrás e publicou a Instrução Normativa 3, de 25 de agosto de 2009, (disponível em http://www.conjur.com.br/2009-set-14/policia-rodoviaria-ignora-agu-nao-prendera-quem-recusar-bafometro) instruindo os policiais que "não configura crime a recusa do condutor em realizar qualquer um dos procedimentos deste manual".

7.2 Decisões judiciais adotam um ativismo punitivista, violando o princípio da legalidade penal

A inefetividade da novel legislação é cada vez mais afirmada e aceita doutrinariamente e jurisprudencialmente, entretanto alguns julgados destoam na realidade e procuram adotar um ativismo punitivista, violando o princípio da legalidade penal.

Isto porque, em desrespeito ao tipo legal do novel art. 306 do CTB, querem dar novo entendimento ao dado objetivo de 0,6 dg/l de álcool, o viola diretamente o princípio da legalidade penal.

O princípio da legalidade penal determina que somente existirá crime quando estritamente configurados os elementos do tipo penal, o que somente pode ser previsto em lei.

Apesar disto, algumas decisões, querem emendar a lei, para dar efetividade ao crime de embriaguez, como se o julgador agora pudesse criar novos crimes para atender ao clamor público por justiça.

Um evidente exemplo deste equivocado ativismo punitivista foi uma decisão da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça:

PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 306 DO CTB. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA PERSECUÇÃO PENAL. COMPROVAÇÃO DA EMBRIAGUEZ. EXAME DE ALCOOLEMIA NÃO REALIZADO POR AUSÊNCIA DE EQUIPAMENTOS NA COMARCA. REALIZAÇÃO DE EXAME CLÍNICO.

I - O trancamento da ação penal por meio do habeas corpus se situa no campo da excepcionalidade (HC 901.320/MG, Primeira Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJU de 25/05/2007), sendo medida que somente deve ser adotada quando houver comprovação, de plano, da atipicidade da conduta, da incidência de causa de extinção da punibilidade ou da ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito (HC 87.324/SP, Primeira Turma, Relª. Minª. Cármen Lúcia, DJU de 18/05/2007). Ainda, a liquidez dos fatos constitui requisito inafastável na apreciação da justa causa (HC 91.634/GO, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 05/10/2007), pois o exame de provas é inadmissível no espectro processual do habeas corpus, ação constitucional que pressupõe para seu manejo uma ilegalidade ou abuso de poder tão flagrante que pode ser demonstrada de plano (RHC 88.139/MG, Primeira Turma, Rel. Min. Carlos Britto, DJU de 17/11/2006). Na hipótese, há, com os dados existentes até aqui, o mínimo de elementos que autorizam o prosseguimento da ação penal. II - Para comprovação do crime do art. 306 do CTB, o exame de alcoolemia somente pode ser dispensado, nas hipóteses de impossibilidade de sua realização (ex: inexistência de equipamentos necessários na comarca ou recusa do acusado a se submeter ao exame), quando houver prova testemunhal ou exame clínico atestando indubitavelmente (prontamente perceptível) o estado de embriaguez. Nestas hipóteses, aplica-se o art. 167 do CPP. III - No caso concreto, o exame de alcoolemia não foi realizado por inexistência de equipamento apto na comarca, e não houve esclarecimento da razão pela qual não se fez o exame de sangue. Entretanto, foi realizado exame clínico. Desta forma, considerando que não houve a produção de prova em sentido contrário, é demasiadamente precipitado o trancamento da ação penal.

(HC 132.374/MS. STJ. 5ª Turma. Rel. Min. Felix Fischer, DJ: 16.11.09)

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Aqui pedimos vênia para destacar e enaltecer o escólio dos ilustres penalistas de Luiz Flávio Gomes e Silvio Maciel [07], que discorreram brilhantemente sobre o verberado decisum acima:

"A decisão encerra um equívoco técnico inadmissível. Conforme já mencionado, a quantidade mínima de álcool por litro de sangue, de acordo com a nova redação típica do art. 306 do CTB, passou a constituir elementar do tipo penal. Nada tem a ver com a materialidade delitiva sobre o "estado de embriaguez", mas com a tipicidade da conduta. Se a quantidade mínima de álcool no sangue do condutor não ficar comprovada e, portanto, não for mencionada expressamente na denúncia ou queixa, o fato narrado na exordial será evidentemente atípico, sendo o caso de rejeição da peça acusatória, ex vi do disposto no art. 395, I c/c art. 41, ambos do Código Processual Penal de regência, ou mesmo rejeição por falta de uma das condições da ação (art. 395, II do CPP), qual seja, a possibilidade jurídica do pedido, em razão da atipicidade do fato (dirigir sob o efeito de álcool, por si só, não é crime; crime é conduzir veículo com o mínimo de seis decigramas de álcool por litro de sangue)... Fechado esse primeiro ponto, é pertinente ainda colocar que a decisão do Superior Tribunal de Justiça merece ser repudiada pela insegurança jurídica ínsita nela mesma (insegurança, a propósito, incompatível com a certeza probatória exigida pelo direito penal incriminador), na medida em que aceita que um exame visual, inclusive feito por testemunhas, ateste a comprovação da "quantidade" de álcool no sangue exigida para a tipicidade da conduta. É que o álcool age de forma diferente no organismo humano, de acordo com uma série de fatores endógenos, tais como sexo, idade, peso, hábito ou não de beber etc. Assim, v.g. num bloqueio policial, uma mulher magra, sem hábito de beber e com o estômago vazio poderá ser responsabilizada por estar com sintomas "evidentes" de embriaguez (atestados pelo exame visual de policiais desprovidos do etilômetro) em razão da ingestão de uma cerveja em lata; ao passo que no mesmo bloqueio policial poderá não ser constatada a embriaguez de um homem obeso, que acabou de fazer uma reforçada refeição, habituado a beber e que acabara de ingerir três cervejas em lata. Nesse exemplo, o condutor com maior quantidade de álcool no sangue não será responsabilizado; a condutora, com menos quantidade de álcool no sangue, será punida. Tudo a depender do tão criterioso quanto subjetivo exame visual das testemunhas (policiais ou civis).

Este abalizado entendimento dos supracitados doutrinadores deve prevalecer na jurisprudência. Inclusive, o Supremo Tribunal Federal, através do Ministro Eros Grau, apreciando pedido cautelar no HC 100.472, decisão publicada em 02 setembro de 2009, assim se manifestou sobre a necessidade do exame técnico para configuração do delito:

DECISÃO: Habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado contra ato monocrático consubstanciado em decisão, do STJ, que indeferiu pleito cautelar em idêntica via processual. O paciente, preso em flagrante sob a acusação da prática do crime tipificado no art. 306 do Código de Trânsito, foi posto em liberdade mediante o pagamento de fiança arbitrada em R$ 1.500,00 (mil e quinhentos reais). Os impetrantes alegam que à configuração do mencionado delito é necessária a comprovação clínica da embriaguez, que se dá com a presença de 6 (seis) decigramas de álcool por litro de sangue. Assim, não tendo havido essa comprovação, sua conduta seria atípica. Requerem seja afastada a Súmula 691 desta Corte e concedida a liminar a fim de suspender a audiência destinada à proposta de transação penal, a ser realizada no dia 1º de setembro vindouro. É o relatório. Decido. O tipo previsto no art. 306 do CTB requer, para sua realização, concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas por litro de sangue. Parece-me evidente que a imputação delituosa há de ser feita somente quando comprovado teor alcoolico igual ou superior ao previsto em lei. Ora, não tendo sido realizado o teste do "bafômetro", falta, obviamente, a certeza da satisfação desse requisito, necessário, repita-se, à configuração típica. O periculum in mora resulta da possibilidade de a transação penal ser concretizada, com gravames para o paciente; se não for, a instauração de ação penal em situação passível de ser reconhecida a atipicidade justifica, igualmente, a concessão de liminar. Excepciono a regra da Súmula 691/STF e concedo a liminar, a fim de suspender a audiência designada para o dia 1º de setembro do corrente ano. Comunique-se a decisão ao Superior Tribunal de Justiça, ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e ao Juízo de Direito da Vara de Delitos de Trânsito de Brasília (fl. 96 do apenso). Publique-se. Brasília, 27 de agosto de 2009. Ministro Eros Grau - Art. 38, I, do RISTF - 1

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Sobre o autor
Fernando Batista de Oliveira Vieira

Policial Rodoviário Federal, Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia, Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Estácio de Sá.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIEIRA, Fernando Batista Oliveira. O crime de embriaguez ao volante da Lei nº 11.705/2008 e suas repercussões jurídico-penais.: A pseudo-efetividade e a atecnia legislativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2567, 12 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/16963. Acesso em: 23 nov. 2024.

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