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O Estado como promotor de ações afirmativas e a política de cotas para o acesso do negro à universidade

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15/07/2010 às 15:45
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"Em todo o mundo... Minorias étnicas continuam a ser desproporcionalmente pobres, desproporcionalmente afetadas pelo desemprego e desproporcionalmente menos escolarizadas que os grupos dominantes. Estão sub-representadas nas estruturas políticas e super-representadas nas prisões. Têm menos acesso a serviços de saúde de qualidade e, conseqüentemente, menor expectativa de vida. Estas, e outras formas de injustiça racial, são a cruel realidade do nosso tempo; mas não precisam ser inevitáveis no nosso futuro".

(Kofi Annan, Secretário Geral da ONU, março, 2001) [01]


RESUMO

O presente artigo tem por objetivo fazer uma breve exposição acerca das políticas de ação afirmativa na área universitária com a inclusão do quesito raça. Inicialmente, far-se-á uma breve evolução sobre a trajetória dos direitos fundamentais. Logo após, faremos uma análise do conceito de igualdade, ponto fulcral quando examinamos tais políticas. Ainda, discorreremos um pouco sobre a experiência norte-americana, justo a que irradiou os efeitos de tal política pública mais candentemente para o mundo, e, também, noticiaremos a vitória da Procuradoria-Regional Federal da 4ª Região em parceria com o corpo jurídico da Universidade Federal do Paraná no caso da implantação das cotas raciais nesta Universidade. Por fim, ainda que sob uma mirada, dado o escopo exíguo necessário ao presente trabalho, lançaremos algumas conclusões sobre a constitucionalidade de tais programas, do que seguiremos para a apresentação de referências bibliográficas a cuja leitura remetemos, por indispensáveis ao exame aprofundado de tema tão caro ao Estado Democrático de Direito: a igualdade.


1-A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os direitos humanos, originariamente, tiveram como função fazer com que o Estado não interferisse, ou o fizesse no menor grau possível, na autonomia privada dos cidadãos, ou seja, os direitos dos indivíduos perante o Estado se caracterizavam como de defesa (SARLET, 2004, p. 54). O cenário de então, com a Declaração de Direitos do Povo da Virgínia, de 1776, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, - marcos do início da era contemporânea -, estava ainda muito ressentido pelo Estado absolutista até então vigente.

Sobre o termo gerações de direitos, SARLET prefere descartar o seu uso, em prol do termo dimensão, pois, este sim, denota a complementariedade entre os direitos sucessivamente, e não, substitutividade, como faz expressar aquele primeiro vocábulo (SARLET, 2004, p. 53).

Nesse estádio, que a doutrina convencionou chamar de 1ª dimensão, as garantias aspiradas diziam respeito à liberdade individual, de empresa e de pensamento. A igualdade formal bastava num momento em que os agentes econômicos participavam de um sistema de livre concorrência. Assim o vemos em ALEXY: "Los derechos de defensa del ciudadano frente al Estado son derechos a acciones negativas (omisiones) del Estado". (ALEXY, p. 419)

Contudo, a sociedade se transformava rapidamente, e ao Estado não era mais suficiente que garantisse somente os direitos de defesa aos cidadãos. A Revolução Industrial, como efetivamente provocou crescimento econômico, também aumentava cada vez mais a desigualdade na repartição da riqueza.

No final do século XIX, surgem movimentos sociais e, com eles, novas concepções filosóficas e econômicas. Karl Marx foi um dos maiores críticos do sistema então vigente, diagnosticando a concentração de renda que estava sendo gerada pelo processo de industrialização, fazendo com que cada vez mais o excedente do tempo de trabalho dos operários fosse apropriado pelos donos dos fatores de produção.

Nas palavras de PINHO (1998, p. 41):

"O capitalismo atomizado e concorrencial do início do século XIX cedera lugar a um capitalismo molecular ou de grandes concentrações econômicas, de forte tendência monopolística; o Estado abandonara sua passividade de simples guardião da ordem para interferir, cada vez mais, no campo econômico..."

Assim, surgem os direitos fundamentais de segunda dimensão, calcados nos ideais sociais das Constituições do México, 1917, e Weimar, 1919, demonstrando uma preocupação para que o Estado, sim, interfira positivamente na sociedade, justamente nos âmbitos econômico, social e cultural. Veja-se: aqui, já falamos de ações positivas do Estado na sociedade.

Sobre o assunto: "...estes direitos fundamentais, no que se distinguem dos clássicos direitos de liberdade e igualdade formal, nasceram abraçados ao princípio da igualdade, entendida esta num sentido material"( BONAVIDES, 1997, p. 518).

Nessa quadra, o Estado passa a ter uma participação ativa na sociedade. Na história do século XX, passamos a conviver com o Welfare State, Estado de bem-estar social. Progressivamente, mais recursos públicos são destinados a gastos sociais, como saúde, educação e previdência social. O Estado passa a ser devedor de prestações positivas da sociedade, como nos ensina ALEXY: (ALEXY, 2002, p. 422)

"Para el problema de los derechos subjetivos a prestaciones tienen importância, sobre todo, lãs decisiones em lãs que no solo se habla - como suele suceder - de obligaciones objetivas Del Estado, sino que, además, se analizan derechos subjetivos a acciones positivas"

Aqui, veja-se, temos a mudança do paradigma do Estado, de um modelo passivo para um ativo. Nas palavras de SARMENTO, destacamos a utilização da palavra ativa "promoção": (SARMENTO, 2006, p. 65)

"Embora continue sendo essencial proteger as pessoas do arbítrio do Estado, os poderes públicos são agora concebidos como responsáveis pela promoção e defesa dos direitos fundamentais, diante dos perigos que rondam as pessoas na própria sociedade. Isto justificará uma ingerência estatal muito mais profunda e extensa…"

Ainda, aponta-nos SARLET, uma terceira dimensão dos direitos humanos. Nesta, a titularidade sai do indivíduo passando para a coletividade, o povo, a nação. Ressaltam a importância os direitos à paz e ao meio-ambiente sadio. Como matiz de sua caracterização, exigem uma postura eminentemente negativa. Digno de nota, SARLET os enquadra como atualização dos direitos da 1ª geração, adaptados às novas exigências da nova sociedade contemporânea.

Anote-se, ainda, que SARLET nos noticia a categoria da 4ª geração dos direitos fundamentais, mas alerta: "...no entanto, ainda aguarda sua consagração na esfera do direito internacional e das ordens constitucionais internas." (SARLET, 2004, p. 59.) Direito à informação e à participação popular direta, dentre outros, marcam essa nova dimensão, na qual o ponto realmente diferenciador é a garantia de capacitação dos indivíduos para fazerem parte de uma sociedade globalizada.( BONAVIDES, 1997, p. 526)

Por fim, além de contarmos com direitos fundamentais de dimensões elevadíssimas, não podemos nos esquecer de lhe emprestar efetividade, busca que é bem assinalada por CLÉVE (1995, p. 33-53), no sentido de que, desde o início dos anos 90, o Brasil passou a conhecer uma nova geração de constitucionalistas, com o propósito de efetivar os princípios e valores do texto da Carta Maior para o mundo real.


2- IGUALDADE FORMAL E MATERIAL

O conceito de igualdade acompanhou a evolução dos direitos fundamentais, tal que, no seu nascedouro, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, aquela era tida em seu aspecto formal. E, aqui, já nos valemos de RIOS, quando define contextualizadamente aquela como a "proibição da instituição de qualquer distinção fundada nos critérios proibidos de diferenciação, gerando, por assim dizer, um direito à indiferença.", sempre tomando como paradigma abstrato e universalizante de comparação os padrões dos grupos dominantes, produzindo, assim uma pseudoneutralidade. (RIOS, 2004, p. 27-29)

Contudo, os movimentos econômicos e sociais dos séculos XVIII e XIX reforçaram a desigualdade fática entre os homens, a ponto de se chegar à indagação de COMPARATO: (1993, p. 77)

"o reconhecimento incontestável, nos dias que correm, de que os homens nascem iguais, em dignidades e direitos, mas vivem, freqüentemente, em situações das mais escandalosa desigualdade quanto às condições sócio-econômicas básicas (educação, saúde, habitação, trabalho, previdência), não estaria a indicar que o velho princípio da isonomia acabou sendo superado na prática?"

Evoluímos, então, para a conceituação da igualdade em seu sentido material. Na verdade, idéia presente já em Aristóteles de que "os iguais devem ser tratados como iguais e os desiguais como desiguais, na medida de suas desigualdades." (ARISTÓTELES, 1992). Veja-se que também em KELSEN tínhamos tal noção da necessidade de diferenciação jurídica para comportar a desigualdade fática existente: [02]

"A igualdade dos sujeitos na ordenação jurídica, garantida pela Constituição, não significa que estes devam ser tratados de maneira idêntica nas normas e em particular nas leis expedidas com base na Constituição. A igualdade assim entendida não é concebível: seria absurdo impor a todos os indivíduos exatamente as mesmas obrigações ou lhes conferir exatamente os mesmos direitos sem fazer distinção alguma entre eles, como, por exemplo, entre crianças e adultos, indivíduos mentalmente sadios e alienados, homens e mulheres".

Acerca das condições para que uma diferenciação não seja arbitrária, magistralmente ensina-nos BANDEIRA DE MELLO (2005, p. 41):

"Para que um discrímen legal seja convivente coma isonomia,consoante visto até agora, impende que concorram quatro elementos:

a)que a desequiparação não atinja de modo atual e absoluto, um só indivíduo;

b)que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de direito sejam efetivamente distintas entre si,vale dizer, possuam características, traços,nelas residentes,diferençados;

c)que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica;

d)que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para o bem público."

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Na mesma linha, PULIDO, na justificação do tratamento diferenciado para o alcance da efetiva igualdade: [03]

"A su vez, este deber se concreta en cuatro mandatos: (1) un mandato de trato idéntico a destinatarios que se encuentren en circunstancias idénticas; (2) un mandato de trato enteramente diferenciado a destinatarios cuyas situaciones no compartan ningún elemento común; (3) un mandato de trato paritario a destinatarios cuyas situaciones presenten similitudes y diferencias, pero las similitudes sean más relevantes que las diferencias (trato igual a pesar de la diferencia); y (4) un mandato de trato diferenciado a destinatarios que se encuentren también en una posición en parte similar y en parte diversa, pero en cuyo caso, las diferencias sean más relevantes que las similitudes (trato diferente a pesar de la similitud)".

E também assim na doutrina alemã: (HESSE, 1998, p. 330)

"A igualdade jurídica material não consiste em um tratamento sem distinção de todos em todas as relações. Senão, só aquilo que é igual deve ser tratado igualmente. O princípio da igualdade proíbe uma regulação desigual de fatos iguais; casos iguais devem encontrar regra igual. A questão é, quais fatos são iguais e, por isso, não devem ser regulados desigualmente."

E, com esse norte da busca da igualdade material na feitura das normas, estaremos a nos aproximar da necessidade de o Estado buscar a justiça através das ações afirmativas, conforme BELLINTANI: (2006, p. 26.)

"Verifica-se, assim, que a igualdade material determina que os Poderes Públicos atuem não apenas negativamente para combater as discriminações no seio da sociedade, mas também e, principalmente, de forma positiva, no sentido de implementar políticas capazes de estabelecer na sociedade uma igualdade real e não meramente abstrata."

No caso brasileiro presente, tenhamos SARMENTO na explicitação da ordem que o constituinte deu ao novo Estado brasileiro, numa postura pró-ativa de inserção social: (SARMENTO, 2006, p. 251)

"O constituinte, portanto, não quis atribuir ao Estado o papel de espectador neutro e imparcial dos conflitos travados na esfera social. Pelo contrário, partindo da premissa empírica de que a sociedade brasileira e injusta e desigual, e de que nela vicejam a intolerância e o preconceito, ele impôs aos três poderes do Estado tarefas ativas, ligadas à inclusão social e á transformação de práticas opressivas voltadas contra grupos estigmatizados."

Após as conceituações propostas, justifica-se a necessidade de o atual Estado social dever promover a igualdade material, utilizando-se das ações afirmativas, a cuja conceituação remetemos às lições de um dos maiores especialistas sobre a matéria, atual integrante do Supremo Tribunal Federal brasileiro: (GOMES, 2001, p. 6-7)

"Concebidas pioneiramente pelo Direito dos Estados Unidos da América, as ações afirmativas consistem em políticas públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados e até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação, mas também a discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade. De cunho pedagógico e não raramente impregnadas de um caráter de exemplaridade, têm como meta, também, o engendramento de transformações culturais e sociais relevantes, inculcando nos atores sociais a utilidade e a necessidade da observância dos princípios do pluralismo e da diversidade nas mais diversas esferas do convívio humano. Constituem, por assim dizer, a mais eloqüente manifestação da moderna idéia de Estado promovente, atuante, eis que de sua concepção, implantação e delimitação jurídica participam todos os órgãos estatais essenciais, aí incluindo-se o Poder Judiciário, que ora se apresenta no seu tradicional papel de guardião da integridade do sistema jurídico como um todo, ora como instituição formuladora de políticas tendentes a corrigir as distorções provocadas pela discriminação. Construção intelectual destinada a viabilizar a harmonia e a paz social, as ações afirmativas, por óbvio, não prescindem da colaboração e da adesão das forças sociais ativas, o que equivale dizer que, para o seu sucesso, é indispensável a ampla conscientização da própria sociedade acerca da absoluta necessidade de se eliminar ou de se reduzir as desigualdades sociais que operam em detrimento das minorias."


3- A EXPERIÊNCIA NORTE-AMERICANA NO ÂMBITO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

No famoso caso Bakke, julgado em 1978 pela Suprema Corte, aquela Corte não aceitou que fossem reservadas vagas para minorias raciais para o ingresso na Universidade da Califórnia por argumentos em prol da superação da discriminação social dessa minoria; contudo, o Juiz-relator, Powell, deixou assentado que as universidades podem, sim, valerem-se das ações afirmativas para obterem um corpo de estudantes diversificado, criando, assim, um ambiente plural, necessário para uma formação de nível superior. Mas não num percentual fixo, e desconsiderando a situação individual de cada beneficiado pela política. Para isso, citou o exemplo de seleção de alunos da Universidade de Harvard.

Mais recentemente, em 2003, [04] a Suprema Corte estadunidense publicou duas decisões envolvendo ações afirmativas para ingresso nas Universidades, no caso, a de Michigan. Neles, o entendimento esposado no caso Bakke foi mantido, ou seja, para a constitucionalidade de tais medidas devem elas, após se detectar seu caráter temporário, ainda passar por dois testes, quais sejam, a comprovação da necessidade de diversidade do corpo discente e a análise da proporcionalidade (com suas espécies da adequação, da necessidade e da ponderação dos valores sacrificados e beneficiados).

Verifica-se, do estudo de material sobre o tema, que, como técnica de análise para verificação da discriminação efetiva, a Suprema Corte americana tem adotado com sucesso a do impacto desproporcional. Consiste ela em adoção de critérios estatísticos para provar, cientificamente, que os grandes números podem ocultar a discriminação racial.

Assim sendo, cabe-nos trazer a mudança do perfil social experimentado pela sociedade norte-americana pós-adoção das ações afirmativas na área racial, veja-se MUNANGA: [05]

"foi graças a ela que se deve o crescimento da classe média afro-americana, que hoje atinge cerca de 3% de sua população, sua representação no Congresso Nacional e nas Assembléias estaduais; mais estudantes nos níveis de ensino correspondentes ao nosso Ensino Médio e Superior; mais advogados, professores nas universidades, inclusive nas mais conceituadas, mais médicos nos grandes hospitais e profissionais, em todos os setores da sociedade americana. Apesar de as críticas contra ação afirmativa, a experiência das últimas quatro décadas nos países que implementaram não deixam dúvidas sobre as mudanças alcançadas".


4- A VITÓRIA DA PROCURADORIA REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO NO VESTIBULAR DE COTAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

Quando de nossa primeira análise como Procurador Federal, membro da Advocacia-Geral da União, das razões de impetrantes de mandados de segurança que se viam preteridos em relação aos cotistas (visto que, em não havendo tal política pública, suas notas permitiriam o seu ingresso na Universidade pública) contra atos de Reitores que instituíram o sistema de cotas para o ingresso nas Universidades Federais de ensino, o inciso V do art. 208 da Carta Cidadã foi-nos gritantemente assinalado: "O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: V- o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um." Também o caput do art. 5º da Carta Maior nos era dado enfrentar, pois, lá, garante-se o direito fundamental de que todos são iguais perante a lei.

Contudo, pensamos preliminarmente, o Estado não poderia ficar passivo diante do comando do inciso I do art. 3º da Carta Mater, o qual diz constituir objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Também, a nossa Carta promete, no inciso III do seu art. 3º, que será perseguida a redução das desigualdades sociais, e, no inciso I do seu art. 206, a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola é garantida.

Aí, então, residiu o centro maior de nossa preocupação quando tivemos de enfrentar, como Procurador Federal, na defesa do interesse público, a questão do ingresso na Universidade pública com a adoção do sistema de cotas raciais e sociais, buscando amparo no sistema jurídico vigente.

Outra preocupação para que pudéssemos defender o interesse público, em nome das Universidades Públicas, era a inexistência de lei instituindo o sistema de cotas, dado que o Ministério da Educação sustentava ser o art. 207 da CRFB mais do que o suficiente, pois ele é o garantidor da autonomia didático-científica das Universidades.

Assim sendo, em parceria com o brilhante corpo jurídico da Universidade Federal do Paraná, tivemos de nos alicerçar na interpretação dos princípios constitucionais e partir para o convencimento dos Desembargadores Federais do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

O primeiro caso a ser julgado foi relatado pelo Desembargador Luiz Carlos de Castro Lugon, de cuja passagem abaixo não podemos nos furtar: [06]

"É simplismo alegar, em relação ao tema sub examine, que a Constituição proíbe discrimen fundado em raça ou em cor. O que, a partir da declaração dos direitos humanos, buscou-se proibir foi a intolerância em relação às diferenças, o tratamento desfavorável a determinadas raças, a sonegação de oportunidades a determinadas etnias. ... É simplismo argumentar que a discriminação existente é em razão dos estamentos sociais; muito embora o branco pobre padeça também de carência de chances, fato irrecusável é que à figura do negro associou-se, imbricou-se mesmo, uma conotação de pobreza que a disparidade acaba por encontrar dupla motivação: por ser pobre ou por ser negro, presumidamente pobre. Não se trata aqui de reparar no presente uma injustiça passada; não se trata de vindita ou compensação pelas agruras da escravidão; a injustiça aí está, presente: as universidades, formadoras das elites, habitadas por esmagadora maioria branca. Permissa máxima vênia, não há como deixar de dizê-lo, ver a disparidade atual e aceita-la comodamente é uma atitude racista em sua raiz."

Após o julgado acima, muitos outros foram decididos no âmbito do Egrégio TRF da 4ª Região, no mesmo sentido, logrando-se manter o vestibular com o sistema de cotas raciais no âmbito da Universidade Federal do Paraná.

Junto aos Tribunais Superiores, ainda não houve julgamento definitivo sobre o tema das cotas raciais para o ingresso nas Universidades, mas diversos Ministros já esposaram seus pontos de vista, ainda que sob o viés doutrinário. Como ilustração, o Ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal, chega a usar a expressão de "amostragem de ação afirmativa" àqueles grupos previstos expressamente no Texto Maior, justificando constitucionalmente outras políticas do mesmo diapasão, mesmo que não explicitadas no texto constitucional, senão em sede de princípios: [07]

"falta-nos, então, para afastarmos do cenário as discriminações, uma mudança cultural, uma conscientização maior dos brasileiros; urge a compreensão de que não se pode falar em Constituição sem levar em conta a igualdade, sem assumir o dever cívico de buscar o tratamento igualitário, de modo a saldar dívidas históricas para com as impropriamente chamadas minorias, ônus que é de toda a sociedade... É preciso buscar a ação afirmativa. A neutralidade estatal mostrou-se um fracasso. Há de se fomentar o acesso à educação; urge um programa voltado aos menos favorecidos, a abranger horário integral, de modo a tirar-se meninos e meninas da rua, dando-se-lhes condições que os levem a ombrear com as demais crianças. E o Poder Público, desde já, independentemente de qualquer diploma legal, deve dar à prestação de serviços por terceiros uma outra conotação, estabelecendo, em editais, quotas que visem a contemplar os que têm sido discriminados... Deve-se reafirmar: toda e qualquer lei que tenha por objetivo a concretude da Constituição não pode ser acusada de inconstitucional. Entendimento divergente resulta em subestimar ditames maiores da Carta da República, que agasalha amostragem de ação afirmativa, por exemplo, no artigo 7º, inciso XX, ao cogitar da proteção de mercado quanto à mulher e da introdução de incentivos; no artigo 37, inciso III, ao versar sobre a reserva de vagas - e, portanto, a existência de quotas - , nos concursos públicos, para os deficientes; nos artigos 170 e 227, ao emprestar tratamento preferencial às empresas de pequeno porte, bem assim à criança e ao adolescente."(grifo aposto)

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Sobre o autor
Rui Magalhães Piscitelli

Procurador Federal,Contador, Pós-graduado em Finanças, Integrante da Carreira de Especialista do Banco Central do Brasil, mestrando em Direito Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PISCITELLI, Rui Magalhães. O Estado como promotor de ações afirmativas e a política de cotas para o acesso do negro à universidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2570, 15 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/16985. Acesso em: 24 abr. 2024.

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