RESUMO
Em 1916, a sociedade brasileira era eminentemente agrária, as partes eram livres para contratar, e o positivismo era concebido como sinônimo de segurança jurídica. Atento às nuances da nova estrutura socioeconômica, urbana e globalizada, foram recepcionados no Código de 2002 os princípios da eticidade, socialidade e operabilidade. A boa-fé objetiva constituiu o núcleo em torno do qual se operou toda a alteração do diploma civil. Houve a valorização das normas abertas, deixando para os magistrados o importante papel de avaliar qual é a melhor solução para o caso concreto. O objetivo deste trabalho é elucidar a importância da incorporação do princípio da boa-fé objetiva no nosso ordenamento civil como norma de criação de deveres jurídicos e de limitação ao exercício de direitos subjetivos, visando à solução de conflitos de interesses e à pacificação social justa.
PALAVRAS-CHAVE: boa-fé, cooperação, conduta.
1. INTRODUÇÃO
A boa-fé objetiva está presente há muito tempo em diversos ordenamentos jurídicos, mas foi introduzida, de forma expressa, no Código Civil brasileiro apenas em 2002. Não obstante sua positivação tardia, esse princípio não passou despercebido pela doutrina e jurisprudência pátrias, que já o concebiam como parâmetro de conduta a reger o comportamento das partes em suas relações negociais.
Com o novo ordenamento civil, inspirado no Código Alemão, valorizou-se a função concretizadora da boa-fé objetiva pelos magistrados, em uma vigorosa reação às concepções do positivismo jurídico. Isso não constitui cerceamento da liberdade individual ou a transferência para os magistrados da escolha daquilo que representa o melhor interesse dos indivíduos. Afinal, o julgador não poderá decidir ao seu livre arbítrio, mas deverá fundamentar satisfatória e racionalmente a decisão proferida segundo o método da concreção.
A restauração do equilíbrio das relações negociais civis será efetivada pela intervenção do judiciário que, adotando a boa-fé objetiva, examinará a totalidade do contexto que circunda o caso concreto, para buscar a solução mais justa e solucionar os conflitos de interesses, reprimindo os abusos.
2. DIFERENCIAÇÃO ENTRE BOA-FÉ OBJETIVA E SUBJETIVA
A boa-fé tratada pelo Direito obrigacional é a boa-fé objetiva. Na doutrina alemã, a boa-fé objetiva e a subjetiva são designadas por expressões diferentes: uma é a guter Glaube ou guter Glauben (boa crença), enquanto a outra é referida por Treu und Glauben (lealdade e crença).
A boa-fé subjetiva é um estado psicológico em que a pessoa possui a crença de ser titular de um direito que, em verdade, existe na aparência. O indivíduo se encontra em escusável situação de ignorância sobre a realidade dos fatos e da lesão a direito alheio.
Consoante os ensinamentos de Miguel Reale:
Em primeiro lugar, importa registrar que a boa-fé apresenta dupla faceta, a objetiva e a subjetiva. Esta última – vigorante, v.g., em matéria de direitos reais e casamento putativo – corresponde, fundamentalmente, a uma atitude psicológica, isto é, uma decisão da vontade, denotando o convencimento individual da parte de obrar em conformidade com o direito. Já a boa-fé objetiva apresenta-se como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria uma pessoa honesta, proba e leal.
Por sua vez, a boa-fé objetiva é um princípio, sinalizando às partes um tipo de conduta. O contraente tem o dever de agir de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, de correção, lisura, honestidade, não frustrando a confiança legítima da outra parte.
Na realidade, exige-se que os contraentes guardem um determinado padrão ético de conduta, funcionando a boa-fé objetiva como ponte entre os mundos ético e jurídico, ou, mais tecnicamente, como um princípio ético-jurídico.
Trata-se, acentua Clóvis do Couto Silva (2008), de um mandamento de consideração, mais especificamente, "o dever que promana da concreção do princípio da boa-fé é dever de consideração para com o alter".
Representa a boa-fé objetiva uma reação contra o individualismo, cobrando das partes um comportamento que leve em conta o interesse do parceiro contratual: um agir solidário. Certamente, o dever não se mostra ilimitado na medida em que não exige que o sujeito coloque o interesse do parceiro sobre o próprio. Não se trata aqui de um ato de abnegação, mas da idéia de cooperação, que se acha na essência da relação obrigacional, constituindo a chave para se entender o seu funcionamento.
A aplicação da boa-fé objetiva não se limita à fase contratual, mas alcança também a etapa que antecede a efetivação da avença, denominada pré-contratual (culpa in contrahendo), chegado a produzir efeitos após o cumprimento da prestação principal, denominada de responsabilidade pós-contratual ou post pactum finitum.
O dever de comportar-se conforme a boa-fé alcança não apenas o devedor e o credor. Na moderna dogmática contratual, terceiros não adstritos ao vínculo não mais são considerados alheios ao contrato.
Menezes Cordeiro (2007) faz referência à quebra do princípio segundo o qual "do convênio entre partes determinadas, não poderia advir ação alguma contra terceiros ou a seu favor". Na realidade, podem-se visualizar situações de deveres dos contraentes para com terceiros – chamada eficácia protetora de terceiros, ou hipóteses em que se exige um determinado comportamento de terceiros em face do contrato.
3. A BOA-FÉ OBJETIVA NO DIREITO COMPARADO
A origem do conceito e da expressão lingüística da boa-fé remete-nos ao Direito Romano. Bernardo Wainstein (2007, p. 79) lembra que desde o Direito Romano já se admitia como regra geral a exceptio doli, que consistia no poder de impedir que se preponderasse uma conduta que, em tese, estava de acordo com a norma jurídica, mas que estava sendo realizada de má-fé, com o objetivo de prejudicar o outro.
No Código Napoleônico, a norma prevista no art. 1.135 obrigava a observar a lealdade em todas as fases do vínculo e impunha o dever de não frustrar as expectativas despertadas no parceiro em virtude da relação negocial.
Na Alemanha, foi na jurisprudência comercial que a boa-fé objetiva se firmou como um princípio. Posteriormente, o BGB reservou dois parágrafos consagrando-o: o § 242, que ordena ao devedor e ao credor que ajam de acordo com os costumes do tráfego e consoante os ditames da boa-fé objetiva, de modo a resguardar os legítimos interesses do alter originados a partir do contato negocial; e o §157, que regula a interpretação dos contratos, determinando que a sua interpretação seja realizada de acordo com a confiança e a boa-fé.
A partir dos parágrafos supramencionados, os juristas alemães começaram a identificar a existência de deveres acessórios ou obrigações anexas decorrentes da própria natureza do vínculo assumido, ainda que não expressas nos contratos, prescindindo, assim, da vontade dos contratantes.
Na dicção do professor Clóvis do Couto e Silva,
começava a reconhecer-se no princípio da boa-fé uma fonte autônoma de direitos e obrigações; transforma-se a relação obrigacional manifestando-se no vínculo dialético e polêmico, estabelecido entre devedor e credor, elementos cooperativos necessários ao correto adimplemento. (COUTO E SILVA, Clóvis do. O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português, p. 47 apud USTÁRROZ, Daniel, 2008, p. 19)
A ampla interpretação realizada na leitura dos sobrescritos parágrafos foi acolhida pela jurisprudência alemã, concretizando a abstração contida nesses parágrafos.
Foi também na Alemanha que Ihering idealizou as primeiras manifestações sobre a responsabilidade pré-negocial, utilizando-se da boa-fé objetiva como fundamento para fixar indenizações decorrentes da celebração de contratos nulos. Mais tarde, a boa-fé objetiva também serviu de fundamento para estipulação de ressarcimento de danos ocasionados a partir da divulgação de informações sigilosas, eventos nocivos aos clientes, falta de informação sobre circunstâncias importantes para o parceiro contratual, entre outros.
Os principais ordenamentos europeus, seguindo o entendimento da jurisprudência alemã, foram, gradativamente, assimilando a necessidade de elaborar cláusulas e princípios gerais.
O Código italiano, no seu art. 1.337, disciplinou a responsabilidade surgida no período das tratativas, na fase pré-contratual. Também estabeleceu que as partes, envolvidas em relações obrigacionais, deviam comportar-se segundo as regras da correção.
O Código Civil Português, de 1966, também incluiu o princípio da boa-fé objetiva em seus dispositivos, conforme transcrevemos:
art. 227, I: "Quem negocia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte".
art. 239: "na falta de disposição especial, a declaração negocial deve ser integrada de harmonia com a vontade que as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso, ou de acordo com os ditames da boa-fé, quando outra seja a solução por eles imposta".
art. 762, 2: "no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé".
A boa-fé também teve acolhida nos países da comon law, como se constata no Código Comercial Uniforme americano (UCC): "Cada contrato ou obrigação no quadro da presente lei impõe uma obrigação de boa-fé no adimplemento ou execução do contrato". Define, o próprio Código, o significado de boa-fé: "goog faith means honesty in fact in the conduct or transation concerned".
4. A BOA-FÉ OBJETIVA NO DIREITO BRASILEIRO
Nos diplomas nacionais, excetuando a menção contida no Código Comercial, foi no Código de Defesa do Consumidor que a boa-fé objetiva encontrou efetiva acolhida.
Ao traçar os princípios fundamentais da política nacional de consumo, o legislador consumerista instituiu a boa-fé no seu art. 4°, III, determinando-a como base para a harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e para a compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica.
Também no art. 51, IV, estabeleceu a nulidade de pleno direito das cláusulas que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou eqüidade.
O Código Civil de 2002, na linha do Código Consumerista, adotou expressando a boa-fé objetiva, positivando-a nos arts. 113, 187 e 422. Essa postura, segundo Daniel Ustárroz (2008, p. 21), permite que magistrados e demais operadores possam apoiar argumentações há muito desenvolvidas (teoria da base do negócio jurídico, quebra positiva do contrato, lesão enorme, adimplemento substancial etc.) em norma legal explícita.
A aplicação da boa-fé, todavia, não se limita à órbita do direito privado. A Lei 8.666/93, que institui normas de para Licitações e Contratos da Administração Pública, ao reconhecer no seu art. 54 ser aplicável aos seus comandos os princípios norteadores da teoria geral dos contratos, adotou, por via de conseqüência, o princípio da boa-fé objetiva, in verbis:
"Art. 54. Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado."
A Lei que regula os processos administrativos no âmbito federal (Lei 9.784/99), por sua vez, previu expressamente a boa-fé como parâmetro de ação tanto do administrado (art. 4º, II), quanto da Administração Pública (art. 2º, parágrafo único, IV), norteando, assim, a conduta das partes na realização do interesse público.
Os contratos administrativos, assim como os contratos privados, instituem direitos e obrigações para as partes contraentes, que devem observância ao princípio da boa-fé objetiva, entendido este como um dever de conduta, capaz de ser objetivamente analisado, pautado pela confiança, cooperação, transparência e lealdade.
A quebra do pacto negocial pela contrariedade à boa-fé objetiva não fundamenta tão-somente possíveis revisões contratuais em favor do particular, mas a qualquer das partes, inclusive da própria Administração Pública, quando se encontrar excessiva e injustamente onerada em função de determinados pactos negociais.
5. A BOA-FÉ NO CÓDIGO CIVIL
O Código Civil de 1916, de índole liberal, considerava que os indivíduos eram livres para escolher o parceiro e as condições do contrato. O dogma da autonomia da vontade era concebido como fonte exclusiva dos efeitos do contrato, e a relação obrigacional era limitada a uma relação crédito-débito, considerando o credor e o devedor como duas partes opostas.
Sob esse espírito, não se reconheciam direitos acessórios ao pacto negocial, e a boa-fé objetiva significava que as partes deveriam cumprir o contrato exatamente como fora ajustado. Anísio José de Oliveira, ao criticar a teoria de Wendt, segundo a qual a boa-fé seria a explicação para a justificação da cláusula rebus sic stantibus, asseverava:
pensamos que tanto a boa-fé como a moral são conceitos estáveis, flutuantes e não se prestam para fundamentar construções jurídicas, pois, o direito prefere lidar com elementos objetivos. Essas teorias estão na estratosfera jurídica. Quando não se quer dizer nada então diz-se boa-fé ou moral. A de Wendt, por exemplo, é bastante imprecisa, pois adota como fundamentação um critério impreciso, como seja o da boa-fé. É um conceito vago, flutuante e o Direito não pode ser baseado em conceituação móvel, ondulantes, movediços.
Cada indivíduo, é bom que se diga, tem uma idéia do que seja moral ou boa-fé; outros não acham nada e alguns nem conhecem coisa alguma.
Acrescentaria dizendo que não se define "ex nunc" moral e boa-fé. (1968, p. 122)
O Código Civil de 2002 é um código para iguais, um código para civis em suas relações negociais. Não resta dúvida de que não visa à tutela de uma das partes como hipossuficiente, mas igualmente não pode passar despercebida que nem sempre as partes são verdadeiramente livres quando pretendem contratar.
A formação dos grandes conglomerados empresariais e a adoção indiscriminada dos contratos de adesão mitigaram a idéia da autonomia privada e forçaram a uma releitura do princípio da boa-fé objetiva, conforme bem observa Amanda Flávio Oliveira:
Aumentaram sensivelmente as necessidades humanas, resultado do desenvolvimento de técnicas de marketing cada vez mais agressivas e direcionadas. Imperou a impessoalidade das relações, como fruto da concentração de empresas, que ocasionou o aparecimento de verdadeiros conglomerados econômicos, com o objetivo de fornecer produtos e serviços no mercado. Verificou-se uma verdadeira luta pelo poder, quase sempre poder econômico, que conduziu a atitudes de deslealdade, abusos de toda ordem, falta de transparência no agir. (2005, p. 327)
Nesse contexto, atento a essa transformação social e à mudança de comportamento dos civis em suas relações, o legislador do novo Código Civil harmonizou os princípios liberais do contrato aos princípios sociais do contrato, que abrangem a função social, a boa-fé objetiva e a equivalência material.
Reconhecendo o valor concedido à boa-fé como uma das mais relevantes diferenças entre o Código Civil de 1916 e o de 2002, o professor Miguel Reale, supervisor da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil de 2002, no artigo A Boa-fé no Código Civil, aduziu que o novo código apresenta a eticidade, cuja base é a boa-fé, como um dos princípios diretores que o distinguem do individualismo do Código revogado de 1916.
Nesse sentido, Clóvis do Couto e Silva (2008) observou que "a relevância recentemente dada ao princípio da boa-fé, no campo do direito das obrigações, expressa talvez a principal reação contra as idéias e o sistema do positivismo jurídico, no plano da ciência do direito."
Encontramo-nos em fase de mudanças no Direito, cuja característica mais marcante, segundo Daniel Ustárroz,
é a recuperação da confiança no homem, que se manifesta na valorização do homem-advogado, juiz ou promotor. Ultrapassado o apogeu da filosofia escolástica, que buscava tudo regular mediante métodos abstratos e apriorísticos de raciocínio, hoje se entende que o magistrado não deva restar passivo, simplesmente mediando o contraditório das partes. Tanto isso é verdade que o sistema da prova legal cedeu posto ao da persuação racional. (2008, p. 22)
Dentro dessa perspectiva, valorizam-se os conceitos jurídicos indeterminados, as cláusulas gerais e os princípios gerais de Direito.
6. BOA-FÉ E CLÁUSULAS GERAIS DE DIREITO
O legislador impôs uma mudança na interpretação do Direito, abandonando o rigorosismo positivista para adotar as cláusulas abertas. O método subsuntivo, segundo o qual da confrontação entre o tipo legal e os fatos apresentados no caso concreto chega-se a hipótese fática vertente é substituído pelo método da concreção. O jurista não mais aplica a norma automaticamente ao caso concreto, mas instrumentaliza, por meio de análise valorativa, o que se encontra abstrata e genericamente contido nas normas gerais.
Segundo Miguel Reale, no artigo A Boa-fé no Código Civil,
O resultado da compreensão superadora da posição positivista foi a preferência dada às normas ou cláusulas abertas, ou seja, não subordinadas ao renitente propósito de um rigorismo jurídico cerrado, sem nada se deixar para a imaginação criadora dos advogados e juristas e a prudente, mas não menos instituidora, sentença dos juizes. Daí a necessidade de ser ela analisada como conditio sine qua non da realização da justiça ao longo da aplicação dos dispositivos emanados das fontes do direito, legislativa, consuetudinária, jurisdicional e negocial.
Ressalte-se que o Direito não se resume ao que está inserido no código. Ao mesmo tempo em que as cláusulas gerais conferem certa liberdade ao julgador, ao preencher valorativamente a norma abstrata, vincula o juiz aos fundamentos de sua decisão, que deverá ser orientada pelos melhores valores jurídicos.
Fabiano Menke (2004, p. 33) pondera que "as cláusulas gerais também impõem limites ao julgador, que não poderá preenchê-las apenas com seu livre arbítrio; ao invés disso, exige-se do magistrado fundamentação racional e convincente para a finalidade de se afastar os abusos".
Miguel Reale, no artigo Sentido do Código Civil, assevera que
É indispensável, porém, ajustar os processos hermenêuticos aos parâmetros da nova codificação, pois como nos ensina o insigne filósofo Hans Georg Gadamer – falecido recentemente aos 102 anos – a hermenêutica não se reduz a mero conjunto de normas interpretativas, porque é da essência mesma da realidade cultural que se quer compreender. Nada seria mais prejudicial do que interpretar o novo Código Civil com a mentalidade formalista e abstrata que predominou na compreensão da codificação por ele substituída. A boa-fé não constitui um imperativo ético abstrato, mas sim uma norma que condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação dos mandamentos legais e das cláusulas contratuais até as suas últimas conseqüências.
A técnica hermenêutica das cláusulas gerais remete o intérprete não apenas a outras normas e valores do próprio sistema jurídico, mas também a valores externos ao sistema. Nesse processo hermenêutico, o aplicador deverá buscar suporte em outras fontes valorativas para fundamentar suas decisões.
Nesse sentido, Canaris ensina que
A multiplicidade dos postulados singulares da idéia de Direito solicita, por isso, o legislador a fazer uso de todas as referidas possibilidades formulativas e apenas uma escolha criteriosa entre elas dá bons resultados perante o problema da polaridade dos mais altos valores jurídicos. Não se pode, porém, dizer em geral qual a solução preferível; isso depende da estrutura particular da matéria em causa e do valor que lhe subjaza. (1996, p. 147)
As cláusulas gerais colocaram em maior relevo o trabalho dos julgadores. Criou-se um instrumento hábil a restaurar o equilíbrio das relações negociais, ensejando ao Estado-juiz a recomposição da justiça social.
Os limites da aplicação das cláusulas gerais serão determinados pelos operadores do direito e pela própria sociedade. Também a doutrina deverá auxiliar os julgadores na construção de diretrizes seguras e adequadas na constituição de um sistema justo, que atenda aos anseios da sociedade.
CONCLUSÃO
Sob o manto de valores éticos, o novo Código Civil, na linha dos demais ordenamentos ocidentais, adotou expressamente o princípio da boa-fé objetiva, apresentando uma vigorosa reação às concepções do positivismo jurídico, do individualismo e do formalismo aos quais estava submetido o então revogado Código de 1916.
A boa-fé objetiva não constitui um mandamento ético abstrato, mas, ao contrário, é uma norma que condiciona e legitima toda a vivência jurídica, seja na interpretação das leis ou nas cláusulas de um contrato, razão pela qual representa um instrumento indispensável para a realização da justiça.
A incorporação do princípio da boa-fé objetiva no nosso ordenamento civil opera positivamente, criando deveres jurídicos, e negativamente, limitando o exercício de direitos subjetivos, impedindo condutas contraditórias.
Por configurar uma norma vaga, constitui o princípio da boa-fé objetiva um importante fator de mobilidade do sistema jurídico. O que se encontra abstrata e genericamente contido nessa cláusula geral de direito será valorado pelo magistrado, que decidirá o caminho mais adequado para a solução do caso concreto.
Permite-se, agora, que o sistema jurídico seja amoldado constantemente às necessidades da vida social, econômica e jurídica, solucionando-se os conflitos de interesses de forma justa.
REFERÊNCIAS
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