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Hidroguerras: o líquido cobiçado deixa de ser o petróleo

01/02/2001 às 00:00
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Sumário: I- Considerações iniciais; II- As hidroguerras; III- Amazônia: Oriente Médio do século XXI; IV- Considerações finais: Um novo nome para a paz: Democracia Ambiental.


Resumo: O artigo se desenvolve sobre a questão da escassez de água potável no planeta e suas consequências conflitivas em um passado e futuro muito próximo. Propõe a partir do conceito de democracia ambiental, uma forma de alcançar a paz mediante eficaz participação e informação que seja capaz de concientizar os povos das necessidades de preservar recursos naturais básicos como a água, proporcionando um hábito cultural e solidário na sociedade internacional.


I- Considerações Iniciais

Em 3.200 anos de história, somente conhecemos 300 de paz. Vivenciamos praticamente 15.000 guerras que nos deixaram um legado de mais de 3 bilhões de mortos. O século XX foi o mais mortífero devido principalmente ao aprimoramento das tecnologias de guerra e as sempre presentes questões religiosas. No entanto, muito sangue jorrou por conflitos ambientais. A escasez de água potável, sua distribuição, acesso e gestão foram, são e serão, motivos de grandes dispustas internas e internacionais.

O modelo atual de desenvolvimento, sustentado por um pensamento único e baseado na exploração desenfreada de recursos naturais como forma de alicerçar a nova economia - crescimento rápido suportado por um constante aumento de produtividade e aplicação de novas tecnologias - não dá chances a renovação destes recursos, já que sua exploração é imensamente maior.

A água potável, componente básico da biosfera, se encontra em um movimento de diminuição tão acelerado que a previsão para 2050 é de 2.500 bilhões de pessoas sem acesso ao precioso líquido vital. Hoje, este número é de 1 bilhão. Segundo a FAO e o Banco Mundial, em 1990, 20 países - 9 no Oriente Médio e 11 na África - sofriam pela falta de água. Em 1996 já eram 26 e em 2020 serão 41. Apenas 2.5% da água existente em nosso planeta é doce e possivelmente já não contamos mais com este percentual.

A escassez dá-se principalmente pela sobre-exploração. Neste século, se multiplicou por seis a quantidade extraída. A explosão demográfica, a contaminação por errônea utilização, o desperdício e o câmbio climático influenciam diretamente na diminuição dos recursos hídricos.

O fracasso da VI Conferência das Partes da Convenção sobre Câmbio Climático, causado principalmente pelo desacordo entre os EUA e a União Européia que atuaram como em um jogo ou em uma nova modalidade de "guerra-fria político-ideológica", pelo menos serviu para alertar a comunidade internacional dos impactos deste câmbio, principalmente em relação a disponibilidade de água: em 20 anos, no sul da Europa a escassez de água se agravará um 25% em razão a perturbação dos ciclos hidrológicos que poderá ocasionar períodos de fortes chuvas em algumas regiões assim como de secas em outras; Afeganistão, Etiópia, Serra Leoa e Tanzânia, os quatro países que menos contaminam, sofrerão efeitos devastadores em suas agriculturas ao acentuar-se as secas. Entretanto, os protagonistas da VI Conferência não ousaram discutir problemas transcendentais a possíveis soluções e efeitos de ordem climática, como os conflitos violentos e a consequente inseguridade internacional que poderão surgir em virtude deste câmbio.


II- As Hidroguerras

O sistema natural água tem sido origem de violentos conflitos no decorrer de nossa história beligerante. As tendências indicam que estamos nos acercando de uma complexa "crise da água" em todo o planeta. A escassez em um futuro próximo será a principal limitação para a produção agrícola e para o próprio desenvolvimento das espécies.

Tensões podem originar-se pelo controle do acesso ao recurso, onde a água é a raiz do conflito, bem como um meio de disputar desenvolvimento. Também pode ser usada como uma ferramenta militar onde a água, ou sistemas de água, são utilizados como armas durante a ação militar ou como instrumento político e, ainda mais, ser uma forma de terrorismo onde é o objeto da violência ou coerção. Desde 1500 em mais de 60 conflitos a água foi fator determinante, como instrumento ou como causa.

Na II Guerra Mundial (1940-1945) e na Guerra de Kosovo (1999) a água foi utilizada como uma ferramenta militar. Naquela, várias represas hidroelétricas foram bombardeadas em objetivos estratégicos. En Kosovo, muitos poços de água foram contaminados pelos sérvios assim como o estratégico fechamento de sistemas de água em Pristina.

Em 1970, Brasil, Paraguai e Argentina protagonizam um conflito não violento por disputas políticas e de desenvolvimento, visto que Brasil e Paraguai anunciaram planos de construção da hidroelétrica de Itaipu, causando preocupação ao governo Argentino tanto no que concerne aos impactos ambientais no rio de curso internacional, bem como a seu próprio projeto. Argentina pede para ser consultada durante o projeto de Itaipu, o que é negado pelo Brasil. Um acordo firmado em 1979 põe fim a este conflito prevendo a construção de ambas hidroelétricas.

O desenvolvimento da região "bíblica" compreendida entre os rios Eufrates e Tigre, gera entre Turquía, Síria e Iraque, no início dos anos 90, tensões não violentas porém ameaçadoras. Turquia que controla as principais fontes destes rios interrompe o fluxo do Eufrates pelo período de um mês para terminar uma represa. Síria e Iraque protestam acusando o governo turco de possuir àquelas águas como uma arma de guerra, já que suspende os cursos fluviais, os desvia ou simplesmente aumenta seu aproveitamento.

Este recurso também é motivo de discussões verbais entre México e Estados Unidos, que usa a água do rio Colorado para abastecer a metrópole de Los Angeles, diminuindo seu volume.


III- Amazônia: Oriente Médio do século XXI

O precioso líquido deixa de ser petróleo para ser água.

A Floresta Amazônica, presente em 6 países (Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Peru, e Venezuela), representa 20% da disponibilidade mundial de água doce; a maior floresta tropical do mundo; o maior patrimônio genético da Terra; fonte de recursos naturais estratégicos como água e sol; 50% de um universo ainda desconhecido e a energia do século XXI: o combustível vegetal, a biomassa.

Por estas e outras tantas razões, as nações hegemônicas - principalmente os EUA -, situadas no hemisfério norte do planeta - região de clima temperado e frio - intentam de todas as formas "apropiar-se" da região amazônica. Propostas como a internacionalização da região Amazônica e a de trocar as dívidas externas dos países do Sul por florestas topicais-úmidas são notícias frequentes de intento manipulador. Na realidade os países "ricos" são devedores de uma incomensurável dívida ecológica que seu esplendoroso desenvolvimento baseado no saque e dominação de recursos naturais e mão-de-obra "terceiromundistas", causou à biosfera e à humanidade. A útima estratégia estadounidense é o Plano Colômbia. Sob objetivos de eliminar o narcotráfico que financia a guerrilha e propondo um desenvolvimento social sem a cultura da droga, estes movimentos militares maculam os verdadeiros interesses na região. A Colômbia é um dos países mais ricos em biodiversidade e recursos naturais depois do Brasil, país fronteiriço. Detém importantes mananciais de água potável e petróleo. Os Estados Unidos é o maior consumidor de água e petróleo do planeta. A guerrilha sería o único impedimento armado e independente da subserviência latinomericana, capaz de sufocar a invasão.

Vivemos a era "ecocolonialista", a floresta e seus preciosos recursos já são o foco de atenções e objeto de desejo guloso de glutões. Como já foi advertido, os mais graves conflitos internacionais podem mudar de cenário, do deserto para a floresta. Com uma breve reflexão percebe-se que já mudou, a guerra acaba de começar, ainda que tímida, ou seja, camufladamente.


IV-Considerações finais. Um novo nome para a Paz: Democracia Ambiental

A água é o principal recurso natural. Dela dependem todos os processos biológicos. Inclusive o DNA, molécula da vida, está constituído por água. Não somente a quantidade e acesso são problemas. A qualidade também produz uma grande inseguridade mundial: a cada ano mais de 5 milhões de pessoas morrem por doenças relacionadas com a água. Os serviços de saneamento básico são precários e excluem 2 bilhões de seres humanos. À estas pessoas se está negando justiça ambiental - fração justa, equitativa dos recursos naturais, direito humano básico a viver em um meio ambiente sano.

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É um patrimônio comum da humanidade, um "fideicomisso planetário" (expressão utilizada na Declaração de Amsterdam - 1991). O Código de Alfonso X, "As Sete Partidas", compilação legislativa realizada entre 1256 e 1265, considerava a água como um bem comum, res communis, não suscetível de apropriação privada. Este conceito no Direito Romano significava que o ar, as águas correntes, o mar e suas praias eram comuns a todos. Hodiernamente a Declaração de Estocolmo de 1972 en seu 5º Princípio considera as águas como "patrimônio comum da humanidade". Entretanto o regime suicida de mercado no qual estamos mergulhados, a trata como um recurso privado e apenas respinga ou goteja o líquido aos menos abundados - leia-se descriminados. Nascem conflitos, insegurança, apropriação indevida, etc.

Floresce um novo conceito para tentarmos chegar à paz: a democracia ambiental. Esta democracia está baseada em um direito humano - a todos os extratos societários - ao meio ambiente que se exercido de maneira democrática poderia conlevar-nos ao pacifismo. A partir dos direitos humanos a saber e a participar nos assuntos de interesse público, se podería instigar um consciente coletivo ambiental capaz de dirimir tensões ocasionadas por disputas ambientais.

A partir de uma eficaz participação se garante o "dever ser" perante uma norma, que arraiga-se à vida cotidiana e torna-se um hábito cultural e solidário na sociedade; conhecendo-se os problemas, os quais ameaçam a vida, se propiciam juízos valorativos de responsabilidade, sustentabilidade, ética ecológica. Nesta consciência, o fato de dar a conhecer e a atuar na gestão, que principalmente compreende a uma repartição adequada dos recursos ambientais para sobrevivência de todos, se transporia aos limites imperativos e gananciosos de algumas nações. Uma quimera? Decerto é que ainda não conhecemos, ou não respiramos democracia. A democracia ambiental é um dos alicerces que necessitamos para assegurar sustentabilidade e adequada segurança meio ambiental nos mais amplos sentidos, bem como pensar globalmente e agir local e urgentemente.

A água é uma questão ambiental que deve ocupar o primeiro lugar tanto em programas de governos, como de instituições internacionais e principalmente na conciência dos usuários. Em 2050 se estima que a maior parte do planeta sofrerá por razões de água. A avaliação dos recursos hídricos, a definição dos abastecimentos disponíveis, as projeções de uso no futuro e a apresentação de opções de desenvolvimento e seus possíveis efeitos, são a base para a gestão sustentável dos recursos mundiais de água no futuro.Com estas medidas talvez se possa prevenir conflitos e a consequente inseguridade internacional, que se intensificarão em um futuro muito próximo.


Bibliografia

- Borrero Navia, José M. "Los Derechos Ambientales: una visión desde el Sur". Publicação da FIPA (Fundación, para la Investigación y Protección del Meio Ambiente) e CELA ( Centro de Asistencia Legal Ambiental). Colombia.1994.

- "Democràcia Ambiental: Tecnologia i Cultura". Revista do Departament de Medi Ambient - Generalitat de Catalunya. Junio de 2000

- Martínez, Joan Alier (cord) "Ecología Política: cuaderno de debate internacional". Icaria editorial - Barcelona, Fuhem/CIP - Madrid. Barcelona. 2000

- Páginas web:

www.bcdam.gov.br

www.cosmovisiones.com

www.elpais.es

www.lavanguardia.es

www.oieau.fr

www.pacinst.org

www.worldwater.org

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Sobre a autora
Marcia Rodrigues Bertoldi

advogada, com diploma em Estudos Avançados (DEA) pela Universitat Pompeu Fabra (Espanha), doutoranda em Direito Internacional pela Universitat de Girona (Espanha)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERTOLDI, Marcia Rodrigues. Hidroguerras: o líquido cobiçado deixa de ser o petróleo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 49, 1 fev. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1701. Acesso em: 28 mar. 2024.

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