O país vive um tempo de comportamento inusitado das autoridades. Por ser lugar comum a afirmação de que ninguém no Brasil recebe punição por crimes ou por infrações administrativas, instaurou-se agora um clima de caça às bruxas.
Com frequência, observa-se a desconsideração de direitos fundamentais dos acusados, submetidos a toda a sorte de violências físicas e morais. A Polícia, em alguns casos, investiga, acusa e condena, aplicando a pena de execração pública, encenando espetáculos para a mídia.
No afã de oferecer números e saciar a plateia, atropelam-se as garantias do processo, no âmbito administrativo e judicial, colocando de lado os direitos arduamente conquistados e que dão tom à democracia e ao Estado de Direito.
Mais curioso é perceber que a saga de punir a qualquer custo não escolhe a vitima nem o algoz, abarcando burocratas, empresários, banqueiros, policiais, membros do Ministério Público, magistrados.
Quanto aos integrantes do Poder Judiciário, que têm passado por uma necessária depuração, a Constituição Federal pretendeu blindá-los com uma série de garantias identificadas por alguns como privilégios, mas que são, na verdade, instituídos em benefício do próprio jurisdicionado.
Por se tratar do julgamento de um juiz, a quem se deve resguardar, ao máximo, a independência no exercício da função - inclusive em relação ao próprio Tribunal -, seria temeroso permitir o enfraquecimento de suas garantias e nele incutir o receio de ser punido sem a rigorosa observância dos trâmites constitucional e legalmente previstos. Isso porque, conforme salienta, com propriedade, Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco:
"As garantias do Poder Judiciário, em geral, e do magistrado, em particular, destinam-se a emprestar a conformação de independência que a ordem constitucional pretende outorgar à atividade judicial. Ao Poder Judiciário incumbe exercer o último controle da atividade estatal, manifeste-se ela por ato da Administração ou do próprio Poder Legislativo (controle de constitucionalidade). Daí a necessidade de que, na sua organização, materialize-se a clara relação de independência do Poder Judiciário e do próprio juiz em relação aos demais Poderes ou influências externas". [01]
Bem por isso que a Carta Magna previu no seu art. 93, VIII, já com a redação que lhe imprimiu – sob questionável constitucionalidade - a Emenda 45/2004, que o ato de remoção, disponibilidade e aposentadoria do magistrado, por interesse público, fundar-se-á em decisão por voto da maioria absoluta do respectivo tribunal ou do Conselho Nacional de Justiça, assegurada ampla defesa.
E até o advento da Lei Complementar a que alude o caput do art. 93 da Lei Fundamental da República, o processo e julgamento dos magistrados também deve observância às prescrições da Lei Complementar n. 35/79 (LOMAN), como tem decidido o Superior Tribunal de Justiça (STJ – RMS 19618/PB, Rel. Min. Paulo Medina, 6ª Turma, DJ 12/09/2005).
Ainda assim, no processo disciplinar movido contra magistrados em alguns tribunais do país, cuja pena máxima passível de aplicação é a aposentadoria compulsória – por força da vitaliciedade -, têm se verificado dois graves atentados à lisura do julgamento: a participação de juízes convocados e a indevida redução do quórum constitucional para aplicação das sanções.
A LOMAN, em seus artigos 22, § 1º; 24 e 45, exige, para a deliberação sobre penalidades a magistrados, que da sessão participem apenas membros efetivos do Tribunal, ou seja, aqueles que ali foram alçados, em definitivo, segundo os critérios previstos na Constituição Federal, por promoção ou pela regra do quinto, sem incluir, obviamente, os juízes convocados para compor o quórumnos julgamentos de processos judiciais.
Esses juízes, nem mesmo em um grave esforço de interpretação, conseguem se inserir no conceito de "membros efetivos" do Tribunal, bastando, para essa constatação, vislumbrar que a substituição dos Desembargadores é um fato transitório e que, em seguida, esses mesmos juízes retornam para a magistratura de 1ª instância, deixando indubitável que não pertencem, "efetivamente",ao corpo do órgão.
Se, para os jurisdicionados, a Constituição Federal ainda permite que os órgãos fracionários contem com a presença de juízes convocados, seguindo uma política judiciária de aproveitamento e de racionalização dos trabalhos - notadamente após a proibição de férias coletivas nos Tribunais -, para o julgamento de magistrados, a LOMAN preconiza, como dito, que a deliberação seja tomada por "membros efetivos".
A exigência tem uma lógica subjacente. O sistema se assenta na premissa de que, como regra, as autoridades não devem ser julgadas por outras de igual ou inferior hierarquia. Por isso, os Desembargadores são julgados, nos crimes comuns, pelo Superior Tribunal de Justiça; e os Ministros do STF têm competência para julgar os do STJ.
O Conselho Nacional de Justiça [02], a propósito do tema, já decidiu não ser "possível a convocação de magistrados de 1ª grau para compor insuficiência de quorum do Tribunal Pleno, ou de seu órgão especial, em votação de instauração de processo administrativo disciplinar e de eventual afastamento do processado, ainda que exista previsão normativa do Regimento Interno do Tribunal ou da Lei de Organização Judiciária local" e que a "única convocação possível para o julgamento de processos disciplinares é de desembargadores, por serem membros efetivos do Tribunal, para integrar o órgão especial, sob pena de violação do princípio do juiz natural" [03].
Essa decisão que significou um avanço trouxe consigo, porém, um lamentável retrocesso. É que ao cuidar da delicada questão do quórum para a aplicação de penalidade, consignou que para o cálculo, não seriam "computados os membros do Tribunal que estiverem afastados sob prazo determinado (licenças, férias, suspeição, impedimento), ou sob prazo indeterminado (aposentadoria, afastamento por determinação de órgão ou Tribunal Superior), não se considerando, portanto, o número total de vagas existentes da Corte de origem, na base de cálculo, mas apenas os membros efetivamente aptos a votar".
Por essa lógica, um Tribunal composto de 27 Desembargadores, mas que tivesse 5 deles afastados, poderia aposentar compulsoriamente um magistrado pelo voto de apenas 12 Desembargadores. Se, na semana seguinte, os afastados retornarem, apenas com 14 votos um outro juiz poderia ser aposentado.
Note-se que a Constituição Federal exigiu a maioria absoluta dos "membros efetivos", pouco importando que alguns deles estejam transitoriamente afastados ou de férias. A intenção da Carta Magna foi, exatamente, dificultar ao máximo, sem impedir em absoluto, a aplicação de penas tão severas aos juízes, tudo com a finalidade de resguardar sua independência.
Não se pode perder de vista que a redação original do inciso VIII do art. 93 da Constituição Federal previa, para a aplicação da pena de aposentadoria compulsória, o voto de dois terços dos membros efetivos do Tribunal. A Emenda Constitucional 45/2004 já atenuara essa exigência para que o quórum se restringisse à maioria absoluta.
Nesse contexto e, ainda, mirando o objetivo da Lei Fundamental da República, descontar do total de "membros efetivos" aqueles que estejam afastados, os aposentados, os que estão gozando férias ou licenças, os suspeitos e os impedidos, resultará em uma interpretação afrontosa do princípio hermenêutico da máxima efetividade das normas constitucionais.
As garantias dos magistrados previstas na Carta Magna seriam enfraquecidas e apequenada resultaria a independência dos juízes de primeira instância, temerosos de sofrer um processo administrativo cujo quórum de deliberação, ao final, ficará à mercê de um sem-número de variáveis, para não dizer da própria sorte.
Por se distanciar do critério objetivo traçado na Constituição Federal, o julgamento do processo administrativo de um juiz seria confiado à boa-fé e à conveniência do Desembargador Relator, pois será ele quem escolherá incluir o feito em pauta quando o Plenário ou Órgão Especial estiver ou não completo, a depender das circunstâncias que afastem da sessão alguns Desembargadores.
Em tal preocupante cenário, seria destruída a harmonia desenhada na Carta Política e se permitiria, então, que um juiz, guardião da cidadania e da justiça, sofresse uma vertiginosa capitis deminutio, pois até o jurisdicionado, em causas mais simples e de consequências mais tênues, sabe de antemão o quórum para seu julgamento, enquanto o juiz ficará ao sabor dos ventos.
Os que defendem essa interpretação casuística da norma constitucional partem de uma falsa premissa, como bem destacou o preclaro Ministro Sidney Sanches, no memorável voto que proferiu no RE 103.700-8/MG, no Supremo Tribunal Federal, qual seja, a de que "existe o direito do Tribunal de punir" quando, em verdade, acima "do poder de punir está o de o fazer com observância das exigências constitucionais".
E o CNJ, iluminado pelo bom senso que orientou o Excelso Pretório no julgado antes indicado, reviu o posicionamento, ao decidir por larga maioria, em recente pronunciamento, que "não procede qualquer tentativa de se relativizar o quorum constitucionalmente qualificado para aplicação de penalidades como a de que trata o caso em exame, por via de interpretação diversa, vale dizer, que não seja a de se considerar, no cômputo do quorum exigido a integralidade dos membros do Tribunal" [04].
Com essa amadurecida decisão, o CNJ alinha seu entendimento ao do Supremo Tribunal Federal e vivifica as garantias constitucionais dos magistrados, contribuindo para preservar, em última análise, a qualidade das decisões judiciais e os próprios jurisdicionados, que poderão contar com juízes destemidos e comprometidos, apenas, com a Constituição Federal, com as leis e com a própria consciência.
Notas
- Curso de Direito Constitucional, 2ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2008, p. 932.
- Igual entendimento se alcança a partir do art. 5º, § 1º da Resolução n. 72/CNJ.
- PCA 200810000010813, Relator Conselheiro Jorge Maurique, 07/10/2008.
- PRD 0002882-81.2008.2.00.0000, Relator Conselheiro MILTON NOBRE, 10/02/2010.